Os ensinamentos de Maquiavel para a política brasileira atual

Com O Princípe, podemos reler nossa história recente e entender o tabuleiro que se coloca diante de Lula

O presidente Lula e o filósofo Nicolau Maquiavel | imagens: Ricardo Stuckert e Jean-Marc

Uma introdução

Passado um semestre do terceiro mandato do governo Lula, o atual mandatário vê um cenário político, econômico e social bem diferente do encontrado em suas duas gestões anteriores (2003-2010). A continuidade do acirramento político em uma polarização sem precedentes, desgastou os quadros políticos, levando-os a uma falta de projetos concretos em seus planos de governo, além de pautar o debate em questões pessoais entre os candidatos. Esta polarização foi objetivada em dois campos específicos: de um lado as forças progressistas, de outro as forças conservadoras reacionárias, constituídas principalmente na formatação do novo congresso nacional eleito em 2022. Novos desafios sociais e econômicos pautam a vida pública com a instabilidade social, volta da inflação e juros altos que impedem a volta do crescimento. Por fim, novos instrumentos de informação das redes sociais ainda pautadas por fake news dificulta o bom andamento de um governo que começa com sérias dificuldades. Mas o que teria a ver Maquiavel com o momento político atual? Suas ideias continuam relevantes? O presidente Lula teria algo importante a aprender com o escritor florentino? Estas e outras indagações este ensaio procurará responder.

Maquiavel e seu tempo

Nicolau Maquiavel nasceu em meio a uma grande crise econômica e política, no dia 3 de maio de 1469, em Florença, na Itália renascentista. Naqueles tempos a Itália sentia a ausência de um Estado central, reinando uma grande confusão e imperando a tirania em diversos e pequenos principados. Estes não tinham dinheiro para financiar exércitos regulares, e acabavam socorrendo-se de tropas mercenárias que, ao bel-prazer e conforme seus próprios interesses, terminavam por conquistar os próprios principados que deveriam defender. A Itália era uma vítima impotente perante diversos impérios, como o franco, o germânico, o hispânico, entre outros. Também na área econômica a decadência é visível. A ordem comercial estava calcada nos feudos, e estes estão em declínio, cada vez com menos poder e em ascensão estava a burguesia.

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Nesse ano, na cidade italiana de San Casciano, este exilado político ocupava-se todas as manhãs em administrar a pequena propriedade a que estava confinado e, à tarde, jogava cartas numa hospedaria com pessoas simples do povoado. À noite, vestia trajes de cerimônia e passava a conviver, por meio da leitura, com homens ilustres do passado. A oportunidade de voltar à política chegou em 1526, quando foi nomeado secretário dos Cinco Provedores das Muralhas, cargo no qual deveria cuidar das fortificações da cidade e tratar da defesa em geral. Deixou, porém, um valioso legado: o conjunto de ideias elaboradas no seu exílio. Talvez nem ele mesmo soubesse a importância desses pensamentos. Apesar disso, revolucionou a história das teorias políticas, dividindo-a em duas fases distintas.

Maquiavel foi um observador, um mestre na tática da guerra. Condenou as tropas mercenárias, acreditava que o príncipe deveria confiar em um exército próprio e nunca ficar nas mãos dos mercenários, pois estes eram muito ambiciosos, bastando alguém pagar mais para que passassem para o lado dos inimigos. Mostra também que, mesmo não estando em guerra, o príncipe deve estar preparado para ela, construindo estratégias, conhecendo a história de outras batalhas, sabendo por que tiveram grandes vitórias ou grandes derrotas, de modo a corrigir os erros nas derrotas e imitar as estratégias vitoriosas. Por essa sabedoria, Maquiavel chegou a organizar e chefiar o exército florentino. O Príncipe (1513) foi publicado somente em 1532, cinco anos após a morte de seu autor. Neste livro, Maquiavel expõe todo o seu conhecimento e sua experiência, buscando ensinar a arte da guerra. Nele o autor explica como conquistar, aumentar e manter o poder, e avisa também dos perigos que existem em se manter no poder.

O Príncipe divide-se em 26 capítulos, subdivididos em cinco temas centrais: apresentação das diversas espécies de principados e do modo pelo qual o poder pode ser adquirido e mantido; discussão sobre a organização militar do Estado; debate sobre a conduta do príncipe; aconselhamento sobre assuntos de especial interesse para o príncipe e, por fim, exame da situação italiana da época. Seguem algumas relações entre as ideias de Maquiavel contidas n’O Príncipe e o momento político atual1.

As ideias de Maquiavel e a política recente

1 – Maquiavel afirmou no capítulo XXII de sua obra: “Não é de pouca importância a escolha dos ministros”, sendo pela escolha que “temos a primeira impressão sobre a inteligência do governante”. Conquistar o poder é certamente importante, mas não quer dizer tudo em um governo. A escolha de seus ministros é central para a boa governança. Mas como atender a gregos e troianos desde a composição ministerial até ter uma base de apoio no Congresso Nacional? Atualmente, a base de apoio a Lula é formada pelos partidos PT, PCdoB, PV, MDB, PSD, PDT, PSB, Psol, Rede, Avante e Solidariedade. Somados, são cerca de 220 deputados, bem abaixo dos votos que o governo precisa para aprovar algum projeto. Perigo à vista: até quando o Arthur Lira, Presidente do Congresso segurará os pedidos de impeachment de Lula?

2 – “Quando se conquista o poder com as armas de outrem”. Esta ideia está no capítulo VII da obra O Príncipe e pode ser citado como exemplo o processo de impeachment de Dilma. No segundo mandato do governo Dilma quando, em termos políticos, o governo Dilma perdeu o apoio da base aliada no Congresso Nacional: Eduardo Cunha, do PMDB, venceu as eleições no Congresso Nacional somando 267 votos e tornando-se presidente daquela casa. A vitória de Eduardo Cunha do PMDB – ala oposicionista ao governo Dilma – fez com que o governo Dilma recuasse e passasse a negociar com o Congresso. Eduardo Cunha, um desafeto político de Dilma, não tardou em aceitar e encaminhar o processo de impeachment proposto pela professora Janaína Paschoal e os juristas Miguel Reale Júnior e Hélio Bicudo2.

Após o aceite do processo pelo presidente do Congresso, Eduardo Cunha (PMDB), um político com credenciais éticas pouco louváveis, o povo brasileiro viu um festival de horrores na votação do processo de impeachment num domingo à noite em rede nacional. Embalados por som de batidas de panelas, finalmente o fim do ciclo petista de governar chegava ao fim. Dilma saiu derrotada da Câmara dos Deputados. Foram 367 votos favoráveis a seu afastamento, 137 contrários, além de sete abstenções e duas ausências. Assumiria o vice de Dilma, Michel Temer, que entrou para a história política do país como um conspirador, um traidor. Afinal, o “golpe parlamentar” fora tramado por ele, Eduardo Cunha, boa parte do PMDB e oposição. Dilma foi deposta pelas supostas “pedaladas fiscais”, prática recorrente em administrações públicas3.

3 – “A virtú e a fortuna”: Maquiavel toma em consideração a hipótese de as coisas do mundo serem governadas pela sorte ou por Deus, que os homens não possam corrigi-las nem as remediar. Sustenta como mais provável, entretanto, que a sorte (fortuna) seja árbitra de metade das ações humanas, deixando aos homens o comando da outra metade (virtú). Da mesma forma o candidato Lula vence as eleições de 2022 por conta, é claro pela sua própria virtú. O sucesso de seus dois mandatos, a continuidade da proposta petista com a eleição de sua sucessora, Dilma Rousseff e a e a vitória de 2022, o credenciam como o político mais popular do país de todos os tempos. Terá ele a fortuna (sorte) de chegar ao final do mandato com o sucesso que almeja?

4 – “Um príncipe sábio deve prever os males antecipadamente”, como está no Capitulo III de O Príncipe. Maquiavel, aliás, recomendaria ao presidente uma postura com base no Capítulo XVIII: “Não se desviar do bem, mas saber usar o mal se necessitar”. A postura de Lula diante o ataque às instituições democráticas do dia 8 de janeiro de 2023 o aproxima das teses de Maquiavel. Lula soube antecipar-se frente à tentativa de golpe dos opositores e ser duro contra os manifestantes: “Isola a praça e prende todo mundo amanhã”, disse Lula ao militar responsável pela segurança no entorno dos três poderes.

O ser humano difere das concepções mais românticas defendidas por Aristóteles e Rousseau. Talvez se aproxime mais do desejo e o ímpeto de conquistar o que é dos outros, tais quais as teses de Maquiavel e de Hobbes. Uma boa recomendação seria apresentar os clássicos da política aos atuais mandatários, no intuito de errar menos e acertar mais em suas ações governamentais.

Fontes pesquisadas

BOBBIO, N. Teoria Geral da Política. Rio de Janeiro, Campus, 2000.

BOBBIO, N.; BOVERO, M. Sociedade e Estado na filosofia política moderna. S. Paulo, Brasiliense, 1986.

CREMONESE. D. Fundamentos da Teoria Política. Curitiba: Appris, 2020.

MAQUIAVEL, N. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

QUIRINO, C.; SADEK, M. T. (Org.); Para o Estudo do Pensamento Político Moderno: o pensamento político clássico. Martins Fontes: SP.

WEFFORT, F. (Org.) Os Clássicos da Política, Vol. I.– Ática Editora. SP.

Autor

  • Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), especialista em Pesquisa Científica pelo Centro Universitário Franciscano (Unifra), licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Imaculada Conceição (Fafimc). Atua como palestrante e professor da UFSM. Autor de Democracia e Crise Política no Brasil (2013-2020) (2021) e Fundamentos da Teoria Política (2019), entre outros.

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