A Queda do Gigante Vermelho

Há 30 anos, a poderosa União Soviética chegava ao seu fim

Naquela gélida noite de 25 de dezembro de 1991, Mikhail Gorbatchóv fazia seu derradeiro discurso como presidente da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), anunciando sua renúncia. Ao deixar o Kremlin, a bandeira soviética, com a foice e martelo dourados no fundo vermelho, foi baixada do mastro, enquanto o Hino da URSS era tocado pela última vez. Em seu lugar, foi hasteada a antiga tricolor da Rússia — branca, azul e vermelha. No dia seguinte, o Soviete das Repúblicas — câmara alta do parlamento soviético — ratificou a dissolução do país, a partir de então dividido entre 15 repúblicas independentes, sendo a Rússia a maior e mais poderosa dentre elas.

Chegava ao fim o primeiro Estado fundado a partir de uma revolução vitoriosa inspirada no comunismo, a Revolução de Outubro de 1917 — embora a URSS tenha sido fundada apenas em 1922, pela união entre Rússia, Ucrânia, Bielorrússia e Transcaucásia (uma federação de vida curta formada pelas atuais Geórgia, Azerbaijão e Armênia), todas elas dominadas pelos revolucionários bolcheviques nos estágios finais da guerra civil que consolidou a supremacia “vermelha” por toda a região, sob a liderança de Lênin.

Durante a maior parte do século XX, a União Soviética dominou as agendas geopolíticas do resto do mundo, exercendo grande influência ideológica e suporte material a movimentos revolucionários e regimes clientes. Emergiu vitoriosa da Segunda Guerra Mundial – chamada de “Grande Guerra Patriótica” pela propaganda soviética – ampliando sua influência por toda a Europa Oriental, ao custo de incontáveis perdas humanas e materiais. Elevada ao status de potência nuclear em 1949 — quando realizou seu primeiro teste com a bomba atômica — a URSS se converteu de aliada circunstancial das potências ocidentais contra o nazismo a antagonista militar e ideológica, ao longo da Guerra Fria.

Em oposição às democracias liberais capitalistas que se consolidaram no Ocidente após a Segunda Guerra, a URSS seguia o princípio da “ditadura do proletariado“, sob o domínio do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e intensa repressão. Principalmente durante o governo de Josef Stalin (1924 a 1954), o aparato soviético de opressão, espionagem, trabalhos forçados, encarceramento e extermínio de opositores, reais ou imaginários, funcionou em escala sem precedentes na História humana.

Stalin comandou a URSS sem espaço para opositores | imagem: autor desconhecido

Na década de 1980, porém, o país chamado de “Império do Mal” pelo presidente americano Ronald Reagan já dava sinais de fraqueza.

O princípio do fim: a Era da Estagnação (1975-1985)

O poderio político e militar soviético sobre o chamado “Bloco Socialista” parecia inabalável até o início dos anos 1980, depois que as tentativas de abertura na Hungria (em 1956) e Checoslováquia (1968) foram suprimidas com intervenções violentas do Exército Vermelho e seus aliados do Pacto de Varsóvia (Polônia, Alemanha Oriental, Checoslováquia, Romênia e Bulgária). Por outro lado, a economia enfrentava um período de longa estagnação. Estimativas da CIA apontavam que o PIB soviético alcançou um pico de 58% do PIB americano por volta de 1975, mas a partir daí passou a crescer em ritmo inferior às economias dos EUA e da Europa Ocidental. Com o declínio da produtividade, a agricultura encontrava dificuldades em abastecer a crescente população urbana, enquanto a indústria pesada e de armamentos eram priorizadas em detrimento da fabricação de bens de consumo. Uma das anedotas recorrentes dizia que o país capaz de enviar satélites e cosmonautas pro espaço e construir tanques e aviões magníficos não conseguia montar um liquidificador que prestasse.

Após a morte do secretário geral do Partido Comunista (cargo equivalente ao chefe de governo) Leonid Brejnev em 1982, o regime passou por uma crise sucessória. A burocracia interna do Partido Comunista havia sido dominada por uma gerontocracia – domínio dos mais velhos – dificultando sua renovação. Brejnev foi sucedido por Yuri Andropov, 68 anos, que governou por 15 meses, a maior parte deles a partir de um leito de hospital, até padecer por falência renal em Fevereiro de 1984. Em seu lugar, nomeou-se Konstantin Chernenko, 72 anos e péssimo estado de saúde, que por sua vez durou 13 meses no cargo. Durante as seis décadas entre sua fundação em 1922 e a morte de Brejnev em 1982, a URSS teve somente cinco líderes: Lênin, Stalin, Malenkov (por um curto período), Krushchov e Brejnev. Já nos três anos entre 1982 e 1985, foram quatro líderes diferentes. Mikhail Gorbatchóv (ou Gorbachev, dependendo da transliteração), de “apenas” 54 anos, nomeado como sucessor do falecido Chernenko em março de 1985, seria o último deles.

Glasnost, Perestroika e Tchernóbil (1985-1988)

Pouco após assumir o comando do país, Gorbatchóv anunciou um amplo programa de reformas econômicas (“Perestroika”, ou reestruturação) e políticas (“Glasnost”, ou abertura). Internacionalmente, o novo secretário geral buscou uma aproximação com o Ocidente e o esfriamento das tensões da Guerra Fria. Internamente, agiu para promover novas lideranças dentro da burocracia estatal e aposentar veteranos que poderiam ameaçar o seu cargo. A Perestroika, porém, não implicava na adoção total de uma economia de mercado ou transição ao capitalismo, da mesma forma que a Glasnost não representava o abandono imediato da ditadura de partido único rumo a um Estado de direito democrático. As iniciativas encontravam resistência no próprio aparato estatal soviético, avesso às mudanças. Ao mesmo tempo, suas limitações geravam desconfianças na sociedade soviética, que apesar da censura estatal e restrições a contatos com o Ocidente, percebia uma queda gradual nas condições de vida.

O desastre de Tchernóbil em abril de 1986 contribuiu para expor ao resto do mundo as muitas falências do Estado soviético, que falhou na prevenção do acidente nuclear, bem como em informar abertamente à própria população e aos países vizinhos sobre sua gravidade e consequências. O regime obcecado em omitir informações e a trabalhar em segredo, com seus agentes buscando a autopreservação acima de tudo, parecia imune às tentativas de reformas e abertura. Gorbatchóv posteriormente citou o desastre como um momento decisivo para a queda do regime soviético:

O desastre de Tchernóbil, mais do que tudo, abriu a possibilidade de uma liberdade de expressão muito maior, de forma que o sistema como nós conhecíamos não poderia mais continuar.

Os anos seguintes foram marcados pela intensificação da Glasnost: maior liberdade de imprensa, acadêmica e tolerância religiosa. Numa mídia até então fortemente censurada e autorizada a publicar somente o ponto de vista oficial, jornais passaram a ter maior liberdade para abordar problemas econômicos ou mesmo a publicar críticas ao governo (inclusive às reformas de Gorbatchóv). Por outro lado, as reformas econômicas não conseguiam reverter as crises de desabastecimento, o declínio da qualidade de vida e a inflação crescente.

Abertura democrática e a queda do Muro (1989)

Em março de 1989, os soviéticos foram às urnas para eleger o Congresso dos Deputados do Povo, que por sua vez elegeria o Soviete Supremo (Parlamento). Apesar de ser uma eleição de partido único, foi a primeira em mais de 60 anos a permitir a competição entre candidatos oficiais (indicados pela direção do PCUS) e independentes (filiados ao PCUS porém sem apoio oficial). Os independentes venceram 13% das cadeiras do Congresso, sendo o mais proeminente dentre eles Boris Yeltsin, que ganhou do candidato oficial no distrito de Moscou com 89% dos votos.

Enquanto os reformistas de Moscou pisavam em ovos para reformar gradualmente o sistema soviético sem atiçar a reação, no Leste Europeu os satélites comunistas começavam a ruir. No chamado “Outono das Nações” de 1989, os comunistas perderam o poder na Polônia (24 de agosto), Hungria (23 de outubro), Checoslováquia (28 de novembro) e Bulgária (11 de dezembro). Na Romênia, o desfecho mais dramático: Nicolae Ceausescu, que governava o país há 24 anos e era um opositor às reformas de Gorbatchóv, foi derrubado pelas próprias forças de segurança e fuzilado ao lado da primeira dama Elena no Natal de 1989.

Na Alemanha Oriental, a liderança do Partido Comunista também resistia às reformas propostas por Gorbatchóv. Com a queda dos regimes comunistas vizinhos e a consequente abertura das fronteiras da “Cortina de Ferro”, dezenas de milhares de alemães orientais emigraram em poucas semanas, através das fronteiras da Checoslováquia e Hungria com a capitalista Áustria. Por fim, em 9 de novembro de 1989, o regime da DDR (sigla em alemão para “República Democrática Alemã”), pressionado por uma série de manifestações populares, abriu os pontos de controle do Muro de Berlim, permitindo que seus cidadãos entrassem na Alemanha Ocidental. O monumento que simbolizava a opressão dos regimes comunistas seria posto abaixo nos dias seguintes, e menos de um ano depois, as duas Alemanhas voltariam a ser uma só, capitalista.

A queda do Muro de Berlim | imagem: autoria desconhecida

Ao contrário do ocorrido nas décadas anteriores, as forças armadas soviéticas, sob orientação de Moscou, não intervieram a favor destes regimes comunistas. O Kremlin estava mais empenhado em salvar o próprio regime do que em acudir os Estados Satélites que caíam como dominós. A pressão por mudanças também se fazia sentir na Albânia, Iugoslávia (que seria eventualmente arrasada por uma guerra civil e dividida em sete países) e Mongólia. Estes regimes comunistas fariam a transição rumo à economia de mercado e democracias liberais nos meses seguintes à queda do Muro de Berlim. No Afeganistão, invadido em 1979 pela URSS, a resistência local (com contribuição da CIA) forçou a retirada das tropas soviéticos com pesadas baixas, concluída em 1989.

Veja também:
>> Transição Socialista: “O poder proletário soviético sofreu uma contrarrevolução interna: o stalinismo”
>> Rodrigo Guim: “O mundo todo é cúmplice do que acontece no Afeganistão”

A ascensão de Yeltsin (1990)

Temendo sua derrubada pelo Comitê Central do Partido (como havia ocorrido, em 1964, com Nikita Khrushchov), Gorbatchóv determinou a realização de uma eleição presidencial indireta em março de 1990, sendo ele o único candidato. O Congresso dos Deputados do Povo aprovou, por 73% dos votos, um mandato presidencial fixo de 5 anos — sob a promessa de que as eleições seguintes seriam diretas e multipartidárias. Ao mesmo tempo, seu opositor Boris Yeltsin era eleito chefe de governo da Rússia (então uma das repúblicas constituintes da URSS). Semanas após sua eleição, Yeltsin anunciou sua desfiliação do Partido Comunista. O regime de partido único, onde o Partido Comunista se confundia com a própria direção do país, deixava de existir em favor de uma nascente democracia pluripartidária.

Yeltsin rapidamente soube tomar proveito das dificuldades enfrentadas pelo reformista Gorbatchóv para tomar sua posição. Em Junho de 1990, o Soviete Supremo da Rússia declarou a soberania da legislação local sobre aquela aprovada pelo governo da União. Efetivamente, isso significava a prevalência de Yeltsin sobre Gorbatchóv sobre 3/4 do território da URSS. Outras repúblicas soviéticas pulavam da nave-mãe: os países bálticos — Estônia, Letônia e Lituânia — que haviam sido incorporados à URSS depois da Segunda Guerra foram os primeiros a declarar independência e buscar reconhecimento internacional.

Protestos no Tajiquistão Soviético, fevereiro de 1990: A abertura escapa ao controle de Gorbatchóv | imagem: Foto: Arquivo RIAN/Vladimir Fedorenko

Ao final de 1990, a aprovação de Gorbatchóv estava no chão, com pressões tanto dos “linhas duras” (que queriam um endurecimento do regime) quanto dos reformistas pela sua renúncia. Somente no Exterior parecia haver algum reconhecimento para o presidente soviético, que ganharia o Nobel da Paz daquele ano.

O golpe de Agosto: a União se desmantela (1991)

A última cartada de Gorbatchóv para salvar o cargo e manter a União foi um referendo realizado em Março de 1991, onde 77,85% dos mais de 100 milhões de eleitores aprovaram a “preservação da URSS como uma federação renovada de repúblicas soberanas iguais, onde os direitos e a liberdade dos indivíduos de todas as nacionalidades seriam garantidas”. Todavia, o referendo foi boicotado em seis repúblicas: os três países bálticos que já haviam declarado independência, além da Armênia, Geórgia e Moldávia. A partir da aprovação do referendo, Gorbatchóv propôs a aprovação de uma nova constituição para a URSS, a ser assinada em agosto de 1991.

Porém, em 19 de agosto de 1991, os “linhas duras” do Partido Comunista organizaram um golpe contra Gorbatchóv, que estava com a família em uma casa de campo na Crimeia. O presidente foi mantido incomunicável enquanto seu vice Gennady Yanayev, ministros do seu gabinete e autoridades do PCUS organizavam um “comitê de estado de emergência”, na tentativa de suspender as reformas e reestabelecer o poder a favor do Partido. O golpe enfrentou ampla oposição da sociedade soviética, que organizou protestos sob a liderança de Yeltsin. 48 horas depois, os golpistas estavam derrotados e Gorbatchóv restabelecido no poder, mas numa condição de evidente fragilidade institucional. O antes todo-poderoso Partido Comunista da União Soviética teve suas atividades suspensas, por ordens de Yeltsin, em 29 de agosto, e em Novembro seria proibido em definitivo.

Yeltsin sai vitorioso após o fracassado golpe de agosto | imagem: ITAR-TASS

A proposta de nova constituição para a URSS jamais seria assinada, e as demais repúblicas decretariam independência nas semanas seguintes. Em Dezembro, a Ucrânia — segunda maior república soviética em população, atrás apenas da Rússia – aprovou sua independência num referendo por mais de 90% dos votos. Poucos dias depois, Yeltsin se reuniu secretamente com os presidentes da Ucrânia e Bielorrússia para assinar o Pacto de Belaveja, que determinava a extinção da URSS e a independência de todas as repúblicas soviéticas. Uma a uma, as demais repúblicas aderiram ao Pacto nas semanas seguintes. A queda de braço com Gorbatchóv estava praticamente vencida.

Apoiado apenas pelas lideranças do Cazaquistão e Quirguistão – duas empobrecidas repúblicas da Ásia Central — Gorbatchóv era um fantasma isolado no Kremlin sem nenhum poder efetivo nas mãos. Restava a renúncia, anunciada em plena noite de Natal.

25/12/1991. A bandeira da URSS é baixada do mastro do Kremlin pela última vez | imagem: reprodução/Youtube – ABC News

Legado

A ruptura dos laços econômicos entre as repúblicas soviéticas levou a uma queda ríspida nos padrões de vida nos anos imediatamente após a dissolução da URSS. O PIB russo praticamente caiu pela metade ao longo dos anos 1990, só voltando a crescer próximo à virada do milênio. Houve queda também na expectativa de vida. O radicalismo das reformas econômicas durante o governo de Yeltsin, marcado pela corrupção desenfreada e privatizações mal conduzidas, levou à concentração da riqueza do país nas mãos de oligarcas com conexões com o governo. A hiperinflação contribuiu para corroer as parcas economias dos cidadãos russos. Na virada do ano de 1999, Yeltsin surpreendeu o país ao renunciar à presidência (havia sido reeleito em 1996), entregando o poder ao primeiro-ministro Vladmir Putin – que permanece no poder até os dias atuais.

As promessas de liberdade e democracia não se concretizaram para boa parte da população do antigo bloco soviético. Embora as repressões do tempo do Gulag sejam parte do passado, alguns destes países estão entre os recordistas de violações de direitos humanos, e vários ainda são governados por “homens fortes” que se perpetuam no poder com métodos que incluem prisão, envenenamento, sequestros e tortura de opositores. Além de Putin, que efetivamente comanda a Rússia há duas décadas, em Belarus (antiga Bielorrússia) o presidente Alexander Lukashenko está no poder desde 1994. No Cazaquistão, Nursultan Nazarbayev permaneceu por quase 30 anos no comando até renunciar em 2019.

Permanece em boa parte da população da antiga União Soviética um sentimento de nostalgia, principalmente entre os mais idosos. Pesquisas de opinião demonstram que entre metade e 60% da população russa lamenta o fim da URSS — pesquisas realizadas na Armênia e Quirguistão apresentam resultados semelhantes. Apesar de tudo, quando confrontados com a realidade do capitalismo contemporâneo, muitos ex-soviéticos ainda consideram que o regime cuidava melhor das pessoas comuns.

Leituras Sugeridas:

O Fim do Homem Soviético, de Svetlana Aleksiévitch
Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch
Arquipélago Gulag, de Alexandr Soljenítsyn
Imperium, de Ryszard Kaputscinski
A Queda do Império Soviético, de Michael Dobbs

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