Pacto na corda bamba

Entrar no clima da Copa do Qatar está sendo um desafio

É triste que tenha sido mal-apropriado esse uniforme anterior à mamadeira de piroca, defendido por atletas espetaculares… | imagem: Diogo Fernando

Os pactos que fazemos conosco, sem testemunhas ou provas documentais, são os melhores. Se derem certo, viram turning points em nossa biografia. Como naqueles livros em que algum senhor grisalho nos ensina a ter uma mentalidade vencedora:

“Foi então que eu decidi: estava farto de viver miseravelmente. Na manhã seguinte, pedi um empréstimo para papai e abri minha primeira empresa multinacional.”

Por outro lado, se o pacto não for cumprido, tudo bem. A vida segue e ninguém poderá nos apontar o dedo. Não adotou uma dieta saudável, como havia prometido no Réveillon? Não tem problema, no próximo 1º de janeiro você renova a ilusão.

Na contramão da lógica, irei tornar público um pacto que fiz comigo. Foi em 2006. Eu estava no terceiro período do curso de História e percebi que adentrava uma fase na minha vida em que o tempo para o futebol ficaria escasso. A vida adulta chegava e, diferente dos boletos e das obrigações, a disponibilidade para o supérfluo minguava. E futebol, para quem não trabalha com ele, costuma ser supérfluo.

Ainda assim, eu me propus um esforço. Ao menos nas Copas, esse período mágico em que a função tática do volante vira assunto nas filas do banco, eu deixaria um espaço para o esporte. Nem que fossem necessárias algumas artimanhas, como mudar o horário do almoço no trabalho, levar rádio oculto no terno numa cerimônia religiosa ou parar na padaria para acompanhar uma disputa de pênaltis.

Até aqui, tenho respeitado o pacto.

Todavia, entrar no clima da Copa do Qatar está sendo um desafio. A história desse mundial, com compra de votos na escolha do país sede, já começou mal.

E, o Qatar, convenhamos, não é o anfitrião mais carismático das Copas. Particularmente, não me encanta a ostentação daqueles oásis patrocinados por reservas de combustíveis fósseis. Cidades construídas sob medida para o turismo caviar. O preço das peças com acabamento em ouro ou marfim, a gente sabe, costuma ser pago com o sangue de trabalhadores.

Por aqui, também está difícil esquecer da apropriação de nossa seleção pelos apoiadores da extrema-direita. É triste que um dos símbolos mais marcantes da história do futebol, a camisa canarinho, esteja tão associado a manifestações antidemocráticas. Um uniforme anterior à mamadeira de piroca, que foi defendido por atletas espetaculares. Garrincha, Pelé, Didi, Sócrates, Zico, Romário, Ronaldo(s), Rivaldo… A camisa de uma seleção que encantou o mundo até em derrotas. Hoje, infelizmente, sua simbologia foi sequestrada por consumidores de fake news, aloprados que acreditam que uma intervenção militar seria positiva para alguém.

Veja também:
>> “A gente torce para recuperar aquela relação seleção-festa-olodum-étetra“, escreve William Nunes

É assim que inicio minha cobertura da Copa do Qatar na revista Úrsula: sem saber para onde vou. À deriva em um turbilhão de sentimentos. De um lado, a admiração pelo esporte e a curiosidade pelas narrativas que virão à tona. Futebol nunca é só sobre jogadores correndo atrás da bola. Do outro lado, a homofobia, a Fifa, a CBF, o Neymar fazendo dancinha do 22…

Não sei. Talvez eu vá romper com meu pacto e me juntarei àqueles que conclamam a um boicote dessa Copa. Ou, quem sabe, me tornarei torcedor da Argentina.

Conto com a leitura de vocês nessa novela da vida real.

Autor

  • Historiador de formação, escritor por teimosia, mas paga as contas trabalhando no serviço público. É autor de Contos de autoajuda para pessoas excessivamente otimistas (LiteraCidade, 2014), O voo rasante do pombo sem asas (Isadora Books, 2021) e Estilhaços, no prelo. Publica crônicas no site Digestivo Cultural desde 2015.

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