Brincadeira de pipa

A magia, a arte e as memórias em torno de um voo de pipa


Esta crônica foi selecionada pela Úrsula a partir da dissertação de mestrado “Narrar a experiência da escola: um ensaio poético filosófico à luz da teoria da experiência e da narração de Walter Benjamin”. Veja a seleção.


imagem: Nathalie Owen

Desde muito cedo aquele brinquedo cercou minha infância, ainda que não fosse eu a protagonista dessa mágica brincadeira. Soltar pipa era o passatempo do meu irmão, que não só passava tardes inteiras empinando aqueles coloridos brinquedos como se fossem pássaros de papel, mas também os confeccionava, exibindo toda a sua habilidade para as crianças menores ao seu redor. Hoje ele me conta que ninguém o ensinou, e ao lhe perguntar como então aprendeu a fazer, com naturalidade responde que copiou a pipa.

Ontem escutei um farfalhar no meu quintal, inconfundível som de uma pipa no ar. Quando vi, ela estava ali, logo acima da minha cabeça, e com seus movimentos me magnetizou. Simplesmente não pude dar as costas e voltar para meus afazeres, o longínquo lugar que aquela imagem de pipa no céu ocupa em minha memória me fez querer continuar ali para assistir sua dança.

Era uma pipa cor-de-rosa com motivos brancos, parecendo cruzes ou estrelas. Apenas um de seus movimentos produzia aquele som farfalhante como de um grande pássaro batendo as asas, o movimento de esforço para ganhar altura, de um lado pro outro. Os demais eram tão graciosos quanto silenciosos, como aquele em que a pipa sobe bicando o céu, fazendo sua rabiola serpentear, ou então quando faz pequenos giros em torno de si mesma, movimento esse muito simpático, tão simpático que tirou vivas dos meus lábios.

Deve haver nomes, certamente, para cada um desses movimentos, bem como para tudo mais que envolve o universo desse antigo brinquedo. O garoto que empinava aquela pipa cor-de-rosa com motivos brancos deve saber todos eles. Pude descobrir de qual ponto no solo partia aquela pipa, pois como estava muito perto de minha cabeça, sua linha quase invisível às vezes se mostrava inteira, num relance, em ínfimos segundos, então, aos poucos, cheguei ao seu ponto de origem. O moleque, de bermudas e camisa de um time qualquer de futebol, demonstrava toda a sua habilidade, mesmo de uma rua estreita, entre casas e sobrados, para erguer aquela pipa ao céu e, depois de inúmeros malabarismos, ser capaz de também trazê-la de volta ao chão, sem perdê-la na descida, sem deixá-la se enroscar entre telhados e caixas d’água, mesmo em uma rua bem estreita.

A magia viciante desse brinquedo, mais todas as habilidades e conhecimentos envolvidos na arte de soltar pipas, dizem muito sobre a escolha do meu irmão, como de tantos outros garotos, de matar aulas. Imagine que concorrência desigual era essa, de passar horas em um campão com seu precioso brinquedo, não em uma rua estreita, mas em um amplo espaço com muito vento e nenhum perigo em volta, a não ser, no máximo, tropeçar ou enfiar o pé em algum pequeno buraco daquele chão de terra. E, de outro lado, o quadrado espaço fechado da sala de aula, com seu lugar determinado em carteiras enfileiradas, olhando para aquele quadro escuro cujas inscrições parecem nenhum sentido fazer. Certamente desencorajava meninos que queriam correr e voar por extensão com seus peixinhos soltos ao ar. As importunações incessantes e ameaças de briga dos valentões da escola também passavam pela cabeça de meninos como o meu franzino irmão, em suas canelas magricelas, e logo vinha a decisão, mais uma vez, de faltar à aula. Se os valentões ao menos soubessem o quanto ele era bom na arte de fabricar e empinar pipas, talvez o deixassem em paz.

Escrever era muito difícil para ele, mas quem sabe se esforçaria um pouco mais caso o desafio lançado fosse escrever todo o vocabulário do universo das pipas. E ali, diante de seu caderno surrado, cheio de orelhas e marcas de correção vermelhas da professora, aliviaria a tensão imaginando suas pipas no ar, ou o preparo do cerol na lata de achocolatado, faria cálculos com os metros de linha, ou os centímetros das varetas e do papel seda, e mordendo a língua no canto da boca, tamanha concentração, segurar o lápis contra a folha sobre a carteira não seria tão pesado, como em nada eram os movimentos no campão com a linha entre os dedos.

E, provavelmente, mais tarde, quando estivesse longe dos valentões e fora de seu uniforme de aluno, de bermudas e camisetinha qualquer, no campão a empinar seu mágico e terno brinquedo, olhando para o céu veria letras se juntando, números também, e regozijaria ali brincando por já saber ler e escrever. Brincaria de escrever e escreveria sobre suas brincadeiras. Escreveria sobre seu mundo.

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