Editorial – Abril-Junho/2024

“Nenhum homem é uma ilha, completo em si próprio; todo homem é uma fração do continente, uma parte do todo”, enunciou o poeta inglês John Donne em uma de suas meditações. A historicização de tal meditação no contexto do século XVII, quando foi escrita, ou mesmo das inclinações éticas de um autor jacobita, não é só uma possibilidade, mas um responsabilidade para aqueles que, como nós, trabalham sob os auspícios de uma ética da renovação, da pluralidade e da reparação histórica.

Um ideal de humanidade, de comunidade e de continente de pertencimento não se sustentam na presunção de um apriorismo, como sustenta a tradição filosófica e científica européia. A humanidade de John Donne tem código postal muito bem delineado, de onde irradia toda a valoração de seu pensamento. Da mesma maneira, outros ideias de humanidade, outras possibilidades éticas irradiam de outros agrupamentos do humano. Mas se não conseguimos ao menos estabelecer um continente comum ao Sapiens, como poderemos não permanecer ilhados nas impossibilidades?

Um dos grandes esforços, através da racionalidade, se constrói no campo das decolonialidades. Ao buscar mudar o eixo pelo qual se desenrola a espiral do mundo, teóricos decoloniais (e os pós-coloniais) terraformam uma nova lógica de irradiação ética e epistemológica. Mas quais seriam estes novos eixos, centros irradiadores e continentes? As novas perspectivas pregam pelo plurativismo? Ou se contentam pela criação de outros continentes que decifram o mundo a partir de novos códigos normativizantes?

Sob o desconforto escaldante do século XXI, é preciso, como fez o IBGE, colocar o Brasil no centro do mapa (mas e Gaza, Sudão, Síria?). Em uma massa geóide – ou elipsóide, se buscarmos o “conforto” das “ciências muito certas e exatas” (alô Descartes) – onde o centro estaria em toda parte (ou pelo menos em uma massa líquida de ferro e níquel onde humanidade alguma é possibilidade), a quem serve a racionalidade cartográfica? Onde está a centralidade ianomami, bósnia, tutsi? – para além de uma neocolonialidade antropológica.

Porquanto, se o ideal pangéico do continente donneano não é uma possibilidade (nem nunca foi), como escapar aos desígnios do Homo Solitarius? Ou do Homo Necropoliticus?

Me parece que um dos caminhos possíveis, em meio ao turbilhão das inimizades contemporâneas, é a crítica. Através de uma utopia da crítica permanente, da autonomia do pensamento e da empatia, talvez seja possível não desejar a conformação do outro – e tampouco sua aniquilação. É preciso buscar duvidar, compreender (mais do que entender) e manter guardada uma outra passagem da mesma meditação de John Donne: “A morte de cada homem me diminui, já que sou parte da humanidade. Portanto, não procures saber por quem os sinos dobram, eles se dobram a ti”.

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A nossa utopia se desenvolve, pouco a pouco, nos caminhos de nosso pensamento. Buscando elucidar alguns desses caminhos, a Úrsula traz, em mais uma edição, uma pluralidade de visões, assuntos e temas possíveis para um caminho de constante renovação de nossos ideais. Por meio de conteúdos de Ciência, Política, Educação, Filosofia e Cultura, permanecemos em nosso compromisso eu contrapor as expectativas com a práxis cotidiana.

Na seção de Ciência, falamos de antropologia, com “O antropólogo decolonial e seu índio de estimação“, de Thiago de Araujo Pinho; tecnologia, com “Uma conversa sobre tecnologias e processos criativos“, de Day Sena; e apresentamos a crônica “A boa idade científica“, de nosso editor de ciências Antônio C. N. Neto.

Em Política, Anna Gicelle nos convida a refletir sobre o marxismo de Louis Althusser, e nosso editor de política; Rafael Bensi nos presenteia com um artigo sobre o jogo de cena atual do presidencialismo brasileiro em “Presidencialismo de coalisão ou presidencialismo do fracasso?“, e uma entrevista com o diplomata Eduardo dos Santos, que acaba de lançar sua autobiografia.

Em Educação, contamos com um texto feito a pedido da revista por Vanessa Ribeiro, autora da dissertação “Dramaleão: afetos de um camaleão perante o drama através da ambientação cênica“, texto esse que continua essa fábula-pesquisa que fala de teatro e ensino: “Primeiro sinal. Segundo sinal. Terceiro sinal…. Dramaleão!“. Além disso, temos uma reflexão sobre o livro O Futuro Dura Muito Tempo, de Louis Althusser, escrita por Letícia Silva.

No mês do tricentenário de Kant, a seção de Filosofia traz uma entrevista do nosso editor-chefe, Duanne Ribeiro, com o vice-presidente da Sociedade Kant Brasileira, Joel Thiago Klein; e o fórum Existe filosofia europeia? traz suas primeiras reflexões com textos de Alberto Kelevra e Rafael Teixeira.

Por fim, na seção de Cultura apresentamos “Não tire a política do meu quadrinho“, de Marcelo Presto, um artigo sobre os Racionais MCs e uma entrevista com o escritor Stênio Gardel.

E então, quais caminhos te chamam?

Autor

  • Poeta, historiador, produtor de conteúdo, produtor cultural, curador e seletor musical conhecido como Ico. Bacharel em História pela Universidade de São Paulo (USP), realiza pesquisas voltadas ao patrimônio e memória, além de se aventurar constantemente na história da literatura de ficção científica. É obcecado em escrever, desenhar e fazer playlists.

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