Pai do pai: Constituição do sujeito em “O Futuro Dura Muito Tempo”, de Louis Althusser

Althusser desenvolve uma escrita que entrelaça real e desejo do real, vontades e perdas, danos, carinho, atenção

“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”
– Caetano Veloso, “Dom de Iludir”

Capa do livro

Proponho, neste artigo, uma leitura do processo de aprendizagem e da constituição do sujeito no livro O futuro dura muito tempo (L’avenir dure longtemps, 1992) de Louis Althusser. Nesse escrito autobiográfico, o autor narra o processo de constituição da subjetividade na sua infância, adolescência e maturidade, seus questionamentos, suas tristezas e alegrias. Althusser reconstrói, pelo fio da memória, momentos marcantes de sua vida que, por uma via literária, nos permitem visualizar os porquês de sua personalidade.

A narrativa descreve as personagens, as paisagens e os instrumentos culturais que tiveram importância para a formação do narrador. Descreve as mais diversas relações que ele estabeleceu durante sua infância, que foi vivenciada nos anos 20 do século XX. Uma infância marcada pela reclusão em meio à riqueza cultural da Argélia e por uma multiplicidade de sujeitos que permearam a sua constituição: sua mãe, pai, avós, professores, amigos – e o tio falecido Louis, que Althusser acusou de sempre interferir na relação dele com sua mãe; o tio era alguém que ela desejava ver no menino. Todos esses eram vozes que ditavam os valores que deveriam guiar a sua vida.

A análise do livro que apresentamos é fundamentada em autores que construíram suas teorias tendo a formação do sujeito como base de seu método investigativo — António Nóvoa, Denice Catani, Belmira Bueno são alguns exemplos. São teóricos do campo da educação que enfatizam, ainda, a importância das interações sociais na formação do aluno.

Assim, esta leitura concerne à aprendizagem e à constituição do sujeito. Discuto a relação do autor do livro com as outras personagens da narrativa e os elementos de significação que emergiram destes encontros. Procuro mostrar como livros literários podem ser importantes materiais na formação do educador. A leitura da obra memorialística sensibiliza e atinge diretamente o leitor no momento em que promove o encontro do autor consigo mesmo e com o leitor, pois suas memórias podem ser somadas às memórias de quem lê e, talvez, construir novos elementos conceituais para a compreensão da formação do sujeito.

Um e muitos Althusser

Em O futuro dura muito tempo, Louis Althusser desenvolve uma escrita que entrelaça real e desejo do real, vontades e perdas, danos, carinho, atenção. Muitos estão presos a esta teia: seus pais, seus avós, seus tios, colegas de classe, amigos, professores, todos esses profundos formadores desse sujeito genial e perturbado, com sombras e sonhos atrás de si.

Tudo começa pela morte de sua mulher, Helène, que ele próprio, Althusser, estrangulou num momento de loucura. Ele se culpa e sabe da gravidade do seu ato. O livro é uma forma de se redimir e desabafar: tentativa de mostrar a todos quem ele realmente é ou, pelo menos, como ele se vê de verdade.

Muitas são as experiências narradas por esse sujeito, que chega a ser plural: podemos dizer que há um e muitos Althusser ao mesmo tempo, que vão e voltam em questionamentos, dúvidas, pulsões de vida e de morte. Logo no início do escrito, lemos sobre algo que guiará a narrativa até o fim: ele é o oui, o sim que sempre responde a tudo e todos, passivamente, da infância à idade madura, o sim mentiroso, uma vez que deseja ser não, rebelar-se, sair para outros lugares. A educação recebida, tolhedora, fez Althusser aceitar essa falsa afirmativa. O autor também é o lui, o outro. Primeiramente, ele é a figura do tio morto, por quem a mãe era apaixonada, e também o desejo de um filho forte que o pai ao mesmo tempo repele e traz para junto de si, não da forma que o menino deseja:

“(…) reduzido portanto a artifícios de sedução e de impostura”. (p. 84)

Envolto pela mãe em uma neblina de cuidados e desejos, Althusser revela-se frágil e, à primeira vista, apático. O poder e o desvelo que foram dispensados para ele por sua mãe tornaram-se seus maiores conflitos. Essas duas palavras, poder e desvelo, serão importantes para elucidar o futuro desse rapaz.

Sua mãe – mulher do campo, inteligente, também tolhida em seus desejos, educada para ser passiva, frustrada – “inventava”, quando Althusser era criança, doenças para ele e sua irmã. Eram crianças pensadas como vulneráveis sob o olhar materno, que sempre necessitavam de atenção. Esses cuidados não se davam apenas na área da saúde: a mãe intrometia-se nas tentativas de relacionamentos (não efetivados, pelo menos inicialmente) do menino Althusser; interferia em seus sonhos, fantasias, sexualidade. Essa intromissão, esse desvelo exagerado, adquiriu carga negativa para o menino que, em vez de gritar, reprimiu. Na tentativa de ser tudo o que a mãe esperava: tornou-se melhor aluno, professor respeitador, filósofo famoso. Sua relação estreita com a mãe só vai começar a se desligar quando o autor vai para a casa de seus avós, estudar em outra escola, em razão de mais uma doença de sua irmã. Ali, começou a sentir-se livre, a viver outras experiências, principalmente em relação à sua sexualidade. Fatos que iriam marcar para sempre sua memória.

O cordão umbilical efetivamente se corta quando o escritor vai para um campo de concentração, onde é obrigado a trabalhar, racionar comida e conviver apenas com homens. A expansão em alegria desse sujeito é notável, uma vez que seus passos, mesmo estando presos, agora são livres. O autor reflete a partir da “prisão” sobre a liberdade subjetiva de sua mãe:

“Pode-se, pois, curar perfeitamente toda uma série de fobias sem nenhuma análise: basta, por exemplo, que o marido morra, que a senhora Althusser volte a ser Lucienne Berger e tudo entra em ordem, talvez não a ordem do desejo e da liberdade, mas pelo menos a do prazer que, como princípio de prazer, de ato tem seriamente, segundo Freud, algo a ver com a libido, esse Espírito Santo dos crentes (…).”

Essas e outras passagens demonstram o que, a meu ver, é puro lirismo literário nesse livro de Althusser. Efetivamente, no momento de prisão, o sujeito começa a se questionar sobre sua vida e seus relacionamentos. Ainda não percebe muitas coisas que, posteriormente, estarão claras.

Liricamente, ao sair do campo de concentração, percebemos que o autor continua “preso” aos alicerces estabelecidos durante sua infância. Em determinado momento, diz que não desejava sair do campo:

“Positivamente, eu não queria de jeito nenhum, por causa de uma força mais constrangedora do que minha consciência e meus planos refletidos, escapar daquele cativeiro que me caía como uma luva” (p.102)

Posso pensar que, talvez, ele não quisesse encarar a realidade e permanecer num mundo idealizado, onde não se precisa forjar nada, nem encarar a mãe – que dispensa a ele um cuidado que na verdade desejava entregar para outro Louis – nem o pai, que instigava temor por sua grandeza e ausência, na medida em que ele sempre tentou agradá-los, assim como a todos os outros.

Em suas relações com o mundo e com as pessoas, ele estará nesse jogo entre forças e cuidados. O autor desenvolverá uma atitude que chamará de pai do pai: a tentativa de projetar, em seus relacionamentos, a figura do outro, a autoridade e respeito da figura paterna que nunca esteve realmente presente:

“Mas por muito tempo acreditei (e inclusive no início de minha análise) que eu brincava com ele de ser o filho amante e dócil, que então o considerava como um bom pai, porque naquela ocasião eu desempenhava em relação a ele o papel de ‘pai do pai’, fórmula que me seduziu muito tempo e me pareceu exprimir meus traços afetivos. Um modo de solucionar paradoxalmente minha relação com um pai ausente dando-me um pai imaginário, mas me comportando como seu próprio pai.”

Ao convencer os professores e, mais tarde, seus colegas de trabalho, sobre algum pensamento seu, Althusser tinha consciência do que estava fazendo, do papel que procurava completar.

Quando jovem, o menino afetava suas redações em escrita rebuscada, acadêmica. Assume, em determinado momento da obra, não ser excelente em conteúdos, mas bom em redação, o que é suficiente para, retoricamente, agradar, trazer o outro para junto de si.

“Pela primeira vez, descobri que tinha uma espécie de força de eloqüência contagiosa, mas que para mostrá-la recorria espontaneamente a outra espécie de artifício: justamente um excesso no ritmo verbal, no pathos e na emoção contida que eu queria, como que por contágio, fosse partilhada.” (p. 90)

Quando maduro, já unido com sua companheira Helène, Althusser tinha a pulsão de machucá-la, chamar sua atenção, ao mesmo tempo amá-la e repeli-la, tal qual fez seu pai. A função de pai do pai se repete. Fazia ele que a companheira conhecesse e conversasse longamente com sua possíveis amantes. Queria ver, experimentar até onde poderia levar tais provocações. Com a companheira, Althusser pôde provar o sabor de ter, novamente, uma mãe. Esse sabor amargo desagrava o autor.

Heléne era uma ativista de esquerda de origem humilde e sofrida. Sua mãe destratava-a, seu pai era aquele com quem a moça tinha uma boa relação. Seu pai, infelizmente, veio a falecer, a mãe, logo depois. Vemos, pela fala de Althusser, que Helène tinha medo de ser uma mulher má, tal qual sua mãe foi. Ela também, como Althusser, vivia perturbada por seu passado. Vemos aí um dos motivos que levam a mulher a tentar exercer um papel de mãe. Ao mesmo tempo, Althusser deseja protegê-la e feri-la, mostrar sua autoridade, num papel de pai. A relação que se faz a partir desse contexto é de cumplicidade e doentia aos dois, como num círculo vicioso que não termina.

Em meio ao amor e a dor de ser tido novamente como filho, o desequilíbrio tornava a tomar conta de si. Os amigos o criticavam, diziam que ele somente os usava, não servia para uma amizade firme. Uma delas reclamou:

“Você sabe muito bem utilizar seus amigos, mas não tem nenhum respeito por eles.”

O autor, em determinado momento da narrativa, mostra que se importava muito mais consigo mesmo.

Althusser, por fim, conclui que eliminar Helène era como matar a si mesmo, assim como a sua mãe, seu analista, seus relacionamentos, e sair dessa angústia sempre presente. Ao acabar de tecer sua narrativa, o filósofo considera-se definitivamente melhor do que sempre foi. Aos sessenta e sete anos, acredita-se livre e feliz. A reflexão ao fim do livro é positiva: fica a oportunidade de viver a vida sem exageros, aprender, enfim, o que quer dizer “amar”:

“Desde então, creio ter aprendido o que quer dizer amar: ser capaz de tomar não essas iniciativas exageradas sobre si, mas de ser atento ao outro, respeitar seu desejo e seus ritmos, nada pedir mas aprender a receber cada presente como uma surpresa da vida, e ser capaz, sem nenhuma pretensão, do mesmo presente e da mesma surpresa para o outro, sem lhe fazer a menor violência.”

O dilema de estabelecer seus relacionamentos sob o signo do pai do pai dissolve-se aí, na maturidade da percepção do sujeito que julga-se, finalmente, como feliz. O futuro dura muito tempo é a constatação da possível perenidade do ser quando o sujeito encontra a si.

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