A arte de não afastar o leitor: uma entrevista com Stênio Gardel

Em entrevista à Úrsula, o escritor Stênio Gardel reflete acerca do romance A palavra que resta (2021)

Falar sobre A palavra que resta (2021), livro de Stênio Gardel, não é simples. Tento fazer esta introdução, mas não consigo, porque o autor constrói um trabalho tão completo que parece não existir muito mais o que comentar.

Na obra, acompanhamos a busca de Raimundo, um homem que aprende a ler na terceira idade para, finalmente, conseguir decifrar uma carta deixada por seu amor da adolescência, Cícero. Não se trata de um spolier dizer que Cícero e Raimundo foram separados por diversos problemas, incluindo a violência extrema no Nordeste brasileiro da primeira metade do século XX. Uma violência potencializada pela xenofobia, pela homofobia e pelo recorte econômico e cultural.

Temos uma história profunda e melancólica, mas não óbvia, tampouco demagógica. As personagens, não idealizadas pelo panfletarismo (um problema presente em muitos autores engajados em causas sociais), são reveladas entre traumas e vontades. A cada página, encontramos um romance que busca demonstrar a força da arte na transformação de ideais e valores. Raimundo, que não é rima nem solução, recusa-se a ser réu de seu sofrimento: ainda que demore, ele entende que a liberdade passa pela autoaceitação e pelo enfrentamento de todas as opressões jogadas nas suas costas. Inclusive, a cultural.

A narrativa criada por Stênio resulta em um texto poderoso sobre a importância da literatura (e das manifestações artísticas em geral) no processo de cura. Uma mensagem forte que cativa leitores em todo o mundo, incluindo os jurados do prestigioso prêmio literário National Book Award.

Stênio Gardel | imagem: O Povo
Stênio Gardel | imagem: O Povo

A fim de procurar compreender como Stênio Gardel criou sua obra, decidi entrevistá-lo. Leia a conversa a seguir.

Stênio, como surgiram, para você, a literatura e o desejo de escrever? 

Acredito que a vontade de escrever surgiu das minhas leituras. Lembro-me de uma especial: O cão dos Baskervilles (1902), de sir Arthur Conan Doyle. É uma trama de Sherlock Holmes e me recordo de ficar completamente encantado e impressionado com o clima de suspense, as reviravoltas, a inteligência do detetive e a amizade com dr. Watson. Acho que ali me perguntei se poderia escrever algo que mexesse com as pessoas da mesma forma que aquele livro estava mexendo comigo. Eu tinha 12 ou 13 anos e o desejo de escrever não me largou mais, nem eu larguei dele, apesar de ter demorado mais de vinte anos para realizá-lo.

Como as oficinas de Socorro Accioli ajudaram você na escrita d’A Palavra que Resta? A ideia do livro já existia antes das aulas?

As aulas foram fundamentais, não apenas do ponto de vista do aprendizado a respeito de escrita criativa, como também me ajudaram ainda a perceber que aquele era o momento para me dedicar e arriscar e acreditar no que queria escrever. Acreditar foi o mais difícil, acreditar que estava escrevendo ou iria escrever literatura. Desejava obter uma legitimação e os cursos foram o início para chegar a alcançá-la, já que Socorro e os colegas liam os meus textos. Quando cheguei ao Ateliê de narrativa, projeto de Socorro, já tinha a ideia central e alguns trechos avulsos, começos de capítulos. Mas tanto a decisão de começar para valer quanto a escrita em si aconteceram no decorrer de quase um ano das oficinas.

Raimundo é um homem gay, idoso, nordestino e empobrecido. Mesmo assim, ele reproduz, no princípio, vários preconceitos, principalmente contra Suzzaný. Como se dá a escrita sobre a violência? Como criar a voz de um violentador que foi violentado, sem ser caricatural?

As cenas de violências foram as mais difíceis de, tecnicamente, escrever. Como colocar o protagonista para agir de forma tão abjeta e destruidora, sem que isso afaste o leitor? Mais: como escrever a violência para que o leitor pudesse entender que o livro era exatamente contra a violência? Sabia que a história de Raimundo teria que passar por esses momentos, tanto aqueles em que ele sofre a violência quanto aqueles em que ele a reproduz, expondo a característica cíclica da fobia contra LGBTQIAP+. Algo que me ajudou foi permitir que o leitor lesse e sentisse tudo a partir dos pensamentos de Raimundo, da sua tempestade interior. Outro fator foi a própria Suzzanný, a força dela quando do confronto e depois me permitiu construir um contraponto a Raimundo. Já a caricatura: nunca parei para pensar nisso. Na verdade, o meu caminho foi sempre o de tentar criar essas personagens com a complexidade da mente, do corpo e dos sentimentos humanos, sem reducionismos ou exageros.

Além da agressão física, Raimundo passa por violências culturais e econômicas. em sua vida, mas, com algum custo, sobreviveu a elas. Qual a importância do trauma para a formação da personagem?

A angústia de Raimundo, sua inabilidade de perceber as consequências de seus atos senão apenas tarde demais, toda sua elaboração desses atos, isso tudo está no texto. Sim, os traumas são formadores de Raimundo. Como exemplo, podemos citar, justamente, a reprodução da violência, que tem raízes na relação traumática com o pai, no rompimento que a mãe lhe impõe de forma até cruel. Essas questões, contudo, fazem parte do que eu gosto de ler e do que quero escrever em literatura – o drama, o sofrimento, não de maneira barata ou caricata, mas como parte da vida.

Stênio Gardel | imagem: O Povo
Stênio Gardel | imagem: O Povo

Apesar das opressões social e sexual, Raimundo sobrevive e, sob certa perspectiva, supera a condição de pária social. O livro seria uma “jornada do herói” da pessoa marginalizada?

A expressão “jornada do herói” é específica: refere-se a uma espécie de fórmula ou esquema para escrita. Como não a conheço a fundo e não a usei para escrever o romance, não posso afirmar se o livro se encaixa nessa perspectiva (acredito que não). Há, porém, uma transformação de Raimundo, baseada na sua autoaceitação como homossexual (e na percepção do que isso representa) e na sua busca pela compreensão da língua escrita, forma de libertação e poder de escolha. Contudo, isso não significa que a sua jornada esteja completa: a última palavra do livro é “começo”. Colocar-se nessa posição no fim da obra não é só potente, mas sim de possibilidades, de outras jornadas pela frente.

A despeito da diferença etária entre você e as personagens, existem alguns pontos de contato entre você e suas criações. Você se colocou no livro?

Sim, alguns. Em especial, com Raimundo. Somos ambos homossexuais, crescemos os dois na zona rural, vivemos os dois em um ambiente patriarcal e preconceituoso, temos nós dois essa vontade de palavra. Nunca sofri as violências que ele sofreu, mas tive meus momentos de angústia por me perceber diferente e perceber que o diferente poderia não ser aceito no mundo no qual vivia. Utilizei uma parte dessas angústias, dos meus pensamentos, da forma como fui elaborando e enxergando a minha homossexualidade inserida na minha vida para escrever os sentimentos de Raimundo em relação às próprias descobertas.

O livro foi muito bem aceito nos Estados Unidos e ganhou o National Book Award. É a violência ou o afeto que superam barreiras culturais?

Não acho que precisam ser apenas afeto ou apenas violência. Para cada leitor, uma dessas extremidades pode ser mais sentida do que a outra. Ou, talvez, seja a superação da violência pelo entendimento das possibilidades de afeto, compreensão que captura o querer do leitor de qualquer lugar. Acho que esse vencer de barreiras se deve também a algo que vai além dos temas, algo mais profundo e inerente ao texto literário: a humanidade das personagens e as suas vivências, virtudes, falhas e dores.

Autor

  • Autor dos livros de poesia Nada (Patuá, 2019) e Hinário Ateu (Urutau, 2020). Já publicou em revistas como Mallarmargens, 7Faces, Zunái e publica com regularidade nas revistas Úrsula e Subversa.

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