Escrever a [minha] dança

O poder do flamenco: ser uma dança que não se pretende sagrada, mas que, antes, sacraliza e celebra o que há de mais humano

Começo como quem deseja dar forma a um bordado. Imagino a forma, escolho as cores, decido o tipo de linha: as mais finas para desenhar aquele detalhe não imprescindível, mas necessário à composição, as mais espessas, capazes de sustentar o contorno que transforma o todo em corpo. E, logo, embebida na vontade de gestar algo novo, sento-me para escrever. Assim tem sido, ultimamente. Uma sensação que vai preenchendo o tecido branco dos dias com a lentidão e a delicadeza do tear cotidiano. Dançar, porém, é um rito que exige mais. Perder-se no desejo e no ímpeto da criação, tal qual a semente da escritura, são gestos vãos sem um corpo em movimento. A dança convoca uma outra ordem de experiência criativa, na qual a corporalidade é o que, de fato, consuma a criação. Se cada corpo é um universo de possibilidades, entregar-se ao dançar é escolher vivenciar a alma em um corpo possível, na força do instante presente, aos olhos de quem se abre para esse pequeno-grande acontecimento. Escrever a minha dança é, portanto, bordar o inesperado, respeitar a cor do pulso do momento, com a linha do que me faz sentir [mais] viva.

Veja também:
>> “Ela pode falar“, Max Gimenes
>> “Juliana Moraes: Dança e Liberdade“, da série Como Começar

Na arqueologia das memórias de infância, guardo a autoimagem: vestida de colã e meia calça rosa claros, uma sapatilha de tecido nos pés e uma bolsinha em formato de cilindro, no mesmo tom, pendurada ao braço, chegando para a primeira aula de balé clássico. O ano era 1990 e o que eu entendia era apenas das mãos dadas à minha mãe, me dizendo que vai ser legal filha, não precisa ter medo. As crianças apenas são. Ali, no auge dos meus três anos de vida, sem entender aquilo que, verdadeiramente, se dava, senti uma alegria imensa e um bem-viver na movimentação do corpo ao som das músicas. Desse momento em diante não me lembro de ter parado de dançar. E os estilos foram muitos: balé, jazz, contemporâneo, danças populares brasileiras (frevo, maracatu, jongo, caboclinho, côco, cavalo marinho), forró, samba, tango, bharatanatyam, bollywood e flamenco. Sem contar a dança livre, aquela feita no anonimato do lar, fruto da improvisação, livre de códigos, ditada pela música que toca na rádio ou por uma canção-afeto, que vez ou outra ritma o bailado da lembrança.

Os limites entre existir e dançar enlaçaram-se, na pujança que movimenta o pensar, o sentir e o agir. Em 2014, já aos vinte e sete anos, escolhi trilhar a estrada do flamenco, um pouco por encantamento do que havia visto (um tablado em Barcelona cinco anos antes), outro tanto pela ancestralidade que me era evocada (a família de minha mãe é de origem andaluza). O flamenco me presenteou com a sabedoria máxima de que  q  u  a  l  q  u  e  r  corpo pode dançar. Me comove observar mulheres e homens tão diferentes encontrando uma via de expressão que abraça a bagagem da vida para construir um corpo que ora se diverte nas bulerías, ora se seca em um palo jondo, ora sensualiza por tangos1. É a vida e a dança, mais uma vez, dando as mãos no calor da descoberta. Descoberta íntima, invisível aos olhos do outro, mas arrebatadora para quem a experimenta. Talvez seja justamente esse o seu poder: ser uma dança que não se pretende sagrada, mas que, antes, sacraliza e celebra o que há de mais humano em quem se dispõe a escavar a seara das emoções.

Finalizo esta breve dança de palavras com a eterna Pina Bausch2: Dancem, dancem, senão estaremos perdidos.

Autor

  • Formada em Licenciatura em Arte-Teatro pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Desde 2003, dedica-se também à dança, tendo estudado balé clássico, danças populares brasileiras, danças indianas (clássica e moderna) e flamenco. Integrou o grupo de dança indiana moderna Bollywood Brazil e o coletivo de dança e performance Cosmic Dance. Concluiu a pós-graduação em Fotografia na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em 2014. Atualmente, cursa Letras na Universidade de São Paulo (USP) e estuda flamenco no Estúdio Ale Kalaf.

Notas[+]

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