Você já foi libertado?

“A transformação nos deixa à beira do criar. Já se sentiu assim?” | imagem: Ke Dickinson

Há algo de Nando Reis em Isaiah Berlin. “Quando o segundo Sol chegar, para realinhar a órbita dos planetas…”, canta o músico; em paralelo, no livro Pensadores Russos, o filósofo e historiador define um libertador – isto é, uma pessoa que efetiva uma ruptura na nossa mentalidade e na nossa vivência –, como aquele que é capaz da revolução cósmica que se anuncia naqueles versos: realinhar órbitas.

Veja também:
>> “Ela Pode Falar“, Max Gimenes
>> “Observadores Objetados“, Eduardo Pacheco

Momentosas como parecem, seria de se esperar que essas mudanças fossem raras, mas Berlin nos avisa: “O ato de libertação não é incomum” – como quem comenta que as galáxias soam eternas, mas mudam frequentemente de coreografia. Nos seus termos, eis o que ele escreve:

Um libertador não é tanto aquele que oferece respostas a nossos problemas, sejam eles teóricos ou de conduta, mas que os transforma. Ele põe um ponto final em nossas ansiedades e frustrações, colocando-nos dentro de uma nova estrutura, onde os antigos problemas deixam de ter significado, surgindo outros com suas próprias soluções, por assim dizer, já prefiguradas, até certo ponto, no novo universo em que nos encontramos. Quero dizer com isso que aquelas pessoas libertadas pelos humanistas da Renascença ou os philosophes do século XVIII não só pensavam que suas velhas dúvidas eram respondidas mais corretamente por Platão e Newton do que por Alberto Magno ou os jesuítas, como também percebiam um novo universo. As questões que perturbaram seus predecessores de repente pareciam-lhes desnecessárias e sem sentido.

“Teóricos ou de conduta”, ele anota, estabelecendo que abordamos aqui transformações tanto epistemológicas quanto éticas: nossos modos de conhecer e de viver podem ser abalados profundamente, colocados em outras bases por alguém com jeito de segundo Sol. Nos exemplos de Berlin, são esses libertadores filósofos, cientistas, escritores – além dos citados acima, diz que “[p]rovavelmente Voltaire emancipou um número maior de seres humanos durante sua vida do que qualquer outra pessoa, antes ou depois dele; Schiller, Kant, Mill, Ibsen, Nieztsche, Samuel Butler e Freud libertaram seres humanos. Tanto quanto eu saiba, Anatole France ou mesmo Aldous Huxley podem ter causado esse efeito”. Sua intervenção, o filósofo elabora, fica entre uma opacidade e uma abertura:

No momento em que os antigos grilhões caem por terra, e a pessoa se sente recriada numa nova imagem, ela pode construir uma vida. Nesse sentido, não se pode dizer quem será o libertador de uma pessoa.

Assim, não sabemos quem pode nos transformar, e a transformação só nos deixa à beira de algo a criar. Já se sentiu assim? O que podemos acrescentar a Berlin é talvez variedade: para além de intelectuais, quem nos causa mutações?

Autor

  • Duanne Ribeiro

    Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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