Aprender com o Holocausto é interromper a repetição da marcha da história

Sobre a comparação do ataque israelense ao Holocausto feita por Lula e sobre a postura que a guerra pede de todos nós agora

Registro da destruição em Gaza, 30/1/2024 | imagem: Wasfi Akab

Na última conversa que tive com meu avô em sua casa, ele fez questão de me mostrar uma fotografia de sua família na Polônia. Uma família grande. Nunca mais fomos uma família grande. Foi um momento estranho. Eu não imaginava que tal recordação existisse, e ele nunca me falava sobre a infância dele. Todas as histórias que ele me contava começavam na guerra. Nada antes. Mas pela próxima hora, lá estava ele, me dizendo o nome das pessoas, e seu destino comum: assassinadas pelos nazistas. Todas, menos três. O meu avô, um irmão (que conheci pessoalmente) e um tio jogador de futebol, cuja profissão de alguma forma foi sua salvação.

Faço essa introdução para ressaltar que obviamente a declaração do presidente Lula – acusando Israel de genocídio e comparando as ações do país na guerra em Gaza ao Holocausto1 – me incomoda. Mas é preciso investigar o incômodo, e a possibilidade de essa afirmação apontar para uma reflexão para além do que sentimos agora.

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>> “Sobre Israel, Palestina e os ataques do Hamas“, por Isaac Saul

Quando se faz uma afirmação como essa, há dois riscos imediatos. O primeiro deles é construir uma régua de sofrimento, que inevitavelmente levará para uma discussão sobre quais vidas valem mais ou menos. O Holocausto é um evento singular, mas está longe de ser único, como alguns insistem em afirmar. Não faltam exemplos, incluindo o dos diversos povos indígenas desta terra chamada Brasil, cujos processos de destituição, despossessão, apagamento e extermínio foram feitos em benefício de um certo tipo de humanos, um certo modo de vida, uma certa visão de mundo, que acabou beneficiando também aos sobreviventes do Holocausto e seus descendentes que aqui chegaram e encontraram refúgio, como eu. Ao afirmar o Holocausto como evento único, desrespeitamos a memória dos ancestrais dessa terra, e a luta dos que seguem resistindo à barbárie. Ao afirmar o Holocausto como evento único, desrespeitamos todos os outros povos vítimas de perseguição, apagamento e genocídio.

O segundo risco é comparar um evento do presente, que está acontecendo, com algo que ocorreu no passado, cujas imagens, lições e tamanho estão consolidados. Talvez, tendo como base a quantidade de mortos e uma política institucionalizada de extermínio que envolvia a totalidade do povo judeu, não seja possível comparar o genocídio em Gaza com o Holocausto.

É preciso lembrar, porém, que o Holocausto não acontece de uma vez, é um processo que se intensifica, e que depende muito do silêncio da opinião pública frente ao horror. Estima-se que até 1941, dezenas de milhares de judeus tenham sido mortos. Em 1941, foram centenas de milhares. Em 1942, 2 milhões. Aprender com o Holocausto é saber interromper a marcha da história antes que ele se repita. Sermos vítimas de genocídio não é salvo-conduto da história. O melhor momento para interromper essa guerra é cem dias atrás. O segundo melhor momento é agora.

O governo de Israel, liderado por um criminoso (que será preso assim que sair do poder), afirma que essa é uma guerra cujo objetivo é destruir o Hamas. Esse objetivo, revestido do manto da legítima defesa, é uma brecha para uma guerra contra todo o povo palestino. Afinal, enquanto houver palestino vivo, existirá a possibilidade de acusá-lo de ser do Hamas. A destruição deliberada de escolas, hospitais, casas e mesquitas, realizadas por um governo que nega uma solução de dois Estados, é claramente um apagamento histórico e um esforço para impedir a volta dos palestinos. Rafah – cidade em que estão 1.4 milhão de palestinos refugiados e que Israel ameaça atacar a partir de 10 de março, início do Ramadã – é o último refúgio palestino em Gaza. Os próximos dias são cruciais.

Decidir que lições levar de nossa ancestralidade é uma experiência tanto individual quanto coletiva. Pessoalmente, entendo que todos nós que carregamos o sangue dos sobreviventes precisamos viver sob o imperativo ético do nunca mais para todos, e não apenas para nós. Especialmente quando os agressores somos nós. Portanto, você se sentiu ultrajado com as declarações do presidente Lula? Eu te entendo, e até te acolho, mas te convido a demonstrar também sua revolta com o massacre em Gaza. Se essa fala será vista à luz da história como exagerada ou premonitória, a hora da decisão é agora.

Autor

  • Antropólogo, educador e pesquisador atuando na interface entre emergência climática e violências históricas e sistêmicas. Como cofundador do projeto Terra Adentro e membro do coletivo Gestos Rumo a Futuros Decoloniais, trabalha com práticas pedagógicas que visam estimular formas de viver capazes de nos engajar, ao invés de negar, com nossos entrelaçamentos e cumplicidade em danos a humanos e não-humanos, e com os limites do planeta.

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