O antropólogo decolonial e seu índio de estimação

Quando menos esperam, os povos indígenas são transformados em peças em nosso tabuleiro político

imagem: Binh Huynh

Você já leu um texto etnográfico tão lindo, tão poético, tão incrível que parecia não ser real? Você já foi apresentado a um povo indígena que “coincidentemente” preencheu suas demandas políticas, científicas ou até mesmo emocionais, como se todos ali fossem uma extensão de um sonho aconchegante?

Eu não sei você, mas quando se trata de etnografias, eu sempre desconfio das mais bonitas. Afinal, conheço muito bem a flexibilidade do meu campo de estudo, de todo um malabarismo retórico de áreas não-paradigmáticas, como as ciências humanas e sociais. Não me leve a mal, eu amo o que faço, nunca pensaria em mim em outro espaço de jogo, mas sempre mantenho meus dois olhos bem abertos, já que quando o assunto são as humanidades, o céu é o limite. Um engenheiro pode facilmente ser criticado por suas interpretações, talvez por conta de um erro matemático específico, mas quando o assunto é o nosso território, o trajeto é um pouco incomum. Nós somos criaturas performáticas, criativas, o que significa um repertório infinito de ferramentas retóricas, um desfile incansável de justificativas, comparações, contrastes, hipérboles e outros detalhes estéticos.

Veja também:
>> “Desencobrindo o Outro do Descobrimento: Enrique Dussel e os Povos Originários“, por Ludwig Ravest
>> “Guias de Falácias: Estilística Rastaquera de Isopor“, por Lourenço Fernandes

De uma forma bem dostoievskiana, nós construímos verdadeiros palácios de cristal no mundo lá fora, sendo seus tijolos feitos de significantes, a argamassa preparada com metáforas e as vigas produzidas por certos transcendentais que asseguram a firmeza de todo o edifício. Ou seja, quando o assunto é o campo das humanidades “prudência” não é só uma palavra aleatória jogada em algum dicionário antigo, mas uma meta, um horizonte, talvez até uma virtude. No universo “Ocidental”1 com suas democracias liberais, acompanhadas de um pacotinho de valores muito específico, povos indígenas acabam presos em um jogo bem intimidador. Quando menos esperam, quando se sentem mais vulneráveis, eles se transformam em peças em nosso tabuleiro político, seja na direita (os “índios” primitivos, preguiçosos e incapazes de produzir riqueza em seus territórios, uma ameaça ao agronegócio) ou na própria esquerda (os “índios” como corpos puros, seres místicos, exóticos, ou seja, criaturas nobres opostas a nós, ocidentais pecadores manchados pelas marcas da colonização).

De qualquer forma, muitos debates decoloniais trazem sociedades indígenas em seus artigos, aulas e congressos apenas como um pretexto de crítica a tudo aquilo que os incomoda, um elemento que reforça valores democráticos, liberais e até pós-estruturantes. Na verdade, não importa o predicado em jogo, não importa nem mesmo se o adjetivo na mesa seja bom ou ruim, agradável ou desagradável, o “indígena” continua sendo O OUTRO em minha retórica, em meus congressos com ar-condicionado ou em uma mesa de bar carregada de Itaipava.

Nesses espaços convenientes, digamos assim, centenas de nomes de povos tradicionais fluem das nossas bocas, assim como suas práticas, corpos, linguagens, comida, roupa, numa espécie de bricolagem retórica. Sou eu, criatura esclarecida, o sujeito emancipado que fugiu da caverna platônica, o único capaz de determinar quem, como e quando esse OUTRO deve ser, tudo isso na exata medida da minha expectativa. O OUTRO jamais transborda, desafia, frustra, já que nunca foi real, muito menos palpável, mas uma reconstrução conveniente em mãos ocidentalizadas. Essa criatura sem corpo, sem cheiro, sem toque é uma poderosa arma em nossos campos de guerra epistêmicos, como se fossem granadas ou bazucas nas mãos dos nossos cientistas sociais.

Embora seja apaixonado pelo antropólogo britânico Timothy Ingold, e quem me conhece sabe disso logo de cara, algumas de suas análises são um pouco questionáveis, suspeitas. Sua inclinação espontânea a debates filosóficos, assim como suas “especulações” políticas de um progressismo quase pós-estrutural, levanta algumas dúvidas pelo caminho, ao menos para o leitor mais experiente. Ao longo de toda sua carreira, Ingold atravessou três grandes momentos. O primeiro, o marxista, em que o conceito principal era “produção”; o segundo, o heideggeriano, e seu “habitar” enquanto verbo encharcado de fenomenologia; e, mais recentemente, numa espécie de virada vitalista, temos a terceira fase, deleuziana, e seu conceito de “linhas”.

O mais interessante é que a cada nova fase Ingold encontra “por coincidência” povos conectados com seu posicionamento teórico e político, ou seja, povos marxistas, depois heidegerianos e, por último, sociedades deleuzianas. Por exemplo, em sua etapa mais recente, Ingold afirma, em seu livro Being Alive, o quanto povos como os Koyukon, no Alaska, não carregam em suas línguas substantivos, mas sim verbos, ações. Em vez de falar “peixe”, eles dizem “o animal que nada”. Segundo Ingold, isso indicaria sociedades contrárias a conceitos como essência, substância, um mergulho em um mundo fluído e descentrado, “coincidentemente” rizomático, “coincidentemente” deleuziano. Sem dúvida, essa sua etnografia (na verdade, emprestada de outros antropólogos), é muito interessante, na fronteira do poético, mas eu tendo a desconfiar muito das conclusões ao longo do caminho, principalmente porque a cada página os Koyukon aparecem como O OUTRO, o oposto das práticas “rígidas”, “desprezíveis” e “essencializantes” dos ocidentais.

Muitos antropólogos, como Adolf Jensen, Iracema Dulley, Brian Morris, também compartilham da minha suspeita. Segundo eles,

[…] a chamada Nova Etnografia Melanésia (Marilyn Strathern e Roy Wagner) apresenta semelhanças impressionantes com as ideias teóricas centrais associadas aos filósofos pós-estruturalistas, incluindo Derrida e Deleuze (tradução minha, Holbraad e Pedersen, 2017, p. 182)

Essa matriz “rousseauniana”2, temperada de pós-estruturalismo, sempre despertou em mim um certo grau de desconfiança, comprovando uma das teses mais importantes da Gramatologia do próprio Derrida: “Rousseau continua como uma sombra inescapável nas ciências humanas”. O “bom selvagem” parece nunca sair de moda, já que apenas ganha contornos diferentes dependendo do momento histórico e de outros recortes específicos. Em outras palavras, o sorvete é o mesmo, da mesma marca, embora os sabores tenham outros tons: estruturalistas, pós-estruturais, culturalistas, decoloniais, anarquistas, vitalistas.

“Mas Thiago, como saber se uma certa etnografia tem um grau razoável de confiabilidade?”, pergunta o leitor curioso na esperança de alguma resposta. Existe um teste, caso você queira aplicar aí na sua casa: toda vez que na página 20 um antropólogo fala de um povo tradicional com toda uma empolgação revolucionária e na página 21 usa frases como: “Mas no ocidente é o contrário, ou o oposto”, desconfie rápido, não continue a leitura de forma descuidada. Por mais agradáveis que sejam os adjetivos dos antropólogos quando se referem aos povos tradicionais, esse OUTRO continua sendo um outro para mim, o ocidental, dentro das minhas demandas. No fundo, o gesto colonizador não está no predicado em jogo, mas na própria estrutura de predicação, sufocando corpos concretos dentro de expectativas convenientes, sejam essas expectativas boas ou ruins, democráticas ou autoritárias, egoístas ou coletivas.

Rey Chow, filósofa pós-colonial e estudiosa da cultura chinesa, menciona vários pensadores no ocidente que romantizaram a China em seus escritos, tornando ela uma espécie de contraponto aos “pecados” ocidentais, como aconteceu com o próprio Derrida, Sartre, Kristeva e todo um tipo de flerte com o maoísmo. Existe um jogo retórico envolvido, uma tentativa bem contorcionista de justificar a presença desse OUTRO como pretexto de crítica. Ou seja, a China aparece, principalmente sua linguagem ideográfica, como o oposto do logocentrismo dos povos ocidentais, o que significa uma abertura maior ao feminino e até a práticas progressistas.

Esse tipo de interpretação, segundo Rey Chow, retira a complexidade e até contradições do objeto estudado, ao mesmo tempo que gera um tipo de espantalho conveniente, na exata medida da minha demanda. É quase como um indivíduo de cidade grande imaginando o campo ou uma fazenda depois de um longo dia de trabalho em meio a um trânsito absurdo. Essa experiência meio nostálgica quase sempre retira do outro lado qualquer grau de dissonância ao se concentrar em características convenientes no momento, como o som dos pássaros, o ritmo dos rios, e a serenidade dos animais, enquanto mosquitos, lama, cobras e toda uma série de constrangimentos e frustrações são jogados debaixo do tapete, evitando o que Festinger chamou de “dissonância cognitiva”.

Essa forma rousseauniana de pensar, o que muitas vezes chamo de “colonialismo light”, retira do outro um potencial autônomo, inclusive autonomia como frustração, resistência. Grupos tradicionais são interpretados como crianças inocentes, incapazes de qualquer tipo de dano, a não ser que criaturas e forças externas participem. Esse gesto, ao invés de ser algo positivo e nobre, como muitos querem acreditar, ganha um tom de extrema arrogância, retirando do outro a chance de uma responsabilidade moral. Segundo Žižek, o maior gesto decolonizador hoje é permitir ao outro a possibilidade de ser mau, de errar por conta própria, ao mesmo tempo que desafia minhas expectativas, sejam elas teóricas ou práticas.

Quando antropólogos reconhecem o recorte político e de pesquisa feito em seus trabalhos etnográficos, não existe, de fato, nenhum problema. Por exemplo, Viveiros de Castro decide focalizar suas energias no xamã do povo Araweté, uma figura com poderes mágicos e, por isso, capaz de implodir certas fronteiras e dualismos, como natureza e cultura, homem e mulher, sagrado e profano. Como bem disse Lévi-Strauss em sua Antropologia Estrutural, a experiência do xamã não representa sociedades como um todo, já que ele acessa uma zona meio inconsciente onde apenas esse líder religioso é capaz de circular. De qualquer forma, Viveiros de Castro deixa claro suas intenções como autor decolonial, fazendo um recorte que atende aos seus interesses, o que torna sua etnografia muito mais sincera. Sem dúvida, esse recorte não é uma construção psicológica do antropólogo, muito menos um delírio da sua cabeça progressista, mas um trabalho diplomático entre ele e o povo estudado.

Resumindo… uma etnografia não é algo subjetivo nem objetivo, mas uma mistura dos dois. Desde que reconheçam essas características, em uma trajetória política e metodológica muito específica, não existe nenhum problema no horizonte. Claro que essa postura de prudência antropológica é rara, principalmente porque a maioria dos antropólogos decoloniais ainda acredita descrever essências “reprimidas” ou “sufocadas” pelo Ocidente. Nesse esquema rousseauniano, o compromisso da antropologia é apenas libertar a verdade desses povos opostos a nós, os ocidentais manchados pelo pecado. Sociedades Arawetés, Cunas, Pueblos, Koyukons, Yanomamis, Xavantes, e milhares de outras espalhadas pelo globo, não são simples peças dentro das nossas democracias liberais, muito menos pretextos que reforçam nossa cadeia argumentativa. Estamos falando aqui de corpos concretos, de pessoas reais, com trajetórias próprias, incluindo posturas que podem até frustrar a sensibilidade dos conservadores e progressistas do nosso mundo. O que fazer com esse OUTRO concreto, recalcitrante?

Quando meu vizinho começa a me incomodar com sua presença divergente, fora das minhas expectativas, rotina e horários, o que posso fazer? Não seria esse o grande desafio ético dos nossos tempos? Ou seja, não lidar com abstrações, mas com corpos reais que gritam, choram, mentem, riem, falam, oram, xingam, fofocam, temem, lamentam. Em termos mais específicos, quando eu descubro em minha jornada antropológica que certas sociedades Yanomamis ainda praticam o infanticídio, ou que o povo Cuna mantém um dualismo de gênero bem justificado em termos místicos, ou que os Koyukon não funcionam na base de uma democracia, ou que os Araweté não defendem nosso construcionismo social e nossa hermenêutica da suspeita, ou que os Pueblo se recusam a acreditar na privatização estética (eu tenho a minha beleza, você tem a sua), como eu devo seguir? Quando o OUTRO com sua materialidade transbordante aparece, o que eu devo fazer? Como disse antes, esse é o verdadeiro desafio ético e decolonial, quando o OUTRO é o OUTRO, e não apenas um EU disfarçado.

Autor

  • Professor do Centro Universitário Senai Cimatec, além de tradutor, autor nas áreas de ética e comunicação e estudante de teatro. Pós-doutorando em filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, com estágio doutoral na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Realizou também um doutorado sanduíche na Sci-Arc, nos Estados Unidos, orientado pelo filósofo Graham Harman. Compõe o grupo de pesquisa Pensamento Processual e Estudos Whiteheadianos na América Latina. É autor de Descentrando a Linguagem (2018) e outros livros.

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