Um olhar sobre o cinema africano, das origens ao presente

O contexto cultural e político do cinema africano, as representações da África no cinema em geral e o desenvolvimento das produções audiovisuais do continente

Cena do filme A Luz

O cinema africano encontra público escasso no Brasil, algo que se estende a toda cultura africana em geral. Em um modelo de consumo de cultura basicamente estadunidense, há forte resistência ao que vem de outros locais, inclusive quanto a filmes de países historicamente colonizadores, como França, Espanha e Holanda. Assim, o abismo que separa o público brasileiro do cinema africano é gigantesco.

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O cinema africano é um produto bem recente, que começou a tomar corpo em paralelo ao processo de descolonização que se deu a partir da década de 1960. Tem em Ousmane Sembène seu pioneiro. Desde então se iniciou uma produção que, apesar de não ser muito extensa e de carecer em diversos momentos de recursos financeiros e técnicos, conta com a reprodução de toda uma cultura local e um grupo de diretores com talento e sensibilidade para levar as cenas de seus países para as telas.

Os tempos atuais têm até sido mais prolíficos. Nos aspectos técnicos, muitos filmes africanos do século XX apresentam evoluções significativas, com relação aos de décadas, atrás na qualidade da filmagem, da fotografia e da atuação. Com relação ao que é contado ao espectador, temos desde temas locais, históricos, filmes com abordagem social e obras que primam pela criatividade de seus diretores. É um universo rico a ser explorado, que já teve indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e uma estatueta faturada nessa categoria.

Porém, antes de falarmos especificamente sobre o cinema africano, vamos explorar um pouco mais alguns fatores que envolvem a sétima arte no continente para conhecermos melhor essa história.

Cultura, uma relação de poder

Cena de “O Último Rei da Escócia”, filme de Kevin Macdonald

A representação por meios midiáticos se constituiu a partir do século XIX e foi muito contestada na metade do século XX, quando se ressaltou a relação de cunho político que se dá pelos meios culturais, ou seja, quando se passou a discutir como povos e culturas diversos são figurados pelos meios de comunicação.

O cerne da contestação citada se dá contra uma visão predominante eurocêntrica (que migrou para os Estados Unidos) e que vê os demais povos e culturas através de filtros estrangeiros. Essa realidade é fruto de um processo histórico que envolve dominação econômica e política de umas nações sobre outras.

A partir do século XVI, a Europa se consolidou como uma potência econômica e militar prevalecendo sobre o restante do mundo. África, América e partes da Ásia se tornaram anexos das metrópoles europeias, em uma relação de conquista que se deu também por toda uma significação simbólica dentro da representação midiática.

Os “mistérios do Oriente” em novelas do século XIX são uma mostra dessa relação. O eurocentrismo configurou os demais povos como bárbaros e criou toda uma forma de simbologia, colocando negros, índios, indianos, chineses etc como uma contraparte inferior aos seus valores.

A indústria de cinema foi prolífica em reproduzir essas visões. Filmes de faroeste têm índios como vilões, o filme da Disney Uma canção do sul coloca personagens negros como mero apêndices para os protagonistas brancos, a mesma Disney criou um Alladin aos moldes de seus príncipes europeus e caracterizou os vilões com estereótipos árabes. Vilões chineses permearam histórias de Jonny Quest, 007 e Flash Gordon. Indiana Jones saqueava relíquias de outros países e levava para a Inglaterra como se essa fosse a coisa certa a ser feita. Filmes do Tarzan mostravam o herói branco em território negro, como se uma flor de justiça e bravura nascesse de uma semente branca plantada por lá.

Mesmo em histórias que não pretendem diminuir a figura dos outros povos, a visão do europeu prevalece. Isso é muito comum em filmes que contam uma história fora da Europa, mas pelo ponto de vista do europeu ou do estadunidense. O diretor italiano Bernardo Bertolucci, ao contar a história do último imperador da China, o fez pelo olhar de seu tutor europeu. Em Sete anos no Tibet, a história do atual Dalai Lama é narrada pela ótica de um visitante estrangeiro. Ana e o rei de Sião, O último samurai e O último rei da Escócia são outros casos.

Essa visão eurocêntrica, como dito, começou a ser questionada a partir de metade do século XX. Em uma esfera acadêmica, temos livros como Orientalismo, de Edward Said, em que ele aponta que a visão feita sobre os povos orientais se dá pelo crivo estrangeiro. Como o autor diz, o oriente não se representa, ele é representado. Homi Bhabha, em seu O local da cultura, descreve como o processo de descolonização da África e da Ásia no século XX colocava um contraponto ao modelo cultural que prevalecia.

Os movimentos sociais que começaram a surgir na década de 1960 constituíram um passo forte para grupos minoritários se posicionarem e dizer ao mundo “nós existimos”. Eles colocaram à frente da sociedade setores marginalizados que reivindicavam sua parcela de espaço. Da mesma forma, os movimentos coloniais abriram as portas para novas formas de representação. Nesse sentido, a criação de novas universidades nos países africanos possibilitaram estudos históricos e culturais feitos pelos próprios nacionais. Isso abriu espaço também para uma nova forma de se representar pelos meios de comunicação, inclusive pelo cinema.

A África pelo olhar do outro no cinema

Cena do filme Beasts of no nation

Antes da falar sobre cinema africano em si, convém abordar um pouco o modo como o continente foi representado no cinema, em especial pelos Estados Unidos, cuja produção cinematográfica se tornou preponderante após a Segunda Guerra Mundial.

Um ponto é a África como local exótico para histórias entre estadunidenses ou europeus. Casablanca é um marco nesse aspecto, como uma história de amor e drama tipicamente eurocêntrica apenas passada na cidade. Nada há de africano aqui, apesar de ser uma grande obra do cinema. Esse tipo de obra se reflete em filmagens como Uma aventura na África ou em diversas produções que têm a África apenas como pano de fundo para uma trama, como em filmes do 007.

Já filmes do Tarzan ou de Allan Quatermain trazem o conflito do heroísmo branco em solo africano. Essa é uma perspectiva que traz o racismo embutido, por colocar os grandes valores da nobreza, da coragem e da justiça nas mãos dos brancos. Aliás, filmes assim costumam reduzir africanos a simples coadjuvantes, com um vilão também de origem europeia.

Um filme bem conhecido do público brasileiro é Os deuses devem estar loucos, em especial o segundo da franquia. Aqui, ocorre o contraste entre o branco civilizado e o africano selvagem. Porém, o africano é retratado como conhecedor de uma sabedoria local, alguém disposto a ajudar, que está envolvido na missão de localizar seus filhos. A própria divergência do africano com relação aos caçadores de marfim sugere um olhar diferenciado. Porém, esse segue sendo um filme de ótica eurocêntrica, onde o protagonismo é por parte de brancos.

Recentemente, algumas novas propostas foram realizadas com relação à África. Algumas animações como Madagascar ou O Rei Leão colocam ênfase no elemento geográfico e na fauna, desconsiderando o humano. Hotel Ruanda conta a trágica história do massacre nesse país pelo ponto de vista de uma figura real, o ruandense Paul Rusesabagina, que protegeu dezenas de pessoas do massacre e foi interpretado pelo estadunidense Don Cheadle, uma abordagem diferente do usual. E em O último rei da Escócia a história do ditador ugandense Idi Amin Dada é vista pela ótica de um europeu.

Um tema corriqueiro é a abordagem de problemas políticos, econômicos e sociais da África, como vistos em Hotel Ruanda e O último rei da Escócia. Seguem essa linha, além dos dois últimos, Lágrimas de diamantes, O menino que descobriu o vento, Em um mundo melhor e Beasts of no nation. Muitos desses filmes são de fato bons, porém eles funcionam como reforço de que a África só é bem representada quando se fala de algum drama humano ligado a pobreza ou violência.

Em Pantera Negra, da Marvel, há um caso bastante singular. Primeiro, a história se passa em Wakanda, um país fictício, e por ser fictício não remete a nenhuma deturpação da história por estrangeiros. Isolado dos demais países, Wakanda desenvolve um grande potencial tecnológico que a torna uma nação rica e próspera. Isso vai na contramão do que é típico da representação da África, que se costuma apresentar pelo viés da pobreza e da miséria, como se mais nada existisse no continente.

Esse filme oferece leituras variadas ao se pensar na questão África. É um filme hollywoodiano, mas em que prevalece a presença de negros. Ele quebra uma grande perspectiva da prevalência branca no cinema, com personagens — herói, ajudantes, vilão, coadjuvantes — negros e bem elaborados. O filme tem relevância na representação do negro e quebra paradigmas de como a África é retratada.

O precursor

Cena de Garota negra, filme de Ousmane Sembène

O cinema africano tem um pioneiro: Ousmane Sembène, considerado pai do cinema africano. Ele defendia a importância da África contar suas próprias histórias porque, se não o fizesse, outros o fariam e os africanos perderiam sua identidade.

Nascido no Senegal, ele foi aos 20 e poucos anos para Paris, onde se envolveu com militância comunista e iniciou sua carreira artística. Seu primeiro filme foi Garota negra, de 1966, que se passa na França e conta a história de uma moça africana levada para ser criada de um casal francês. Porém, ela é submetida a um status de escrava e isso provoca profunda dor e questionamento.

Essa obra inicial deixa clara a maior marca de Sembène: trata-se um cinema autoral politicamente crítico e que vai apresentar conteúdo social muito forte. Em Emitai o autor apresenta uma crítica às relações coloniais da Europa com a África. Em Xala, ele critica as novas autoridades constituídas em países africanos após o processo de independência. A primeira cena desse filme já traz uma representação da transição do poder autoritário dos poderes coloniais para uma nova forma de autoritarismo, agora local.

Em Ceddo, ele traz uma história de cunho mais histórico. Aqui, uma tribo com uma cultura africana local se depara com a expansão do islamismo, ao mesmo tempo em que colonizadores brancos rodeiam a área. E em Moolaadé ele faz uma crítica mordaz a uma das maiores atrocidades contra as mulheres, que é a mutilação genital.

Sembène apresenta um cinema político que estende seu olhar a diversos fatores. Fala sobre a construção de uma identidade própria, sobre os problemas do colonialismo e do racismo, sobre a corrupção e o autoritarismo instalados após a independência, sobre a posição da mulher. Ele foi um visionário, um pioneiro e um militante que, imbuído de uma filosofia artística, mostrou ao mundo a África vista pelos africanos.

A consolidação do cinema africano

Cena de Timbuktu, filme de Abderrahmane Sissako

O pioneirismo de Sembène junto ao processo de independência e de estruturação dos países africanos deu origem a novas produções. Muitos cineastas começaram a surgir no final da década de 1960, desenhando uma nova representação artística para o continente. Vejamos um pouco sobre alguns desses diretores.

Em obras de Mahamat Saleh Haroun, diretor chadiano, vemos um misto do ser humano em condições adversas e sua relação com essa situação na qual se encontra. Alguns de seus filmes mesclam tanto o olhar externo quanto o interno de seus personagens. Ele também utiliza muito bem as paisagens naturais e sua iluminação própria na fotografia, o que brinda o espectador com belas imagens.

Em Temporada de Seca, um homem busca vingança contra o homem que matou seu pai durante a guerra civil nesse país. Em meio às cores do deserto, acompanhamos um conflito que envolve desejo por vingança e ao mesmo tempo uma propensão a perdoar.

Em Um Homem Que Grita temos uma obra com maior tônica social. O personagem principal é um nadador perto da velhice que trabalha em um hotel de luxo. Os contrastes dele se dão de maneiras diversas, com a guerra que se alastrou por seu país, com as suas diferenças com relação aos clientes que atende e com seu filho, que aos poucos começa a tomar seu lugar.

Bye-Bye, Africa se apresenta como uma obra de teor bem pessoal. Haroun morou muitos anos na França e aqui prevalece o foco subjetivo daquele que retorna para casa após muitos anos fora. Um destaque é a referência aos cinemas fechados.

Dentre a obra do malinense Cheick Oumar Sissoko, Guimba, un tyran une époque traz uma história de época envolvida pela relação de poder. Acompanhamos a história de Guimba, um líder político que usa da violência para se sustentar no poder. É um deboche bem claro com figuras despóticas na política. Um ponto interessante do filme é que ele é falado no idioma bambara.

Abderrahmane Sissako, da Mauritânia, é um diretor que conseguiu um destaque recente por seu filme Timbuktu ter concorrido ao Oscar de Melhor Filme de 2015. Nessa obra, ele explora um tema bastante complexo, que é o surgimento de grupos extremistas pela África. A repercussão recebida talvez se deva ao tipo de abordagem que tanto agrada nos Estados Unidos e na Europa, mas, ainda assim, é um trabalho magistral, que explora as relações humanas. Sissako aproveita muito da geografia local e da arquitetura para oferecer uma visualidade bem singular.

Em Bamako, o diretor traz um forte debate político. Nele, ocorre um evento inusual, um julgamento no quintal da casa de uma família. A proposta estranha no começo aos poucos vai ficando clara. Nesse julgamento, o caso se refere ao endividamento dos países africanos e em como o rolar dessa dívida empobrece a África e perpetua o subdesenvolvimento.

Em Vida sobre a terra, temos uma obra que se assemelha a Bye, bye, África. Sissako retorna à sua terra natal mostrando como ela agora se encontra. Esse choque de realidade serve como chamariz para uma análise de realidade social, sobre uma África com problemas de desenvolvimento em relação ao restante do mundo. Aqui, um dos destaques fica para a questão da comunicação, pela demonstração da relação entre homem e a tecnologia no mundo moderno. E, ainda mais fundo, como nesse universo pós-colonial o homem se relaciona com a tecnologia e com as noções de progresso e atraso.

Em Os olhos azuis de Yonta, de Flora Gomes, cineasta de Guiné-Bissau, o enredo traz os sentimentos afetivos e a relação amorosa com uma pitada de realidade social. Yonta é uma jovem filha de um homem que estava envolvido com guerra civil de Guiné-Bissau. Ela se apaixona por Vicente, amigo de armas de seu pai, que a vê mais como uma afilhada e não sabe de seus sentimentos. Ao mesmo tempo, um rapaz que trabalha no porto se apaixona por ela e lhe envia cartas amorosas secretas.

Flora Gomes explora nesse filme um lado mais singelo de um contexto político. O amor juvenil exposto em duas camadas, a de Yonta, de maior estabilidade, e a de Zé, mais pobre, serve para conduzir um olhar sobre os personagens e a realidade que os cerca.

Tsotsi foi o primeiro filme africano a ganhar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Dirigido pelo sul-africano Gavin Hood, o filme retrata um rapaz de Johanesburgo envolvido com crimes. Durante um assalto que dá errado, ele acaba sequestrando um bebê e essa situação o conduz por um longo drama.

Esse filme se escora na abordagem da correlação entre pobreza e criminalidade. Ao tentar apresentar uma visão da desigualdade econômica, cai em um clichê e faz um filme do tipo “para estadunidense ver”.

O malinense Souleymane Cissé possivelmente pode ser considerado o maior cineasta africano. Suas obras são um apanhado múltiplo de perspectivas: obras poéticas, com impacto social e um fino olhar sobre a natureza humana.

Em O vento, a relação entre dois jovens serve para discutir temas sociais e políticos do Mali. Em Den Muso acompanhamos outra análise social, dessa vez pela ótica de uma garota muda vítima violência sexual, que engravida e acaba abalando a estrutura de sua família.

Cissé ainda deixou uma marca bem maior no cinema africano. Isso se deu em 1987, quando ele lançou a obra-prima do cinema desse continente: A Luz.

O grande marco do cinema africano

Cena de A Luz, filme de Souleymane Cissé

A Luz é um filme que facilmente figura entre os maiores já feitos em todos os tempos. Foi aqui que o cinema africano chegou ao seu maior marco, em uma realização bela, profunda e comovente.

A história se passa no século XIII e é envolta em toda uma mitologia baseada no folclore do Mali. Cissé encontra inspiração na cultura local e constrói uma obra sublime, onde conceitos universais são representados, sendo falada nos idiomas bambara e fullah.

O fio da história se dá no conflito entre dois feiticeiros, que são pai e filho. Niankoro é um jovem que descobre que seu pai, Soma, corrompido pelo seu próprio poder, está atrás dele para matá-lo e assim eliminar o único que poderia contestá-lo.

Niankoro ainda não está pronto para esse embate. Daí começa sua jornada, pela qual ele vai explorar regiões próximas, o que inclui auxiliar uma vila que está prestes ser atacada por inimigos.

A jornada de Niankoro reflete diversos temas perenes nas narrativas humanas. Primeiramente, a relação freudiana de um filho em conflito com o pai, em que a soberania desse último se encontra em cheque. Depois, a luta do bem contra o mal, onde um lado da balança representa o altruísmo e a ajuda enquanto o outro representa o despotismo e a violência. Por fim, a chamada jornada do herói, onde um personagem rompe com sua terra natal para viajar por um mundo inexplorado onde ele precisa sobreviver e vencer, e através dessas aventuras ele vai se tornar um herói completo ao passar pelas provações. Nesse caso, Niankoro, o jovem herói, que viaja para o confronto com seu adversário.

A caminhada do personagem principal leva junto o espectador, que vai conhecer um universo diferente, de relações humanas pautadas em estruturas diferentes — por exemplo, quando Niankoro salva a vila do ataque, o chefe lhe oferece uma esposa e pede que ele se junte ao grupo. Além desses elementos narrativos, a fotografia é altamente inspirada, trabalhando as cenas da região do Sahel em campos abertos com um belo uso das luzes naturais e do espetáculo de cores. A poesia visual é diferente de tudo que o público está habituado.

A Luz é um filme que ganhou enorme repercussão. Foi exibido em festivais, recebeu prêmios e críticas em grandes veículos de comunicação. Foi também um filme que encontrou um mercado maior e conseguiu levar as artes africanas para um grupo mais amplo.

Com isso, Cissé se consolidou como um dos maiores diretores africanos e ganhou relevância internacional, criando uma estética narrativa bem peculiar, em dissonância com os padrões consolidados no cinema.

Uma polêmica recente

Cena de Rafiki, de Wanuri Kahiu

Em 2018, um filme queniano foi proibido em seu país devido à sua abordagem sobre homossexualidade. Dirigido por Wanuri Kahiu, Rafiki foi exibido no Festival de Cannes de 2018, sendo o primeiro filme do Quênia no evento.

O enredo apresenta Kena e Ziki, duas jovens que aos poucos vão se aproximando até se apaixonarem. Elas vivem uma relação às escondidas devido ao preconceito, mas que no fim das contas acaba vindo à tona, o que dispara o preconceito de muitas formas.

Um dos pontos mais interessantes é a relação de Kena com seus pais. O pai a apoia em sua decisão a ponto de abrir mão de sua carreira política. Já sua mãe se mostra completamente contra, a ponto de beirar a revolta. À primeira vista, o filme leva o espectador a se apegar ao pai e a rechaçar a mãe. Porém, a obra apresenta mais adiante as motivações dessa última, que age por reflexo da estrutura cultural existente. Pelo modelo cultural, ela seria “culpada” pela homossexualidade da filha, por um estigma de que a homossexualidade feminina seria um erro de criação, e por esse erro ela receberia toda uma condenação, algo que não ocorre com o pai.

Assim, a própria noção de aceitação ou não reflete toda uma camada de relações sociais e de poder exigentes, o que pode promover reação de medo ou de revolta.

Rafiki se vale da premissa bem corriqueira do amor proibido. Porém, Wanuri Kahiu apresenta com muitas nuances todo o entorno da relação, que gera o medo e em como as atitudes acabam condicionando a vida das duas personagens. De pessoas próximas que mostram simpatia ou repulsa até consequências na vida profissional, a cineasta molda um apanhado contundente de relações diversas.

O filme é bem mais que uma obra que causou polêmica em um país onde homofobia é política de estado. Ao mesmo tempo, não se pode desconsiderar que a arte tem em si a característica de colocar a sociedade em conflito. E, nesse quesito, a diretora conseguiu expor a restrição de direitos e o preconceito que ainda permeiam o mundo atual.

Correndo na contramão

Cena de “District 9”, de Neill Blomkamp

Em 2009, o sul-africano Neill Blomkamp lançou aquele que provavelmente é o mais bem conhecido e bem-sucedido filme africano: Distrito 9.

O enredo é bem conhecido: uma nave alienígena pousa sobre Johanesburgo e os tripulantes são levados para campos de concentração. A metáfora é bem clara ao abordar o apartheid utilizando alienígenas como as vítimas do cerceamento social.

Distrito 9 é claramente filme para estadunidense ver. Foi concebido com uma alegoria de filmes blockbusters para levar o vergonhoso regime racista da África do Sul para os demais países. É bem visível que ele tem por meta atingir um público internacional ao se valer de recursos que o tornam palatável ao pensamento eurocêntrico.

Essa obra destoa em geral do que vemos no cinema africano. Uma causa disso possivelmente é o perfil social sul-africano, com forte população branca, o que pode gerar maior conexão com os mercados do EUA e da Europa. Enquanto boa parte do cinema africano se aproxima da Europa, em especial da França (com certa ênfase em relação com as antigas metrópoles, o que também se justifica por aspectos idiomáticos), Distrito 9 se aproxima da estética hollywoodiana dos filmes catástrofe e de ação. Os mais desavisados podem assistir sem nem sequer imaginar que não seja dos EUA.

Uma voz que devemos escutar

O cinema africano encontra as mesmas resistências típicas de um mundo onde há muitos globalizados e poucos globalizadores. Seu perfil social, linguístico e estético destoa do que boa parte do público está habituada, uma característica muito comum a boa parte das produções de cinema fora do eixo Estados Unidos-Europa.

Do pioneirismo de Sembene aos dias atuais, a produção cinematográfica do continente foi mudando. No começo, sofria com falta de estrutura. Nos tempos mais recentes, como podemos ver em Rafiki, o maior conhecimento técnico tem agido em prol das obras. Além disso, pela África acontecem alguns festivais de cinema, como o Festival panafricain du cinéma et de la télévision de Ouagadougou (Fespaco), surgido em 1969 em Ouagadougou, capital de Burkina Faso, que se tornou um importante polo de divulgação do cinema africano.

A repercussão internacional segue um tanto restrita. Na Europa há alguns festivais especializados em cinema africano. No Brasil acontecem algumas mostras com esse tema. O Instituto Moreira Salles, por exemplo, já realizou uma mostra das obras de Soylemaine Cissé e também já exibiu o filme Rafiki.

Ao refletir sobre essa trajetória e sobre o trabalho desses diretores, percebemos que há uma miríade de perspectivas nesses filmes, que vão desde questões políticas e sociais a observações mais profundas sobre o ser humano e a existência. O cinema africano, como toda corrente artística, é plural e multifacetado.

Conhecer o cinema africano significa conseguir ver a própria expressão de cada país por meio de seus artistas. É conhecer elementos ambientais, arquitetônicos, culturais, etc, sem passar pelo crivo do observador estrangeiro que existe em tantas obras.

Não se trata também de pensar que o cinema se limita apenas a uma construção antropológica, cuja relevância seja apenas fornecer a possibilidade de enxergar o outro. Trata-se, mais, de se aproximar de uma produção artística que oferece uma ampla experiência em todas as ramificações daquilo que se entende por arte.

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