Paulo Freire diria a seus haters: vocês têm razão

Olhando para os lados (quem compõe este país?), olhando para trás (como foi que chegamos até aqui?), poderemos olhar para frente

“Há querer entender o Brasil e há tentar dizer o Brasil o que ele é. Há falar “democracia” da boca para fora e crer de fato que um país não é mais do que a sua gente, toda a sua gente” | imagem: André Koehne

O Brasil não é para amadores assim como o Brasil não é para haters de Paulo Freire.

Brasileiros que somos, entendemos instintivamente o que se quer dizer quando alguém usa a frase: “O Brasil não é para amadores”. É um sentimento muito parecido com aquele meme “Bem-vindo ao Brasil. Regras: não há regras”. A questão é que a gente tem a malandragem de saber que este país não é linear. Esperar que um limite não seja ultrapassado, que uma convicção não seja desmentida, que uma palavra dada não vire paródia – tudo isso é pedir pra ser surpreendido.

Sentimos que para saber o Brasil é preciso ter uns olhos oblíquos de Capitu, ser sincopados como o samba, buscar a ginga debaixo das camadas de técnica fria no futebol. Há, contudo, diversos setores na vida nacional hoje que deixam de lado essa flexibilidade, essa resiliência, essa mutação contínua. Por exemplo, os haters de Paulo Freire – todos esses que, muito mais do que “discordar” das suas ideias, procuram anular sua presença ainda viva. Bentinhos de espírito e doentes do pé, para eliminar seu legado, impõem(-se) uma imagem de Brasil que não aguenta nas pernas.

Um acontecimento só basta para provar essa tese. Como conta Sergio Haddad – autor da biografia O Educador: Um Perfil de Paulo Freire – o educador foi preso pela ditadura militar menos de três meses após o golpe de 1º de abril de 1964 (essa eterna piada pronta de terem salvado a democracia dos comunistas no dia da mentira). Em 16 de junho, enjaularam; soltaram em 3 de julho, prenderam de novo em 4 de julho. Somando tudo, cerca de 70 dias em cárcere1.

No segundo período de encarceramento, um tenente veio falar com ele. “Professor”, pediu o militar, “vim conversar com o senhor porque agora nós vamos receber um grupo de recrutas e, entre eles, há uma quantidade enorme de analfabetos. Por que o senhor não aproveita sua passagem por aqui e ajuda a gente a alfabetizar esses rapazes?”. Surpreso, Paulo respondeu: “Mas, meu querido tenente, estou preso exatamente por causa disso! Está havendo uma irracionalidade enorme no país hoje, e se o senhor falar nessa história de que vai convidar o Paulo Freire para alfabetizar os recrutas, o senhor vai para a cadeia também. Não dá!”.

Há pouca coisa mais Brasil do que esse momento. Para além dos editorais pró-golpe na imprensa brasileira, do apagamento da popularidade do presidente derrubado João Goulart, da tentativa bem-sucedida de por para debaixo do tapete anseios populares que se faziam ouvir pela primeira vez (e de por debaixo da terra os que insistissem) — para além de tudo isso, no lado de dentro do regime ditatorial o mesmo desejo, a mesma necessidade, persistia e fazia seu apelo. O tenente, o Brasil de baixo, mesmo que cooptado. O tenente foi à Paulo Freire, não aos que moveram mundos e fundos para acabar com o projeto do professor e fracassaram em alfabetizar o país nos anos seguintes.

Toca um Brasil desse no pé do amador ele não sabe o que fazer, se atropela, não aguenta nas quatro linhas, chuta pra lateral, pra linha de fundo. Esse tenente podia até saber que a “revolução” tinha sido feita para prender e matar gente como aquele professor ali. Diziam pra ele: “Comunista é demônio”. Ele respondia: “Verdade”. Mas havia algo mais real: não era bom soldados analfabetos. Uma coisa era a ideologia direitosa. Outra era o mundo na frente dele. Pode quer que ele só fosse ingênuo, claro. Mas gosto de pensar que entendeu que uma deficiência da sua classe e que havia ali um homem para repará-la. Governo federal, hierarquia militar? Quero é que meus companheiros saibam ler.

Quero é que meus companheiros saibam ler. Quero é que os meus possam comer. Quero ser autônomo, livre, integral. Paulo Freire partia desses desejos, dessas esperanças, na sua prática. Será por isso que se comunicava tão bem com o Brasil de baixo? Será isso que fez a fama de Paulo, fama que chegou ao ouvido do tenente, que lhe deu um sonho novo? No outro dia, se lhe mandassem, ele encaminharia o educador à sala de tortura? Provavelmente sim… Os haters têm de entender que Paulo Freire fala de dentro de um Brasil que eles querem ignorar, mas talvez nós, da esquerda, tenhamos de perceber que muitos concidadãos nossos, que compreenderiam Paulo Freire, agem como seus inimigos.

Ler o Mundo para Ler a Palavra

O lema de Paulo Freire inscrito no subtítulo acima é o caminho para sermos mais brasileiros, no sentido com que eu abri este texto: mais intelectualmente e vivencialmente malemolentes. Há tudo o que diziam atos institucionais, discursos de ditadores e argumentos de ideólogos do regime – palavras, palavras, palavras – e havia o mundo, com o tenente e seus recrutas analfabetos. Por ter lido o mundo e ter aprendido com seus depauperados é que Paulo inventou um método – quando voltou à palavra, teve de fazê-la outra. Essa exigência – alimentar o pensamento com o real – urge sempre.

Dito em linguagem de meme, a orientação de Paulo Freire é aquele regras, não há regras. Vamos no máximo conseguir alguns indicativos de como agir, de como interpretar, que terão de ser continuamente reavaliados. A bem dizer, isto não é privilégio dos brasileiros: me parece constituinte da condição humana. Mas nosso desapego à ordem, que se não é verdadeiro ao menos é a falsidade mais consistente desta comunidade imaginária Brasil, nos treinou especialmente para saber que o mundo não é pra quem tá começando. E, aliás, também não é para os profissionais demais…

Quando não se lê o mundo para ler a palavra, com frequência se impõem as palavras ao mundo. Isso pode se dar por meio da exclusão: por exemplo, o ex-ministro da educação Abraham Weintraub disse: “Odeio o termo ‘povos indígenas‘ – a existência concreta desses povos no mundo o incomodava, que ainda por cima se chamasse de algo o incomodava ainda mais; então não falemos mais nisso, quem sabe somem, se diluem na civilização? O mesmo procedimento pode ocorrer pela distribuição das “palavras certas” e dos “sentimentos certos”. A ditadura tinha o seu “Brasil: ame-o ou deixe-o”, que exercia, no discurso, exatamente isso. Bolsonaro tem seu “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Não é por acaso que o termo “acima” ocorre duas vezes: é de onde o poder que Bolsonaro representa nos olha. É para onde quer que olhemos. O exemplo mais claro, porém, da tentativa de recobrir o mundo com a palavra são as ridículas mudanças nos nomes de programas sociais – feitas apenas para não dar o braço a torcer para o PT. Sem nesse instante elogiar o Partido dos Trabalhadores, ressalto que nesses atos (publicitários?) de batismo das suas políticas havia ali um pé na realidade, que se perde totalmente nos nomes novos. Isso é sintomático de uma forma de ver o poder e o povo.

Bolsonaro pode mudar o nome do Minha Casa, Minha Vida para Casa Verde e Amarela: a casa de alguém ainda será sua vida e as casas ainda terão muitas cores. Pode mudar o Bolsa-Família para Auxílio Brasil, a alegria será não a de dar graças a deus por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir, as migalhas da Pátria mesquinha de Paulo Guedes, mas de alimentar a sua família. De um lado, um mínimo de compreensão do desejo, da esperança; do outro, a imagem da concessão, o reforço de que é um ato nacionalesco, um gesto do Brasil, acima de tudo, ao pobre, abaixo de todos.

Me desculpem o que haja de piegas nisso, mas há querer entender o Brasil e há tentar dizer o Brasil o que ele é. Há os slogans para calar vozes dissonantes e há o longo aprendizado das múltiplas vivências. Há inventar paranoias relativas à “doutrinação” e há saber a irredutibilidade do caráter político em todos nós. Há falar “democracia” da boca para fora e crer de fato que um país não é mais do que a sua gente, toda a sua gente. Há oprimir a si mesmo e há libertar-se a si.

Haters de Paulo Freire, vocês acham que não podem ser surpreendidos por nada? Talvez seja essa a divisão real entre vocês e ele: se ele fala de uma pedagogia da pergunta, vocês têm uma pedagogia da certeza. Vejam como tudo está em movimento: acabei de inventar essa noção. Vamos ver aonde ela leva. Uma pedagogia da certeza: não é ela outra coisa que essa busca pelas notícias que mais nos confirmam, esse esforço por manter as mesmas posições para sempre, a ideia de que em algum momento uma grande verdade será dita e sua convicção será plenamente recompensada. É isso o que Bolsonaro faz por vocês? Assim como crê “eu estou sempre certo”, reconforta: “Vocês estão sempre certos!”.

Mas depois do expurgo das bandeiras do Japão no país (vermelhas, logo comunistas), depois do fim do estado de Sítio do Pica-Pau Amarelo decretado pelo presidente para confrontar o Marquês de Rabicó no STF, depois da caça infrutífera por mamadeiras de piroca voadoras no Planalto Central – será que não seria a hora de um pouquinho de dúvida?

Eu sei: é de dar medo. Vocês têm todas suas regrinhas queridas, aí vem o resto do Brasil e diz que não há regras. Vocês elegeram um presidente que parece tanto com vocês, e é tão humilde – come pão com leite condensado! –, e agora o pessoal vem dizer que ele não passa de um amador, amador-mor, e que o Brasil não é para amadores. E já não bastava o pessoal dizendo que era para ler a palavra (os jornais, os livros) antes do Whatsapp, agora também tem de ler o mundo! A questão é que vocês nunca saíram do mundo. Olhem para os lados, olhem para trás, o que vocês descobrem?

Olhando para os lados (quem compõe este país?), olhando para trás (como foi que chegamos até aqui?), poderemos olhar para frente, e nisso Paulo Freire pode nos ajudar, pela sua capacidade de crítica, pela seu exercício do diálogo, pelos seus ideais – com os quais não precisamos concordar. Podemos só nos aproximar dele para distinguir o que há ali que  conversou e conversa tão bem com um Brasil desde muito mantido, por projeto ou comodidade ou incompetência ou desprezo, em pobreza e ignorância. Aliás, sabe o que ele poderia dizer se vocês lhe criticassem de cima a baixo?

Ele diria: “É verdade, vocês têm razão.”

“Eu não dou conta disso.”

“Não vou resolver a educação brasileira.”

Me destruam.”

“Mas para saltar entre as ruínas e construir algo novo.”

O Brasil é somente para quem sabe começar do zero.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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