Não tire a política do meu quadrinho

O historiador Marcelo Presto debruça-se sobre HQ e política, além de listar indicações de quadrinhos

É cada vez mais comum navegarmos pela internet e encontrarmos discussões nas esferas do entretenimento que querem tirar o teor político de filmes, séries ou histórias em quadrinhos. Tais manifestações são frutos de uma percepção errônea, na qual o senso comum imagina que obras voltadas para o lazer são meramente escapistas.

Por mais fantasiosa que uma história possa ser, ela foi produzida por um autor, em um contexto social que a imbui de questões diversas, como relações de poder, e que dizem respeito à interação do ser humano. Vejam: se, por um lado, temos uma Turma da Mônica, com crianças brincando e se confrontando por um domínio da “lua”, por outro lado, encontramos super-heróis (Superman e Capitão América, por exemplo), criados em cenários de exploração e guerra, lutando por ideais de igualdade e em favor de fracos e oprimidos.

No universo das HQs, existem títulos que se colocam com ainda mais força em discussões políticas e nada mais interessante do que jogar luz em algumas dessas produções, como Teocrasília (2018), de Denis Mello, e Depois que o Brasil acabou (2021), de João Pinheiro.

“Teocrasília” (2018), de Dennis Mello | imagem: Editora Guará/divulgação
Teocrasília (2018), de Dennis Mello | imagem: Editora Guará/divulgação

Começando com Teocrasília, um projeto antigo de Denis, iniciado em 2016 como um jornalzinho que pretendia resumir, de forma dramatizada, os últimos anos de mergulho no precipício político que resultou na complexa situação brasileira do final da década de 2010. O autor analisou a conjuntura e ampliou a tensão dos conflitos ideológicos a fim de criar uma distopia social. O que ele não esperava, porém, é que a realidade poderia ser ainda mais distorcida.

Na trama, encontramos um Brasil perdido em uma ditadura teocrática, com militares e pastores ocupando cargos políticos e criando leis de comportamento enquanto roubam o máximo que podem dos cofres públicos. Acompanhamos um grupo de resistência que inicialmente cria uma propriedade secreta e isolada, mas que rapidamente é massacrada e seus sobreviventes decidem tomar outros meios de ação. É uma narrativa que incomoda de maneira semelhante à série The handmaid’s tale (O conto da aia, em português), um exercício de futurologia que transforma os maiores pesadelos em realidade e perturba o público por gerar a sensação de que o pior pode acontecer.

Mello utiliza recursos de diferentes linguagens para explorar e desenvolver o cenário, sem perder o dinamismo da leitura. Além da divisão em capítulos e do uso de pequenos contos complementares sempre no fim dos volumes, há matérias de jornal, comentários de blogs e conversas de WhatsApp. Todavia, o detalhe mais singular seja, talvez, o fato de Denis Mello ter escrito a obra antes dos retrocessos sociais advindos do avanço da onda conservadora pelo mundo. A produção apenas se manteve inédita em razão de ele não ter conseguido lançá-la de forma independente. Felizmente, a editora Guará abraçou o projeto e já lançou três edições (haverá, ao menos, mais um volume para o encerramento da sequência).

“Depois que o Brasil acabou” (2021), de João Pinheiro | imagem: Editora Veneta/divulgação
Depois que o Brasil acabou (2021), de João Pinheiro | imagem: Editora Veneta/divulgação

Outra HQ que podemos ressaltar é Depois que o Brasil acabou, publicação da editora Veneta, com histórias escritas por João Pinheiro entre 2016 e 2021. E, antes de qualquer outro comentário, ressalto sobre como é bizarra a forma como esses dois títulos se conectam, mesmo um sendo uma ficção científica e outro trazendo um retrato ácido do presente.

“Depois que o Brasil acabou” (2021), de João Pinheiro | imagem: Editora Veneta/divulgação
Depois que o Brasil acabou (2021), de João Pinheiro | imagem: Editora Veneta/divulgação

Quanto ao trabalho de Pinheiro, trata-se de uma antologia com narrativas divulgadas, em um primeiro momento, em coletivos, no site da própria editora e em publicações independentes. Por serem pequenos contos, não irei destrinchar cada um deles, mas chamo a atenção para o funcionamento dessas histórias: são como o grito de desespero de um país tomado pela violência contra os marginalizados. Em particular, a partir do local de fala de João Pinheiro. E aqui falo mesmo de um ponto geográfico: a periferia de São Paulo, sempre abandonada pelo poder constituído, mas que, desde o golpe, vem sentindo com ainda mais força a segregação e a indiferença.

O traço do autor transita de composições mais caricatas para outras mais realistas, passando por influências do underground oitentista e momentos em que aproveita a sujeira das manchas do nanquim para ajudar na própria trama.

Como pudemos perceber, no caso dessas duas obras, a política não existe apenas enquanto contexto de produção vivido pelo autor, mas também é aproveitada enquanto momento presente para inspirar e elaborar interpretações sobre conflitos que, muitas vezes, nem se concluíram.

Recomendações

Pensando na temática HQ e política, poderia fazer inúmeras recomendações de quadrinhos de épocas e locais diferentes. No entanto, selecionei três que podem ser encontrados com facilidade.

Capitão América: a verdade

Lançado pela Panini em 2023, Capitão América – Verdade traz uma história de Robert Morales e Kyle Baker, publicada originalmente em 2003 nos EUA. O enrendo aborda uma tentativa do governo estadunidense de recriar o herói que, supostamente, morreu durante a Segunda Guerra Mundial. Para tanto, recorre-se a experiências que levam à morte centenas de soldados negros. Uma trama que encontra ecos na realidade, uma vez que, nas décadas 1930, 1970 e 1990, ocorreram experimentos científicos que vitimaram muita gente.

“Capitão América: a verdade” (2021), de Kyle Baker e Robert Morales | imagem: Editora Panini/divulgação
Capitão América: a verdade (2021), de Kyle Baker e Robert Morales | imagem: Editora Panini/divulgação


Notas sobre Gaza

Em meio aos conflitos atuais entre Israel e Palestina, é interessante tomar contato com a obra de Joe Sacco. Pertencente ao subgênero do quadrinho jornalístico, Notas sobre Gaza (2010) apresenta a tentativa do autor em reunir informações sobre o conflito de 1956, quando vários civis foram mortos pelo exército israelense em uma operação militar de rotina.

Mas, como falar sobre algo que ocorreu na década de 1950, se massacres aconteceram em todas as décadas seguintes e ainda hoje milhares são mortos nessas incursões? Por que não falar sobre como os palestinos foram expulsos de suas casas quando o estado de Israel foi criado em 1948? Essas questões são trabalhadas de forma bastante visceral por Sacco, coletando memórias e vivendo os próprios perigos.

“Notas sobre Gaza” (2010), de Joe Sacco | imagem: Editora Companhia das Letras/divulgação
Notas sobre Gaza (2010), de Joe Sacco | imagem: Editora Companhia das Letras/divulgação


Regresso ao Éden

Por fim, recomendo Regresso ao Éden (2022), de Paco Roca, autor espanhol que se destaca pela produção de histórias carregadas da memória do cotidiano de pessoas comuns. Acompanhamos um mergulho intimista na vida de uma mulher cujo passado tem sido construído e reconstruído a partir das lembranças despertadas por três fotografias da juventude. Encontramos fragmentos que guiam uma pessoa que atravessou o século XX, incluindo as dificuldades de viver em uma ditadura da qual se recorda de modo tangencial.

“Regresso ao Éden” (2022), de Paco Roca | imagem: Editora Devir Livraria/divulgação
Regresso ao Éden (2022), de Paco Roca | imagem: Editora Devir Livraria/divulgação

Autor

  • É historiador pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), arqueólogo pelos campos trabalhados, youtuber, e agora, jornalista em formação. Os objetos de estudo tratam de patrimônio e arte. Mas a sua grande paixão é a cultura pop, colecionando HQs, de narrativas com super-heróis a obras independentes.

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