Representações de Jesus | “Styrofoam Boots/It’s All On Ice, Alright”, do Modest Mouse


Representações de Jesus é uma série que coleta descrições literárias, musicais, visuais, cênicas, fílmicas – etc.! – de Jesus, de maneira a apresentar a riqueza do imaginário em torno do messias da religião cristã, com fontes mais ou menos distantes dessa religião. O objetivo não é doutrinal; buscamos trazer um panorama heterodoxo.


Afogado, o eu lírico segue ao pós-morte e, à entrada do Paraíso, é posto, por São Pedro, de canto, junto com os outros ateus (além disso, o santo, com um tom de escárnio, lhes ordena o polimento de aureólas e o preparo de mana). Pouco depois, “Styrofoam Boots/It’s All On Ice” – música da banda inglesa Modest Mouse – põe mais um personagem em cena. Dada a referência cristã e seu caráter especialíssimo, como veremos, podemos assumir que é Jesus, embora a imagem seja algo provocativa. Assim se descreve o seu advento:

Well, some guy comes in
looking a bit like everyone I ever seen
He moves just like Crisco Disco,
breath a hundred percent Listerine
He says, looking at something else,
but directing everything to me:
“Everytime anyone gets on their knees to pray,
well, it makes my telephone ring”

Vejamos os elementos da caracterização: “Bem, aí chega um cara que se parece um pouco com todo mundo que eu já vi”: há uma universalidade na aparência desse indivíduo, como se seu rosto contivesse todos os rostos. “Ele se move igualzinho a Crisco Disco, seu hálito é 100% Listerine”: certa dessacralização nesse trecho, pelas referências mobilizadas (Crisco Disco foi um discoteca nova-iorquina ativa entre os anos 1970 e 1980, relevante para a cultura LGBT e a dança; Listerine é um conhecido antisséptico bucal), mas eles apontam para um uso fluído do corpo e uma saúde física que traduzem, com humor, a santidade. “Ele diz, olhando para outra coisa, mas dirigindo todas as coisas a mim”: quando Jesus fala, é como se tudo o olhasse, como se o Todo o olhasse, embora Jesus individuado não olhe para nada em particular; o duplo paradoxo – do não-olhar e enfocar, do não ser olhado e ser intensamente visível – parece delinear como a onisciência lida com um indivíduo, e quase expressa o que seria o peso de ser o objeto exclusivo dessa atenção. Por fim, o que ele diz. “Todas as vezes que alguém se ajoelha e reza, bom, meu telefone toca”: mais humor, e ao mesmo tempo a evidência de que ele é o alvo de todas as rezas.

A seguinte fala deste Jesus se afasta de uma ortodoxia cristã, trazendo algo como uma perspectiva teológica própria:

He said, “You were right, no one’s running this whole thing”
He had a theory, too
He said that God takes care of himself,
God takes care of himself
And you of you

O trecho encerra a primeira parte da música (“Styrofoam Boots”) e postula a mundo como uma máquina funcionando à própria sorte, uma realidade na qual “Deus se vira e nós nos viramos”. Não se trata de ateísmo, já que a transcendência e a divindade são reconhecida, contudo elas convivem com a humanidade, não cuidam dela, não planejam por ela, é como se estivéssemos no mesmo barco, e não mais do que isso. O que crer nisso faria da fé e da relação com Deus e Jesus, fica para que o leitor avalie.

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