Primeiro sinal. Segundo sinal. Terceiro sinal…. Dramaleão!

Um processo de ensino-aprendizagem que devolve voz aos alunos e os coloca como protagonistas do conhecimento

imagem: Skil Fibber

Este texto foi gentilmente criado pela autora a pedido da Úrsula, e apresenta a dissertação “Dramaleão: afetos de um Camaleão perante o drama através da ambientação cênica” (baixe) – pesquisa acadêmica escrita com forma de fábula – contando o que acontece depois que se fecharam os panos do mestrado.


Era fim de tarde e o auditório estava lotado. O Camaleão, que já havia vivenciado inúmeras aventuras, encontrava-se mais nervoso do que nunca. Espiava pela cortina vermelha da coxia o local encher cada vez mais com outros animais que provocavam um mar de ruídos ávidos pela aula magna da nova escola, a: Dramaleão. Até mesmo velhos conhecidos como o Pássaro Azul e o Esquilo de olhos grandes e esbugalhados estavam presentes para ouvir suas experiências e conhecimentos acerca do drama1.

Veja também:
>> “Circo e Filosofia: Ensinando Aristóteles com Malabarismo“, por Meg Wallace
>> “Belchior canta o método científico“, por Antonio Neto

Mas faltava uma parte importante dessa jornada. O pequeno Camaleão suspirou e voltou para dentro do camarim, faltava a Camaleoa, sua amiga, que o ajudou a desbravar o caminho do drama e lhe mostrou como era um processo de drama realizado em uma escola pública, e que essa metodologia era capaz de promover um processo de ensino-aprendizagem que devolvia voz para os alunos e os colocava como protagonistas no desenvolver dos seus conhecimentos.

O Camaleão não acreditava que um ano havia se passado desde que a conheceu atravessando a ponte de tijolos amarelos, que havia conhecido, também, a professora Vanessa Ribeiro e participado do drama Entre Fósforos e Estrelas2. A memória ainda era tão forte em seu corpo que parecia que tudo havia acontecido há algumas horas. Mas ele sabia – afinal havia estudado em Bondía (2002) – que, quando ocorre uma experiência, essa atravessa o nosso corpo, e esse atravessamento nos deixa marcas e afetos.

O pequeno animal se encarava no espelho da penteadeira que havia naquele cômodo, notou que a sua pele mesclava um tom de amarelo com branco devido às paredes e à iluminação do camarim. Ao fitar fixamente seu olhar ele se transportou e começou a navegar em seus pensamentos, memórias, conhecimentos e experiências. Nesse devaneio, tudo que o trouxe até o presente momento se materializou em suas lembranças.

Relembrou sua jornada, que havia iniciado ali mesmo na Ilha do Drama, na árvore do saber, onde, investigando e estudando as diversas folhas do conhecimento encontrou a metodologia do drama, uma prática processual da pedagogia teatral para a qual, segundo Heathcote (apud O’NEIL, 1984, p. 48), “[…] drama são seres humanos confrontados por situações que os transformam, em que os mesmos têm que enfrentar lidando com os desafios propostos”. Ou seja, era uma situação ficcional que partia de um pré-texto e possibilitava a imersão dos alunos em um contexto ficcional, proporcionando problemáticas a serem desenvolvidas partindo de seus pontos de vistas, vivências e narrativas.

Ao desbravar a ínsula descobriu elementos que o constituíam como: os episódios, o pré-texto, a estratégia do professor-personagem e, principalmente, a ambientação cênica. “Ah, a ambientação cênica!”, suspirou o Camaleão. Esse elemento foi o que mais instigou o pequeno animal, que até visitou o Museu da Ambientação Cênica com a ajuda do Esquilo de olhos esbugalhados. Segundo Freitas (2012, p. 62-63), a ambientação é um “procedimento carregado de intencionalidade que visa criar/potencializar o envolvimento em um ambiente proposto para o drama”. Para isso, a ambientação cênica “[…] é conotada, é construída por uma rede simbólica na qual interferem os olhares e ações dos narradores e das personagens”.

Toda essa imensidão de possibilidades descobertas pelo Camaleão só foram possíveis graças a uma garrafa que lançou ao mar, uma garrafa ao estilo dos pedidos naufragados, porém que continha uma carta, a quem pudesse interessar, uma epístola com reflexões acerca do drama. Esse objeto flutuante interessou a alguém. Uma Camaleoa de mente e bracinhos agitados, fala eloquente e pensamento acelerado. A companheira de espécie atravessou uma ponte de tijolos amarelos que se erguia magicamente por cima do mar todo amanhecer e veio buscar o Camaleão para uma jornada.

Essa aventura a dois aconteceu na cidade de Dourados/MS, interior do interior do Brasil. Lá existia uma professora que a Camaleoa julgou pertinente e de suma importância apresentar ao Camaleão. A professora Vanessa Ribeiro desenvolvia na escola municipal em que trabalhava o projeto de pesquisa do seu mestrado, que falava justamente sobre o drama, e estava iniciando um processo denominado Entre Fósforos e Estrelas, que o Camaleão a convite da Camaleoa iria acompanhar escondido.

O drama partia do pré-texto A Vendedora de Fósforos (1848), conto de Hans Cristian Andersen, e foi contextualizado para a realidade social e geográfica da turma que iria desenvolvê-lo. Além disso, tratava sobre temáticas presentes no cotidiano daquela comunidade periférica marginalizada; assuntos como desigualdade social, fome, segredos e morte foram abordados de forma sensível e poética.

Nesse processo o encantamento e entendimento do Camaleão acerca da ambientação cênica só dilatava, pois todos os episódios que ele vivenciou tiveram esse elemento presente, a sala de aula comum havia sido transformada e (res)significada em um bistrô, um quarto e um planetário. Composto por estímulos, elementos e objetos que transportavam os alunos, participantes dessa ação, para o contexto ficcional proposto, proporcionando uma experiência através da imersão. Tal ação promove a transformação de um espaço em um lugar, assim como Barros reitera:

Modificamos o espaço completando as brechas e fragmentos espaciais e sociais erigindo significados e sentidos próprios neste espaço, transformamo-lo em lugar, deixando nossa marca concreta nele, não apenas física e materialmente, mas também simbolicamente. É como se pudéssemos deixar nosso pensamento cravado do espaço. E não apenas fazemos isso em nossa vida diária, mas nos utilizamos disso para o(s) teatro(s) performativo(s). (Barros, 2020, p. 139)

Ao término dessa experiência, a vontade de voltar e compartilhar isso tudo que havia experimentado com os moradores da sua ilha era homérica. Sendo assim, o Camaleão pegou a estrela do planetário do último episódio que representava a Camaleoa e atravessou a ponte de tijolos amarelos rumo ao seu lar. Nascia assim um sonho, o sonho da escola Dramaleão, uma escola de drama.

Sonho esse que se concretizava essa noite. Uma noite que reverberava e comemorava tudo que ele e a professora Vanessa haviam conquistado desde então.

Ele soube, através de correspondências em garrafas lançadas ao mar com a Camaleoa, que a professora havia defendido a sua dissertação em maio de 2023 e que, na busca de uma escrita que dialogasse com a comunidade em geral, principalmente dentro daquelas em que as pesquisas são realizadas, e não somente a acadêmica, buscou uma forma alternativa de escrever, uma escrita mais performativa. Mesmo não abrindo mão de normas exigidas pelas universidades e pela ciências humanas, como as normas da ABNT, ela construiu sua dissertação como uma narrativa, uma história para crianças, com uma descrição dos acontecimentos, ações e lugares/espaços a fim de possibilitar a imersão do leitor e fazer com essa visualização das imagens permitisse que mesmo uma pessoa leiga no campo da pedagogia teatral compreendesse do que se tratava a ambientação cênica e a imersão e teatralidade que essa podia causar, tudo embasado em teóricos reconhecidos em seus campos de pesquisa.

O Camaleão andava estudando sobre escrita performativa, e descobriu que Inês Saber de Mello e outros pesquisadores afirmam que

Quando falamos, pensamos sobre, buscamos por modos de escrita performativa, estamos buscando também um sentido para o que fazemos. Um encontro transformador entre estética e política, uma busca por tornar acessíveis os conhecimentos gerados nesse encontro. Algo ainda mais urgente quando nos damos conta de que ocupamos espaços e recursos públicos e que tais recursos devem ser partilhados, servirem ao bem comum e não se encerrarem em muros de privilégios. (Saber de Mello; Aguiar; Belchior Santos; Pedroso de Oliveira; Bitencourt; Franzoni, 2020, p. 9)

Ou seja, só faz sentido produzir arte e conhecimento científico se eles cumprem o seu caráter político e chegam de fato à população como um todo, às comunidades mais distantes da academia e marginalizadas, para que assim possamos falar em uma socialização das práticas, dos saberes e dos conhecimentos.

E era justamente nisso, que o Camaleão e a professora Vanessa acreditavam, que a escrita de um conhecimento da arte-educação deve ser atravessada por sentimentos, sensações, subjetividades, vivências, experiências, poéticas e proximidade com os mais diversos tipos de leitores.

Segundo a Camaleoa, tudo isso havia reverberado na comunidade ao redor da professora Vanessa Ribeiro, reverberou em suas pesquisas atuais agora focadas em formação de professores através do drama e dessas possibilidades performáticas, reverberou em publicações geradas a partir dessa dissertação-experiência, reverberou em um olhar diferenciado dentro do meio acadêmico, a pesquisa no campo da experiência do drama através da ambientação cênica e, principalmente, reverberou dentro da comunidade escolar – o mais importante.

Entre Fósforos e Estrelas permitiu que toda uma comunidade fosse afetada pelo fazer teatral, quebrando assim paradigmas de que a arte é elitista, além de ser encontrada somente nos grandes centros. A fronteira “[…] foi rompida e os alunos ocuparam todos os espaços e se tornaram produtores e consumidores de arte, provando que o lugar da arte e do teatro é sim, e por que não, no chão da escola. Paradigmas da elitização artística e do teatro como produto para adorno em datas comemorativas escolares foram quebrados e abriu espaço para as formas teatrais divergentes das tradicionais, bem como a da valorização do processo teatral em sala de aula” (Ribeiro, 2023, p 178).

Munido por toda essa reflexão, lembranças, conhecimentos e perspectivas o Camaleão abriu uma pequena gaveta da penteadeira e pegou a sua estrela Camaleoa. Apertou ela contra o rosto em um movimento de acalento e a fechou em sua pequena mãozinha, saiu do camarim e se dirigiu ao palco. Apertando a estrela em sua mão o mais forte que podia, dava mais um passo em direção ao seu sonho, inaugurava a sua Dramaleão.

“Boa noite, amigos queridos!…”

BARROS, Ariane Guerra. Entre o corpo do ator/performer e o espaço urbano: um teatro performativo / Salvador, 2020. 195 f.

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, 2002.

FREITAS, Tharyn Stazak de. Ambiente e práticas de drama: experiência e imersão. 2012. 152 f. Dissertação (Mestrado em Teatro) – Centro de Artes, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2012.

O’NEILL, Cecily. Dorothy Heathcote: Collected Writings on Education and Drama. Londres: Hutchinson, 1984.

RIBEIRO, Vanessa Lopes. Dramaleão: afetos de um camaleão perante o drama através da ambientação cênica. Dissertação (Mestrado Profissional em Artes – ProfArtes) – Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2023.

SABER DE MELLO, Ines; AGUIAR, Franciele Machado de; BELCHIOR SANTOS, Jussara; PEDROSO DE OLIVEIRA, Luane; BITENCOURT, Matheus Abel Lima de; FRANZONI, Tereza. O que é escrita performativa?. DAPesquisa, Florianópolis, v. 15, n. esp., p. 01–24, 2020. DOI: 10.5965/1808312915252020e0015. Disponível em: https://periodicos.udesc.br/index.php/dapesquisa/article/view/17922. Acesso em: 01 abr. 2024.

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