Leões Indomáveis: A Redenção do Futebol Africano

A história conturbada da África na Copa e um dos seus pontos altos: a campanha camaronesa que fez Pelé profetizar uma seleção africana campeã do mundo

Momento da partida entre Camarões e Argentina na Copa de 1990 | imagem: Wikimedia Commons

Quando a primeira Copa do Mundo de futebol foi realizada em 1930, a maior parte da África não era formada por nações independentes e sim por extensões dos impérios coloniais europeus. Britânicos, franceses, portugueses, espanhóis, italianos, alemães e belgas haviam partilhado o continente entre si desde o século anterior, com o objetivo de pilhar os seus recursos, deixando de fora somente a Libéria (país fundado por ex-escravizados afro-americanos, e sob influência dos Estados Unidos) e o Egito. Como no resto do globo, o futebol chegou à África pelos pés dos britânicos e rapidamente se tornou o esporte mais popular do continente. A África do Sul foi o primeiro país africano a se filiar à Fifa, seguida pelo Egito, mas em 1930 fazer uma longa viagem transatlântica rumo ao longínquo Uruguai para disputar um torneio de futebol era algo distante da realidade para os atletas do continente. Mesmo na Europa, mais desenvolvida economicamente, somente quatro seleções (França, Bélgica, Romênia e Iugoslávia) toparam a viagem, por insistência do idealizador do torneio Jules Rimet, e foram todas no mesmo navio, fazendo os treinamentos no convés. O troféu, contudo, ficou com os anfitriões, que bateram os vizinhos argentinos na final por 4 a 2.

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A copa seguinte (1934) foi disputada na Itália, e ali os africanos fizeram sua estreia. O Egito se inscreveu e teve que derrotar a vizinha Palestina (então um mandato britânico, precedendo a criação de Israel) nas eliminatórias para garantir a única vaga no torneio destinada a africanos e asiáticos, se tornando a primeira seleção fora da Europa e Américas a jogar uma copa. Já na Itália, os egípcios foram eliminados na primeira fase pela Hungria.

Para a copa seguinte, a Fifa alocou os egípcios, novamente os únicos africanos inscritos, na zona europeia das eliminatórias, onde deveriam enfrentar a Romênia. Desta vez, os egípcios se recusaram a entrar em campo porque a partida foi agendada no Ramadã, mês sagrado para os muçulmanos, amargando a eliminação (a Fifa não aceitou uma mudança de datas). A copa de 1938 teve um baixíssimo número de participantes de fora da Europa – apenas Brasil, Cuba e as Índias Orientais Holandesas (atual Indonésia) fizeram a viagem. Os sul-americanos, em particular, defendiam um rodízio entre os continentes para sediar o torneio. Como os europeus não aceitaram, Argentina e Uruguai decidiram não participar do torneio sediado na França.

A Segunda Guerra Mundial inviabilizou a disputa da Copa do Mundo pelos 12 anos seguintes. Somente em 1950 ocorreria a quarta edição do torneio, desta vez no Brasil, mas sem a presença dos africanos – compreensível diante dos custos de travessia do Atlântico. Quatro anos depois, o Egito foi novamente incluído nas eliminatórias europeias, perdendo para a Itália a vaga na Copa disputada na Suíça.

Ventos de Liberdade, Frustrações nos Gramados

Fora dos gramados, crescia o movimento pela independência dos países africanos, com destaque para a Revolução Argelina, a partir de 1954, contra a ocupação francesa. Neste contexto, foi criada em 1956 a Confederação Africana de Futebol (CAF) e em 1957 foi organizada a primeira copa Africana de Nações. Somente quatro seleções participaram da edição inicial: Egito, Sudão, Etiópia e África do Sul – que foi desclassificada por insistir em escalar somente jogadores brancos, obedecendo ao apartheid. O Egito sagrou-se campeão batendo a Etiópia na final. Entre as potências europeias, crescia o temor de que as paixões do futebol pudessem atiçar sentimentos de nacionalismo e independência nos demais países africanos. Os impérios coloniais começavam a ruir, dando lugar às novas nações africanas e suas seleções de futebol. Em 1962, já eram nove as seleções inscritas para a copa Africana de Nações, número que cresceria nas edições seguintes à medida em que o continente se libertava da ocupação europeia.

Paralelamente, as relações entre os dirigentes do futebol africano e a Fifa se deterioravam. Sob influência europeia e sul-americana, os organizadores da Copa do Mundo ainda enxergavam os africanos com paternalismo, alegando que não tinham “maturidade” suficiente para estrelar no cenário global do esporte. Para a copa de 1958, a Fifa destinou apenas uma das 16 vagas no torneio para o “resto do mundo” (Europa e Américas ficavam com as outras 15). Novas questões geopolíticas entraram em cena: Egito e Sudão se recusaram a enfrentar Israel, seguindo o boicote de países árabes à nação judaica que perdura até os dias de hoje. Como resultado, os africanos foram desclassificados e novamente ficaram de fora da Copa do Mundo. Em 1962, o vencedor da África (Marrocos) foi eliminado pela Espanha em uma repescagem intercontinental. A insatisfação dos africanos com esse formato de eliminatórias, que não garantia uma vaga direta ao continente, levou a um boicote da edição de 1966: as seleções africanas se recusaram a participar, pois os campeões do continente ainda deveriam enfrentar a melhor colocada da Ásia e Oceania por uma única vaga na copa (a Coreia do Norte se classificou). Por outro lado, o artilheiro daquela Copa do Mundo seria um jogador nascido na África: Eusébio, moçambicano de nascimento, mas jogando por Portugal (Moçambique ainda não era independente), brilhou nos gramados ingleses, marcando sete gols.

A África volta à copa, mas não decola

Somente na copa de 1970 a Fifa atendeu aos anseios dos africanos destinando uma vaga direta para o continente. Marrocos foi o primeiro representante africano na copa desde 1934. No torneio disputado no México e vencido pelo Brasil, os marroquinos caíram na fase de grupos, perdendo para Alemanha Ocidental (2 a 1), Peru (3 a 0) e empatando com a Bulgária (1 a 1). Embora não tenham vencido nenhuma partida, os africanos fizeram uma apresentação digna – na estreia contra a Alemanha, então vice-campeã mundial, os marroquinos terminaram o primeiro tempo à frente no placar, tomando a virada no segundo tempo.

Em 1974, o Zaire se tornou o primeiro país da chamada “África Negra” (ao Sul do Deserto do Saara) a se classificar para a Copa do Mundo, disputada na Alemanha Ocidental. Na estreia, os africanos, trajando chamativas camisas amarelas com um enorme leopardo (símbolo do país) desenhado ao centro, perderam para a Escócia por 2 a 0. Já a partida seguinte culminou em uma desastrosa goleada por 9 a 0 diante da Iugoslávia. Foi a maior lavada em Copas do Mundo até então – igualando a derrota da Coreia do Sul para a Hungria em 1954 e superada em 1982 por El Salvador, que levou 10 a 1 também da Hungria. O próximo adversário seria o Brasil. Os africanos perdiam por 3 a 0 quando o defensor Mwepu Ilunga protagonizou a cena abaixo:

O resto do mundo fazia gozação e apontava este lance como a prova cabal da imaturidade e ingenuidade do futebol africano, como se os jogadores desconhecessem as regras mais elementares e fossem irremediavelmente indisciplinados. Anos depois, porém, revelou-se que o defensor tentava ganhar tempo para evitar uma derrota maior. Depois do vexaminoso 9 a 0 no jogo anterior, emissários do ditador Mobutu Sese Seko teriam ameaçado os jogadores de serem impedidos de retornar ao Zaire caso fossem goleados novamente. Os 3 a 0 contra os tricampeões do mundo foi considerado um resultado normal, porém os zairenses jamais receberam a premiação prometida pelo governo, e alguns relataram retaliações na volta para casa.

Em 1978 foi a vez da Tunísia representar a África, e logo na estreia conseguiram a primeira vitória de uma seleção africana em uma Copa do Mundo: 3 a 1 sobre o México. Nos jogos seguintes, contudo, os tunisianos perderam para a Polônia e empataram sem gols com a Alemanha Ocidental, ficando em terceiro lugar na sua chave e sendo eliminados da copa da Argentina, que seria vencida pelos donos da casa. Um golzinho marcado contra os alemães teria sido o suficiente para a Tunísia avançar para a fase seguinte.

Anos 1980: o início da globalização do futebol

Para a copa de 1982, realizada na Espanha, pela primeira vez a Fifa ampliou o número de participantes de 16 para 24, destinando duas vagas para a África, duas para a Ásia e outras duas para as Américas Central e do Norte, contribuindo para “globalizar” o torneio – historicamente dominado por europeus e sul-americanos. Os estreantes Argélia e Camarões foram os representantes da África. Os argelinos venceram a toda poderosa Alemanha Ocidental – então bicampeã mundial – na estreia, perderam a partida seguinte contra a Áustria e depois venceram o Chile. Mesmo com duas vitórias em três partidas, os argelinos foram vítimas de uma autêntica “marmelada” cometida por alemães e austríacos, que fizeram a última partida da fase de grupos depois da vitória dos argelinos, sabendo exatamente qual resultado classificaria as duas seleções e eliminaria os norte-africanos pelo saldo de gols. Dito e feito, os alemães abriram o placar logo aos 10 minutos, e pelos 80 minutos restantes os dois times (que por sinal falavam a mesma língua, o alemão) tocaram a bola entre si sem oferecer perigo à meta adversária, sob uma chuva de vaias no que ficou conhecido como “Jogo da Vergonha”.

Já Camarões empatou suas três partidas contra Peru, Polônia e Itália, terminando a fase de grupos na terceira colocação, eliminados pelos italianos no critério de desempate (ambos tiveram três empates, mas a Itália marcou um gol a mais). Curiosamente, dentre todas as seleções que haviam participado do Mundial até então, Camarões era a única a não conhecer uma derrota – embora também não tenha vencido nenhuma partida. A Itália avançaria para derrotar o favorito Brasil na fase seguinte – na chamada “Tragédia de Sarriá” e conquistar sua terceira Copa do Mundo, vencendo os alemães na final.

Somente em 1986, novamente no México, uma seleção africana conseguiu, pela primeira vez, avançar da primeira fase da Copa do Mundo. Coube ao Marrocos a proeza: em um grupo com três europeus (Inglaterra, Polônia e Portugal), os marroquinos ficaram em primeiro lugar com uma vitória e dois empates. Nas oitavas-de-final, porém, caíram diante da Alemanha Ocidental pela contagem mínima, tomando o gol nos minutos finais do segundo tempo. Nesta mesma copa, a Argélia não conseguiu repetir o bom desempenho do mundial anterior, perdendo para Brasil e Espanha e empatando com a Irlanda do Norte.

A partir da década de 1980, era evidente a evolução técnica do futebol africano, em grande parte graças à globalização do mercado da bola. Jogadores africanos passaram a ter acesso e destaque nas ligas europeias, que cresciam em poderio financeiro graças às verbas publicitárias e direitos televisivos. Muitos jogadores de Camarões, Marrocos e Argélia, dentre outras seleções, jogavam no futebol francês – antiga metrópole colonial destes países. As seleções africanas passaram a contratar treinadores europeus, visando adequar seu estilo de jogo ao praticado nos centros do futebol.

Ainda assim, as vitórias destas seleções em copas, mesmo quando merecidas, eram consideradas “zebras”, pois os africanos eram apontados pela imprensa esportiva como favoritos a cair na primeira fase. Não sem motivos, pois os africanos somente haviam chegado às oitavas de final uma vez. O futebol africano havia produzido jogadores que se destacavam em copas, como o já citado Eusébio, Justin Fontaine e Tiganá, os dois últimos atuando pela França, ou nos grandes clubes europeus, como o goleiro zimbabuano Bruce Grobelaar, do Liverpool. Indo mais longe, da diáspora dos africanos escravizados nas Américas nasceu o afro-brasileiro Pelé, maior jogador de todos os tempos, autor de mais de mil gols e vencedor de três copas. Faltava, contudo, uma seleção africana que “enchesse os olhos” do mundo, que canalizasse esses talentos individuais para o sucesso da coletividade.

Esta surgiria em 1990, na Copa da Itália.

Os Leões Indomáveis chegam à Itália

Os africanos classificados para a copa de 1990 foram Camarões e Egito. O Egito retornava ao Mundial após 56 anos de ausência – como vimos, foi a primeira seleção do continente a participar de uma Copa, em 1934, por coincidência também na Itália. Mas não seriam os egípcios a romper com a sina dos africanos: empataram com Irlanda e Holanda (por sinal, campeã europeia) e perderam pra Inglaterra, deixando a competição na primeira fase.

Camarões viveria uma história muito diferente, apesar de ser sorteado no “grupo da morte” daquela copa: enfrentaria os campeões mundiais (Argentina), os vice-campeões da Europa (União Soviética) e a Romênia, seleção que tinha como base o fortíssimo Steaua Bucareste, clube campeão europeu de 1986 e vice de 1989. Os camaroneses chegaram à Itália com um elenco rachado entre os veteranos de 1982 e os novatos que se destacaram nas eliminatórias africanas. O treinador era o soviético Valeri Neponmiachi, com pouco sucesso em seu país natal e que só falava russo, dependendo de um intérprete para passar as orientações ao time. A pedido do “eterno” presidente do país, Paul Biya, o treinador convocou o veterano atacante Roger Milla, já batendo os 40 anos, que estava praticamente aposentado, jogando num time semiprofissional das Ilhas Reunião – colônia francesa no Oceano Índico. Nas vésperas do Mundial, o goleiro titular Joseph-Antoine Bell foi à imprensa se queixar da desorganização da preparação do time, e como retaliação foi rebaixado ao posto de terceiro goleiro. Thomas N’kono, titular da Copa de 1982, assumiu a meta camaronesa.

No dia 8 de Junho de 1990, após essa tumultuada preparação, esse era o time alinhado para enfrentar a toda poderosa Argentina de Maradona no jogo de abertura da Copa, no Estádio Giuseppe Meazza, em Milão, aos olhos de centenas de milhões de telespectadores.

A exemplo do Zaire de 1974, o uniforme de Camarões trazia, no lugar do escudo da federação, o animal símbolo da seleção. Apelidados de “leões indomáveis” e trajando o colorido da bandeira do país – camisa verde, calção vermelho e meiões amarelos, as cores do pan-africanismo – os camaroneses, apontados como azarões, estavam prontos para entrar pra história.

A estreia: o voo de Oman-Biyik rumo à glória

Quem esperava um time acuado buscando o empate diante da favorita Argentina rapidamente se surpreendeu com a velocidade e a força da seleção de Camarões. Durante o primeiro tempo, os africanos chegaram mais próximos do gol que os sul-americanos. Numa investida de Makanaki, a bola passou pelo goleiro Pumpido mas foi tirada em cima da linha pelo zagueiro Lorenzo. Os argentinos tinham como referência no meio-campo Maradona, muito marcado, e, várias vezes, parado com violência. Numa dividida, o defensor N’Dip acertou um verdadeiro golpe de caratê em Maradona, metendo a sola da chuteira no peito do craque argentino, o que lhe rendeu um cartão amarelo.

No segundo tempo, o loiro Caniggia entrou em campo pela Argentina, acrescentando velocidade ao ataque. Num ataque pelo lado direito, foi calçado por trás por Kana-Biyik, que recebeu o vermelho direto. A decisão do juiz francês Michel Vautrot, que até então tinha sido leniente em outras faltas muito mais violentas, pareceu rigorosa demais. Porém, alguns minutos depois, Camarões chegaria ao gol: após uma cobrança de falta pelo lado esquerdo, próximo à área argentina, François Oman-Biyik subiu sem marcação, e escorou com a cabeça uma bola que parecia inalcançável, lá no oitavo andar, na direção do goleiro, para baixo. Pumpido falhou e a bola escorreu lentamente para as redes, levando os camaroneses a uma emocionada comemoração.

Com um a menos e à frente no placar, Camarões finalmente recuou. Os argentinos foram ao ataque para evitar o vexame. Faltando dois minutos para o fim, o loiro endiabrado Caniggia disparou do campo de defesa, deixou dois marcadores para trás, e se aproximava da área adversária quando recebeu de Massing uma entrada no meio do corpo, tão estabanada e violenta, que a chuteira do defensor saiu voando. Houve um princípio de confusão e o camaronês, que já estava amarelado, foi expulso, enquanto comicamente tentava calçar a chuteira de volta. Os Leões Indomáveis agora tinham dois jogadores a menos, mas a Argentina não conseguiu tirar vantagem e teve que amargar a derrota por 1 a 0.

Roger Milla: gols e dança

Na partida seguinte, contra a Romênia, o zero-a-zero insistia no placar, conveniente para ambos os times, que haviam vencido na estreia. Porém, no segundo tempo o veterano Roger Milla entrou em campo e mostrou a que veio. Marcou dois gols na sólida defesa romena, comemorando com sua marca registrada: correndo à bandeira do escanteio e fazendo uma dancinha com a mão na cintura. Os romenos descontaram com Balint, e o resultado final de 2 a 1 garantiu Camarões na liderança do grupo e uma vaga garantida nas oitavas.

A classificação antecipada relaxou o elenco para a terceira partida da fase de grupos, contra a União Soviética. Os soviéticos vinham de derrotas contra Argentina e Romênia, precisavam golear Camarões para descontar o saldo de gols negativo e contar com uma combinação de resultados, inclusive de outros grupos, para tentar uma vaga nas oitavas (os quatro melhores terceiros colocados dos seis grupos se classificavam). Os Leões Indomáveis enfim conheceram sua primeira derrota em Copas do Mundo, tomando um 4 a 0 que não foi suficiente para tirá-los da liderança do grupo. Com o empate entre Argentina e Romênia no outro jogo do grupo, a URSS ficou em último lugar e se despediu da Copa do Mundo para sempre – o país seria desmembrado no ano seguinte, dando lugar a 15 novas repúblicas, e, destas, somente Rússia e Ucrânia voltariam a jogar nas Copas seguintes.

Nas oitavas de final, o adversário era a Colômbia, que havia se classificado em terceiro lugar do Grupo D, na “bacia das almas”, com um gol marcado por Rincón nos acréscimos contra a Alemanha. No tempo regulamentar, nenhum dos times abriu o placar. Na prorrogação, novamente, brilhou o veterano Roger Milla, que havia entrado no segundo tempo e abriu o placar já no segundo tempo da prorrogação. Minutos depois, quando os colombianos estavam no ataque em busca do empate, o folclórico goleiro Higuita recebeu uma bola recuada na intermediária e foi driblado por Milla, que prosseguiu rumo ao gol vazio para ampliar a vantagem. Os colombianos ainda descontaram com Redín, mas não foi o suficiente. Camarões chegava onde nenhuma seleção africana havia chegado: aos oito melhores de uma Copa do Mundo, e a três jogos da sonhada taça.

Todo Carnaval tem seu fim

A Copa de 1990 vinha recebendo críticas pelo futebol apresentado pela maioria das seleções, mais focadas na rigidez tática, no antijogo e em não tomar gols. A média de gols terminaria como a menor da história. A República da Irlanda, por exemplo, que estreava na Copa (somente a vizinha Irlanda do Norte havia participado até então), conseguiu a proeza de chegar às quartas-de-final empatando todos os jogos e marcando apenas dois gols. Mesmo a Holanda, campeã europeia, liderada pelos craques Ruud Gullit e Marco Van Basten, exibiu um futebol abaixo do esperado: empatou as três partidas da fase de grupos e foi eliminada nas oitavas pela Alemanha. Neste cenário, Camarões se destacava pela abordagem mais ofensiva, compensando a falta de técnica com muita velocidade e raça. As comemorações efusivas a cada gol contrastavam com a frieza dos europeus e angariaram a simpatia da torcida, especialmente no Brasil, com a eliminação precoce da Seleção diante da arquirrival Argentina nas oitavas de final.

Nas quartas-de-final em diante, a prioridade defensiva das seleções ficava ainda mais evidente. Tomar um gol era quase certeza de eliminação. Argentina e Iugoslávia ficaram no zero-a-zero e os argentinos venceram na disputa de pênaltis. A Alemanha passou pela Tchecoslováquia com um magro 1 a 0, com gol de pênalti, mesmo placar de Itália x Irlanda.

Quando Inglaterra e Camarões entraram em campo no Estádio San Paolo, em Nápoles, para decidir a última vaga nas semifinais, testemunhou-se o embate entre duas culturas muito distintas. Os ingleses, criadores do esporte, das táticas e do “chuveirinho” para a área, contra os valentes africanos, que, como os brasileiros anos antes, pareciam ter aprimorado a criação inglesa e produzido dela algo muito mais vívido e colorido.

Foram os ingleses, porém, que abriram o placar com um cabeceio de David Platt, no primeiro tempo. Camarões voltou do intervalo acionando, novamente, o veterano Roger Milla, entrando no lugar do meia Maboang. No inicio do segundo tempo, Milla foi derrubado na área. O líbero Kundé converteu o pênalti e empatou o jogo. Cinco minutos depois, o atacante Ekeké, que havia acabado de entrar, recebeu um passe açucarado de Milla e chutou na saída do goleiro Peter Shilton para colocar os camaroneses à frente. Os Leões Indomáveis se mantiveram à frente até os 38 do segundo tempo, quando o zagueiro Massing derrubou Gary Lineker na área. O próprio Lineker converteu o pênalti e empatou o jogo, que foi para a prorrogação.

Faltando um minuto para o fim do primeiro tempo da prorrogação, Lineker recebeu um lançamento na intermediária, aproveitando uma falha de marcação, avançou em direção ao gol e foi derrubado pelo goleiro N’Kono. Novamente, o craque inglês converteu o pênalti e levou os ingleses às semifinais, depois de um hiato de 24 anos. Terminava ali a aventura dos Leões Indomáveis na Copa do Mundo, deixando o gramado sob aplausos da maior parte da torcida do San Paolo. Inspirado por essa campanha, Pelé fez a famosa profecia: uma seleção africana seria campeã do mundo antes da virada do século.

As duas semifinais terminariam empatadas e seriam decididas nos pênaltis: a Alemanha levou a melhor sobre a Inglaterra e a Argentina sobre a Itália. Os alemães venceriam o Mundial mais pobre da história com um gol de pênalti contra os argentinos.

Legado

Um torcedor camaronês, em 2008, pinta o corpo com as cores e o nome da sua seleção | imagem: Jake Brown

O sucesso de Camarões levou a Fifa a ampliar de duas para três as vagas dos africanos na Copa do Mundo a partir da edição seguinte. Com a expansão para o formato atual, de 32 seleções, os africanos passaram a ter cinco vagas, abrindo espaço para a estreia de várias seleções da África Subsaariana, como Nigéria, Gana, Costa do Marfim, Senegal, África do Sul (já livre do apartheid), Angola e até o pequenino Togo.

Roger Milla seria mantido na seleção camaronesa para a Copa de 1994, onde firmaria um recorde de jogador mais velho a marcar em Mundiais, fazendo o gol de honra na derrota de 6 a 1 para a Rússia, aos 42 anos. Contudo, os camaroneses não conseguiriam repetir o sucesso de 1990: em todas as participações seguintes, caíram sempre na fase de grupos. Neste ano, conseguiram uma surpreendente vitória por 1 a 0 sobre o Brasil, que escalou um time reserva por já estar garantido nas oitavas, mas para os africanos não foi o suficiente para passar adiante.

Senegal, em 2002, conseguiu repetir a proeza de Camarões, em circunstâncias muito parecidas: bateram a campeã (e ex-metrópole colonial) França no jogo de abertura da Copa, se classificaram em primeiro lugar da chave, chegaram às quartas-de-final e caíram na prorrogação diante da Turquia – sim, foi uma Copa cheia de surpresas!

Já na Copa de 2010, disputada na África do Sul, foi a vez de Gana chegar às quartas e perder a vaga nas circunstâncias mais dramáticas possíveis: empatavam com o Uruguai até os acréscimos da prorrogação, quando o atacante Luís Suárez tirou com a mão, na linha do gol, um chute que selaria a classificação dos ganeses. Pênalti e cartão vermelho para o uruguaio. Asamoah Gyan teve a chance de ouro, mas a bola bateu no travessão. O empate persistiu e a vaga foi para a disputa de pênaltis, com vitória dos uruguaios. A primeira Copa disputada na África não teria um africano entre os semifinalistas.

A Copa de 2018, na Rússia, testemunhou um retrocesso nas campanhas africanas, com as cinco seleções eliminadas na fase de grupos – Senegal empatou com o Japão em todos os critérios, porém perdeu a vaga nas oitavas por ter sofrido mais cartões amarelos.

Nesta Copa de 2022, Marrocos e Senegal têm a chance de levar o futebol africano adiante.

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