Editorial – Março-Maio/2023

Não seria preciso recuperar, ou, ainda, reconquistar o termo “patriota”? Assim como a camisa da seleção brasileira foi apropriada por certo grupo político, o que complicou até a nossa relação com a Copa, esse adjetivo parece hoje totalmente recoberto de ideais autoritários, sendo a imagem mais clara disso a invasão de 8 de janeiro nos prédios do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, em Brasília. Como um primeiro passo contra essa concepção, é preciso notar que se trata de um patriotismo estranho: um patriotismo que destrói obras de Di Cavalcanti e de Cândido Portinari, alguns dos constitutivos máximos da nossa cultura, momentos da construção do que é ser brasileiro – um “patriotismo” (as aspas agora devidamente colocadas cumprem já o papel de um cordão sanitário) está, para dizer o mínimo, profundamente equivocado sobre o significado de ser parte de uma nação, sobre alcançar aquilo a que o nosso hino quer nos convencer, amar a pátria.

Um segundo passo seria, como ensinou, aliás, Paulo Freire, questionar o que pode dizer essa expressão “amar a pátria” (as aspas colocadas aqui como quem isola uma substância para estudo em laboratório). Deixando essa complexidade ao leitor, percebo de forma mais imediata que posso amar espontaneamente um país que produz alguém como Carolina Maria de Jesus, cuja obra é, nesta edição, discutida em texto de Clarice Campos. Como não ser patriota sendo parte de um território capaz de um livro com a potência de Quarto de Despejo? Há, claro, um engasgo nessa minha afirmação, pois é o próprio fracasso do Brasil enquanto nação, sua desigualdade profunda, que impôs à Carolina a vida de pobreza e fome que ela denuncia. Mas – na medida do artigo de Clarice, que ressalta o caráter transgressivo da sua obra – quero, sem cair em ideologias de “superação” (como a do “tudo ficará bem“), enfocar essa força pessoal, que podemos chamar de brasileira.

Insisto, com esses esboços de pensamento, em retomar a palavra “patriota” para não abandonar essa ferramenta, não se alhear de um modo de poder, a criação das comunidades imaginárias que são as nações. Um movimento análogo se dá em outro texto deste número 9, “No que os ‘patriotas’ erraram?“, de César Maximiano Duarte. O advogado basicamente distingue forma e conteúdo nos ataques de 8 de janeiro, para, a um tempo, criticar os seus fundamentos ideológicos e resguardar a possibilidade dessa forma de ação direta. No fundo, César toca num tema de longa tradição na filosofia: qual o papel da violência política na construção da sociedade? Com marcos como a discussão do liberalíssimo John Locke sobre a justeza do tiranicídio, isso está sobre a mesa do debate social há tempos. Podemos simplesmente saltar sobre essa questão? Não temos de nos perguntar “e se um dia tivermos de resistir?“, parafraseando uma canção hardcore?

A ideia de resistência comparece nesta Úrsula também na entrevista com Yasmin Utida, pesquisadora que estuda o papel da tradução no esclarecimento sobre a história, tendo como objeto narrativas da resistência comunista contra o nazismo, entre elas, as histórias de Anita Leocádia Prestes, filha de Luís Carlos Prestes e Olga Benário Prestes. Esta fala de Yasmin – que, compondo a série Da Pesquisa Brasileira, aborda também práticas de investigação –, por meio dos acontecimentos a que alude, pode reenquadrar o que conversamos até aqui –  o confronto com o poder, a vida sob sujeição e os abismos a que o “patriotismo” pode levar.

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Além dos dilemas da violência política, a revista trata neste trimestre de um outro tema espinhoso: o da chamada “nova eugenia“, em texto de Rafael Teixeira. O autor apresenta esse discurso que – sem fundação explícita em uma ideia de raça, apelando em vez disso a ideais de saúde e de autonomia – procura orientar a seleção genética de embriões, por exemplo, para evitar a ocorrência da síndrome de Down. Rafael, mobilizando a discussão dos valores na filosofia da ciência e um panorama de teorias éticas, aponta falhas nessa perspectica e se contrapõe a ela defendendo a pluralidade das formas de ser humano. Ele fala, principalmente, do ponto de vista de uma pessoa com autismo.

Outro assunto atual nessas páginas recém-publicadas é o do MGTOW – “homens seguindo o seu próprio caminho”, na sigla em inglês – e do movimento red pill, postos em foco pelo nosso editor de política Rafael Bensi. Essas correntes buscam promulgar uma ética exclusivamente masculina e se aproximam frequentemente da misoginia e do extremismo, o que Rafael destaca com base em pesquisas.

Para além disso, temos ainda um artigo de Fabio Roberto Lucas sobre um livro do filósofo Paul Valery, material antes inédito, saído há pouco na França; o documentário Educ(ativa), sobre ações inovadores em escolas públicas e particulares, apresentado pela diretora; um poema sobre um amor que se pode por também entre aspas; uma entrevista sobre o passado recente e o futuro da cultura no Brasil; além da riqueza da dança, da vida das bibliotecas e da filosofia de Zoroastro.

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Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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