Eduardo dos Santos, diplomacia, URSS e a política externa do Brasil atual

Tendo lançado sua autobiografia, o diplomata conta seu percurso profissional e comenta cenários políticos de ontem e de hoje

Livro Sintonia Perfeita: Vida e Diplomacia

Recentemente, o diplomata brasileiro Eduardo dos Santos lançou um livro autobiográfico intitulado Sintonia Perfeita. Vida e Diplomacia,  pela editora Francisco Alves. Santos atuou como secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, além de ter trabalhado em diversas embaixadas, como a de Moscou, na União Soviética; em Londres, no Reino Unido; em Berna, na Suíça e também aqui na América Latina, no Uruguai, Paraguai e na Argentina.

Seu livro é de fácil leitura, bem escrito e rico em detalhes. Uma viagem por sua vida e pela vida na diplomacia brasileira. Para quem aprecia as histórias da vida real, o livro é recomendadíssimo.

Úrsula teve a oportunidade de fazer uma breve entrevista com o diplomata. Falamos um pouco sobre o livro, sobre carreira e sobre o Brasil.

Prezado Eduardo, qual foi a motivação para a escrita de um livro de memórias? E como essa motivação se tornou a ação que, de fato, desencadeou na escrita desse belo livro?

Devo confessar, de imediato, que o livro nasceu, mais ou menos, por acaso. Não fosse a pandemia, talvez não tivesse sido escrito, como observou o embaixador Gelson Fonseca no prefácio. De fato, comecei a escrever no início da crise sanitária, em Milão, confinado em casa durante período de quarentena, quando aproveitei para atender a um antigo e insistente pedido das duas filhas para que colocasse no papel as minhas histórias da infância e adolescência que lhes contava na hora de dormir. Aceitei o desafio, e à medida que avançava na redação, achei que podia ousar e  ir mais longe. Dei-me ao trabalho, então, de recorrer à memória dos idos da juventude, dos tempos de estudante, da idade adulta, até chegar ao exercício da carreira como diplomata. No final, a obra ganhou o contorno despretensioso de uma espécie de relato autobiográfico ou livro de memórias a cobrir toda uma existência, na qual aparecem entrelaçados os episódios da vida pessoal e os da vida profissional.

O livro não trata apenas de sua carreira como diplomata, o senhor nos conta várias passagens que fazem emergir uma história de vida, com acertos, erros, felicidades, frustrações e muito trabalho. Como foi viver esse processo que perpassa pelas lembranças e esquecimentos para a escrita do livro?

Desde o início, a experiência causou impacto. Ao escrever em meio ao silêncio e ao isolamento social, mergulhei profundamente nos fatos do passado e os revivi com surpreendente nitidez. As pessoas, os lugares, os objetos, as sensações que fizeram parte de cada momento relembrado ressurgiram à minha frente em detalhe, às vezes a cores, como se tivessem sido gravados em vídeo. Esse esforço de memória mexe com as emoções, sobretudo quando incide sobre as questões familiares e os aspectos mais relevantes da vida profissional. Depois da pandemia, o processo de gestação do livro coincidiu com a transição para a aposentadoria, e, graças à parceria com o editor Carlos Leal, da livraria Francisco Alves, foi concluído. Devo dizer que o apoio do Carlos Leal e o seu interesse em abraçar o projeto foram fundamentais. Mas reconheço que, desde o início, o trabalho não deixou de provocar em mim alguma hesitação. Cheguei a pensar que talvez não fosse difícil encontrar, nos achados dessa memória, inspiração para escrever um romance como obra de ficção. Poderia fazer as adaptações que desejasse, mudar nomes de personagens ou [usar] outros artifícios. Mas considerei que este não seria o caminho correto. Ficou definido, assim, o caráter factual e transparente do projeto, comprometido, como assinalado na introdução, a abordar somente “casos, circunstâncias e emoções da vida real”.

Pensando agora  na carreira, apesar dos imensos desafios, o que o inspirou a buscar uma vida na diplomacia e como suas experiências iniciais na União Soviética moldaram sua visão sobre a política internacional?

O ingresso na carreira diplomática não foi um processo simples ou natural. Eu explico bem isso no livro. Em primeiro lugar, para qualquer um não é coisa trivial. Trata-se de concurso difícil, rigoroso, em decorrência das exigências acadêmicas. Por outro lado, no meu caso particular, como ressalto em um dos capítulos da primeira parte, a ideia era mais do meu pai do que minha, já que ele alimentava esse sonho desde que tentou em vão entrar no Itamaraty, num dos raros concursos diretos que se fez à época para ingresso na carreira sem passar pelo Instituto Rio Branco. Como já era funcionário concursado do Banco do Brasil, não voltou mais a tentar. Desde pequeno ouvi meu pai contar essa história, dizendo que só não havia passado porque o seu inglês era insuficiente. Inclusive, alguns diplomatas que se tornaram depois eminentes embaixadores, como Ítalo Zappa, foram seus companheiros de concurso.

Afinal, depois da experiência confusa que tive ao tentar pela primeira vez o vestibular para entrar no Rio Branco, quando ocorreram dificuldades no exame médico, pude encontrar as condições necessárias para tomar uma decisão por livre e espontânea vontade. Não creio, sinceramente, que algo em especial me tenha inspirado a abraçar a diplomacia como profissão. Atração, sim, pois os atrativos da carreira são conhecidos, não obstante a consciência de que você deve estar imbuído acerca da seriedade do compromisso com a causa pública, com a defesa do interesse nacional e, também, a necessidade de enfrentar com coragem os desafios e, por vezes, mesmo os sacrifícios que a atividade comporta. Eu costumo dizer que o meu primeiro posto na carreira não existe mais, a União Soviética. Mas não é bem assim, nós sabemos. Tanto a URSS quanto a Rússia de antes e depois do período soviético têm peso próprio, e também identidade própria, no seio da comunidade  internacional, consideradas as respectivas circunstâncias históricas. Na minha época, o país estava inserido no contexto de uma ordem internacional marcada pela bipolaridade e pelo conflito ideológico. Desde a época da política externa independente, no começo dos anos 1960, o Brasil tinha clareza e visão pragmática quanto ao seu interesse de desenvolver as relações comerciais com os países socialistas, e a parceria com a União Soviética constituía uma prioridade.

Durante sua carreira, quais foram os maiores desafios enfrentados? Como o senhor enxerga hoje a forma como o regime militar trabalhava as relações exteriores e qual a diferença para o período democrático?

Existem desafios de ordem pessoal e desafios de ordem profissional. Entre os primeiros, o maior foi enfrentar o drama que resultou na perda de minha mulher. Quanto aos demais, foi marcante a experiência de acompanhar importantes crises internacionais como a guerra das Malvinas, o próprio desmembramento da União Soviética, o fim da era Thatcher, a crise do Golfo, a quebra da ordem democrática no Paraguai e o processo que levou à retirada do Reino Unido da União Europeia, o chamado Brexit. Tive o prazer de vivenciar o processo de reaproximação entre o Brasil e a Argentina iniciado entre fins dos anos setenta e começo dos oitenta do século passado, como foi muito interessante ver de perto como nasceu o Mercosul à medida que a ideia da integração econômica ganhou força na região a ponto de fazer surgir um processo de alcance histórico que, não obstante, ainda tem etapas e condições a cumprir. Quanto à segunda parte da pergunta, diria que a principal característica da política externa conduzida no regime democrático é a força da legitimidade. Ela se exprime na participação dos atores institucionais do Estado e da sociedade, bem como nos princípios e valores que definem o perfil de atuação internacional do país e que estão consignados no artigo 4 da Constituição Federal (respeito à soberania dos Estados,  independência, não-intervenção em assuntos internos,  solução pacífica dos conflitos, autodeterminação, etc).

Com base em sua vasta experiência, como o senhor enxerga o futuro da diplomacia brasileira no cenário global atual? Como o Brasil está posicionado num cenário de tantas incertezas?

O peso relativo do Brasil na ordem global, a tradição de sua diplomacia e a credibilidade de sua política externa são a maior garantia de que o interesse nacional será continuamente observado e preservado através de participação eficiente e responsável nos esforços da comunidade internacional, seja em foros multilaterais, seja em âmbito bilateral. Em outras palavras, por vocação e interesses próprios, buscamos ter presença construtiva nos negócios mundiais. Isto vale para as questões do comércio internacional, do meio ambiente e do clima, da paz e da segurança, do desenvolvimento, bem como da atuação no Brics, no G-20, no Mercosul, nas relações com a China, com os Estados Unidos, e ainda nos casos da Guerra da Ucrânia e dos conflitos no Oriente Médio. A mesma orientação geral serve para os casos em que o Brasil tem um posicionamento claro e coerente em matérias referentes a direitos humanos, luta contra o terrorismo, desigualdade econômica e social,  clivagem tecnológica, desafios da era digital, transição energética, combate às drogas e delitos conexos, enfim, aos temas que fazem parte da complexa e diversificada agenda do nosso mundo em constante evolução.

Autor

  • Bacharel e licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC/Campinas), com especialização em Patrimônio Histórico e Cultural pela mesma universidade. Possui também especialização em Gestão Cultural pela Cátedra de Girona e Observatório Itaú Cultural.

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