Tem vezes que a ciência acontece no nosso ponto cego
“Como um pájaro libre, de libre vuelo
Como um pájaro libre, así te quiero
Nueve meses te tuve creciendo dentro
Y aún sigues creciendo y descubriendo”– “Como um pájaro libre”, Mercedes Sosa
Quem nunca entrou em desespero no momento da percepção do esquecimento de uma entrega de trabalho? E quem nunca pensou nesse mesmo instante: não estou atrasado, estou respeitando o tempo da minha criatividade. Interessante que as desculpas, em dado momento, nos fazem rir de nós mesmos, pois, a verdade é que quando a água bate na bunda é porque não há lugar para correr. Será?
Eu não sei você, velocista leitor e super-rápida leitora, mas eu vivo atrasado! O mais recente exemplo é este texto. Animado pelas referências que ultimamente leio, assisto e escuto me perdi no tempo. Esse sentimento de extravio do pensamento nem me serve mais como justificativa. Já usei demais, além da conta. E são nesses momentos desesperados de não saber para onde ir que sempre corro para o meu lugar sagrado, lugar de segurança e conforto: os ouvidos da minha mãe.
Ela nem se assusta quando apareço do nada. Seu olhar por cima dos óculos enquanto ajeita a máquina de costura me diz tudo: ao menos dessa vez você não fingiu que era um ninja procurando informações para surrupiar. O que você precisa? Antes de me responder me passe aquele pano verde.
— Então, é o seguinte… lembra a revista que eu sou editor de ciências?
— Lembro. O último texto que você escreveu eu tive que procurar sozinha porque você é um desnaturado e não mandou para ninguém da sua família.
— Isso! Essa mesmo!
— Qual o problema? – ela me pergunta apontando uma caixa de agulhas.
— Eu não sei o que escrever para a próxima edição… você pode me ajudar? Estou sem ideias…
— Sem ideias? Logo você que fala até a língua cansar!? O que aconteceu?
— Ah, me empolguei tanto com algumas coisas que acabei me perdendo dentro da minha própria cabeça…
— E qual eram as suas ideias?
— Primeiro pensei em fazer um texto intitulado “Kamen Kafka”, em que iria explorar o conceito de metamorfose pela perspectiva da biologia e da filosofia do Kafka. Pensei em usar o Kamen Rider Black Sun como metáfora para a questão da manutenção da memória do ser-vivo mesmo após seu corpo ficar 99% líquido dentro de um casulo. O problema é que comecei a acrescentar referências que não acrescentariam nada ao texto. Suponho que caí na problemática do recorte extremamente específico da pesquisa. A segunda coisa que eu pen…
(ela corta o assunto)
— Nossa, filho, precisa falar desse jeito tão chato? Quando você escreve para todo mundo ler é mais agradável. Ainda bem que esse texto não deu certo.
— Esse é o problema de escrever sobre ciências… por mais que eu tente, sempre acabo caindo na armadilha do “se eu escrever bonito, de forma culta, elegante, vai ser científico e vai ser bom”.
— Mas será que é esse o caminho? Você vive falando que um texto sobre ciência fora da universidade pode ser mais, como você diz, (imitando a minha voz) “livre das amarras de paradigmas controladores da imaginação do sujeito”. Vai, me passa aquelas páginas de livro.
— Quais páginas de livro? – olho na mesa na qual ela está trabalhando com a máquina de costura e vejo que há tecidos e enchimentos diferentes da última vez que eu fui conversar com ela. Canetas coloridas, pistola de cola quente, réguas, compasso, tesouras de vários tamanhos e outras tantas ferramentas fazem parte daquele cenário que lembra em muito um ateliê (mas é apenas a mesa que almoçamos juntos aos domingos).
— Aquelas com velcro em forma de planetas, constelações, astronauta, nave. Ao lado do furador de ilhós.
— Ah, beleza. O que você tá fazendo?
— Quiet books.
— E por que você tá fazendo isso?
— Vida de aposentada é uma coisa estranha, pois depois de trabalhar tanto tempo eu não sei o que fazer com o tempo que agora tenho. Então resolvi fazer trabalho voluntário. Estou fazendo esses livrinhos em tecido para ajudar a arrecadar um dinheirinho para um grupo de gestantes carentes. São meninas muito jovens que precisam de toda ajuda possível.
— Nossa, nem sei o que dizer…
— Não precisa falar nada, principalmente se for besteira. Mas ainda não entendi como posso te ajudar nesse seu problema com o texto.
— E o que é Quiet Book? De onde surgiu esse trem? Como você descobriu? E desde quando você sabe fazer isso?
— Bem, filho, sabe, um Quiet Book, ou Livro Sensorial, é uma preciosidade para os pequeninos. É um daqueles livros feitos com carinho, todo em tecido ou feltro, cheio de atividades para eles explorarem. Eles têm de tudo! Coisas que as crianças podem tocar, puxar, abrir, fechar… É uma verdadeira festa sensorial para os pequenos. E, olha, não é só diversão não, é aprendizado também! Cores, números, letras… Tudo isso é trabalhado de forma tão sutil que as crianças nem percebem que estão aprendendo. Ah, e o melhor de tudo é que dá para fazer em casa, como eu, sem muita experiência, estou fazendo. Com um pouquinho de habilidade, uns pedacinhos de feltro, botões, zíperes… Você pode criar um mundo de possibilidades para os pequenos se divertirem e aprenderem ao mesmo tempo.
Descobri essas belezinhas pensando em projetos para estimular os sentidos e promover o desenvolvimento das habilidades motoras finas nas crianças. Às vezes, ajudar as mães é apresentar para elas maneiras de prender a atenção da criança ao mesmo tempo em que a criança aprende alguma coisa enquanto a mãe descansa sua própria cabeça. Cada atividade presente nesses livros é cuidadosamente pensada para proporcionar uma experiência sensorial diferente a cada interação com o livro. Quando as crianças interagem com essas atividades, estão na verdade exercitando o cérebro de uma forma maravilhosa. Cada botão que abrem, cada zíper que fecham, estão trabalhando a coordenação motora fina e a destreza das mãos.
E não para por aí, não! Os Quiet Books também são uma ferramenta incrível para estimular o desenvolvimento cognitivo. Ao combinarem cores, números e formas, as crianças estão exercitando a mente de uma maneira lúdica e divertida.
Então, você vê, por trás desses livros encantadores há toda um estudo do desenvolvimento infantil em ação, e é por isso que eles são tão preciosos para o crescimento e aprendizado dos pequenos.
— Hum… sensorial, lúdico, cognitivo… depois sou eu que falo difícil!
— Ah, vai se catar! Você acha que sua mãe não sabe estudar? Sei muito bem procurar manuais de instrução, professores, vídeos explicativos. Não é porque passei dos 60 que do nada me tornei incapaz de usar a cabeça!
— Sua cabeça funciona melhor que a minha! Tanto que você conseguiu fazer ciência de uma maneira que eu não conseguiria imaginar!
— Ih, lá vem você com essas conversas… bom, pelo que eu te conheço você conseguiu o que queria.
— Sim! Graças a você! Muito obrigado!
— De nada, agora me passa os ilhós para eu finalizar esse livro.
E foi assim, pelos olhos da minha mãe, que consegui ver o assunto e terminar o texto a tempo da publicação. Tem vezes que a ciência acontece no nosso ponto cego, melhor dizendo, tem vezes que a ciência acontece porque ignoramos seu acontecimento fora do padrão que nos é estabelecido.
Em nossos julgamentos silenciosos do que não é fazer ciência interpretamos fenômenos significativos pejorativamente, como algo pequeno. E o pior, podemos até sentenciar que há uma certa idade, que há um certo e correto tempo para fazer ciência. Será que não estamos precisando de uma metamorfose para melhor entendermos que ciência é um dos afazeres constantes do humano? Assim como respirar?
Confesso que não sei! Quem sabe na próxima edição de Úrsula eu não atrase a entrega do trabalho e consiga trazer o diálogo entre Gregor Sansa e Kotaro Minami.
Por ora, a única coisa que sei é que aprendi a fazer ciência dentro de casa. Assim como você que leu e chegou até o final deste manuscrito.
Um comentário sobre “A boa idade científica”
Que bacana! Amei os quiets book!