Clubes de Bairro: uma Microhistória Inscrita na Paisagem das Cidades

Há um futebol que não passa na TV nem reúne milhares, mas é a alma de um território e gera ações para além dos campos


Série de pinturas de Raphael Morone dedicadas aos clubes de bairro. Saiba mais

A vigésima segunda Copa do Mundo começou no Catar, e estamos diante do maior evento esportivo do mundo. O torneio, grande chamariz da modalidade, junta os melhores jogadores com a melhor organização, a melhor tecnologia e a melhor estrutura possível, além de patrocínios milionários que abastecem os caixas da organizadora, a Fifa. Desde sua primeira edição, em 1930, no Uruguai, até 2022, o evento só cresceu, e a expectativa desta edição é uma receita de 6,4 bilhões de dólares entre dinheiro de televisão, direitos de marketing, licenciamento e hospitalidade. A Copa é, ou ao menos busca representar, o ápice do futebol, em suas diversas definições.

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Quem assiste ao futebol apenas por ocasião, talvez nem imagine que, além de um evento desse porte, existam outras nuances. Há um futebol que não passa na televisão nem reúne milhares de torcedores, e que tampouco goza da melhor organização e estrutura. Porém, é o que existe de mais sagrado em determinada coletividade, sendo epicentro de diversas ações que vão além do campo: são os clubes de bairro.

Os clubes de bairro – e peço aqui a licença de focar em dois países onde isso ocorre em maior profundidade, no Uruguai e na Argentina – são instituições que em sua maioria são centenárias. São fruto do esforço de uma parcela da população e ocorrem tanto nas grandes como nas menores cidades. Servem, em seus espaços físicos, como territórios de sociabilização e de organização da sociedade civil, e representam, no aspecto simbólico, a alma daquele lugar.

Essa alma, constituída a partir da identidade e sentimento de pertencimento com o território, serve de combustível aos associados de um clube para impedir que este seja vendido a especuladores imobiliários no filme Luna de Avellaneda (2004). Com o crescimento acelerado das cidades sul-americanas, os clubes representam um marco histórico e patrimonial nos bairros em que estão localizados e sua mera existência se torna oportunidade para quem entende que o progresso vai além de um velho casarão que reúne pessoas para batizados, festas, eventos esportivos ou mesmo um lugar para conversar.

Alguns clubes, na atualidade, cientes das mudanças sociais e culturais, se adaptam, tentam expandir suas ações e se comunicar com a nova realidade das cidades do continente. Inauguram academias, oferecem modalidades esportivas da moda, como o crossfit. Outros já abrem suas portas para receber um público que procura comida caseira, bebidas e um espaço instagramável. O Villa Española, clube uruguaio fundado em 1940 por imigrantes recém-chegados a Montevidéu, se tornou, há algum tempo, um lugar que oferece as novidades culturais da capital uruguaia, promovendo saraus, shows intimistas e lançamentos literários. Paralelo ao campo, criaram uma horta comunitária, ressignificando a relação do clube com o bairro. Em seus primórdios apenas um clube que tinha o futebol e o boxe como emblemas da instituição, hoje é uma espécie de ponto de cultura importante do centro-oeste montevideano.

Mas pensar no futuro para sobreviver não é o único caminho possível. Muitos clubes também olham para o passado e o entendem como ferramenta para entender a si mesmos e a sociedade. O Gimnasia y Esgrima de La Plata, da Argentina, em sua bonita e arbórea sede, conta com um departamento de pesquisa e memória que busca não só conhecer melhor a história da organização e os dados estatísticos referentes às partidas disputadas, mas o contexto do clube no território em que está localizado, realizando, inclusive, eventos artísticos para os sócios apresentarem suas interpretações sobre a agremiação por meio da literatura, da música e das artes plásticas. O lobo, como é conhecido, devido ao pedido de um grupo de sócios, também realizou uma homenagem aos desaparecidos na ditadura militar argentina e abriu sua sede para conversas com os familiares das vítimas em um evento realizado em 2019.

Ser um clube de bairro em nossos tempos, ou mesmo sócio de um, pode não ser uma resistência ao capitalismo de bilhões de uma Copa do Mundo, nem mesmo um movimento de multidões. Contudo, a existência desses espaços nas cidades de hoje, representa o olhar para a história, uma microhistória, essa dos bairros, das cidades e das pessoas comuns, essas que não aparecem nos livros de história mas que ajudam a nos entender enquanto sociedade, pois são diferentes matizes de um todo, que por vezes massifica e exclui. Olhar para esses clubes é, também, olhar para a passagem do tempo e suas inscrições na paisagem e na vida.

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