Com O Princípe, podemos reler nossa história recente e entender o tabuleiro que se coloca diante de Lula
Uma introdução
Passado um semestre do terceiro mandato do governo Lula, o atual mandatário vê um cenário político, econômico e social bem diferente do encontrado em suas duas gestões anteriores (2003-2010). A continuidade do acirramento político em uma polarização sem precedentes, desgastou os quadros políticos, levando-os a uma falta de projetos concretos em seus planos de governo, além de pautar o debate em questões pessoais entre os candidatos. Esta polarização foi objetivada em dois campos específicos: de um lado as forças progressistas, de outro as forças conservadoras reacionárias, constituídas principalmente na formatação do novo congresso nacional eleito em 2022. Novos desafios sociais e econômicos pautam a vida pública com a instabilidade social, volta da inflação e juros altos que impedem a volta do crescimento. Por fim, novos instrumentos de informação das redes sociais ainda pautadas por fake news dificulta o bom andamento de um governo que começa com sérias dificuldades. Mas o que teria a ver Maquiavel com o momento político atual? Suas ideias continuam relevantes? O presidente Lula teria algo importante a aprender com o escritor florentino? Estas e outras indagações este ensaio procurará responder.
Maquiavel e seu tempo
Nicolau Maquiavel nasceu em meio a uma grande crise econômica e política, no dia 3 de maio de 1469, em Florença, na Itália renascentista. Naqueles tempos a Itália sentia a ausência de um Estado central, reinando uma grande confusão e imperando a tirania em diversos e pequenos principados. Estes não tinham dinheiro para financiar exércitos regulares, e acabavam socorrendo-se de tropas mercenárias que, ao bel-prazer e conforme seus próprios interesses, terminavam por conquistar os próprios principados que deveriam defender. A Itália era uma vítima impotente perante diversos impérios, como o franco, o germânico, o hispânico, entre outros. Também na área econômica a decadência é visível. A ordem comercial estava calcada nos feudos, e estes estão em declínio, cada vez com menos poder e em ascensão estava a burguesia.
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Nesse ano, na cidade italiana de San Casciano, este exilado político ocupava-se todas as manhãs em administrar a pequena propriedade a que estava confinado e, à tarde, jogava cartas numa hospedaria com pessoas simples do povoado. À noite, vestia trajes de cerimônia e passava a conviver, por meio da leitura, com homens ilustres do passado. A oportunidade de voltar à política chegou em 1526, quando foi nomeado secretário dos Cinco Provedores das Muralhas, cargo no qual deveria cuidar das fortificações da cidade e tratar da defesa em geral. Deixou, porém, um valioso legado: o conjunto de ideias elaboradas no seu exílio. Talvez nem ele mesmo soubesse a importância desses pensamentos. Apesar disso, revolucionou a história das teorias políticas, dividindo-a em duas fases distintas.
Maquiavel foi um observador, um mestre na tática da guerra. Condenou as tropas mercenárias, acreditava que o príncipe deveria confiar em um exército próprio e nunca ficar nas mãos dos mercenários, pois estes eram muito ambiciosos, bastando alguém pagar mais para que passassem para o lado dos inimigos. Mostra também que, mesmo não estando em guerra, o príncipe deve estar preparado para ela, construindo estratégias, conhecendo a história de outras batalhas, sabendo por que tiveram grandes vitórias ou grandes derrotas, de modo a corrigir os erros nas derrotas e imitar as estratégias vitoriosas. Por essa sabedoria, Maquiavel chegou a organizar e chefiar o exército florentino. O Príncipe (1513) foi publicado somente em 1532, cinco anos após a morte de seu autor. Neste livro, Maquiavel expõe todo o seu conhecimento e sua experiência, buscando ensinar a arte da guerra. Nele o autor explica como conquistar, aumentar e manter o poder, e avisa também dos perigos que existem em se manter no poder.
O Príncipe divide-se em 26 capítulos, subdivididos em cinco temas centrais: apresentação das diversas espécies de principados e do modo pelo qual o poder pode ser adquirido e mantido; discussão sobre a organização militar do Estado; debate sobre a conduta do príncipe; aconselhamento sobre assuntos de especial interesse para o príncipe e, por fim, exame da situação italiana da época. Seguem algumas relações entre as ideias de Maquiavel contidas n’O Príncipe e o momento político atual1.
As ideias de Maquiavel e a política recente
1 – Maquiavel afirmou no capítulo XXII de sua obra: “Não é de pouca importância a escolha dos ministros”, sendo pela escolha que “temos a primeira impressão sobre a inteligência do governante”. Conquistar o poder é certamente importante, mas não quer dizer tudo em um governo. A escolha de seus ministros é central para a boa governança. Mas como atender a gregos e troianos desde a composição ministerial até ter uma base de apoio no Congresso Nacional? Atualmente, a base de apoio a Lula é formada pelos partidos PT, PCdoB, PV, MDB, PSD, PDT, PSB, Psol, Rede, Avante e Solidariedade. Somados, são cerca de 220 deputados, bem abaixo dos votos que o governo precisa para aprovar algum projeto. Perigo à vista: até quando o Arthur Lira, Presidente do Congresso segurará os pedidos de impeachment de Lula?
2 – “Quando se conquista o poder com as armas de outrem”. Esta ideia está no capítulo VII da obra O Príncipe e pode ser citado como exemplo o processo de impeachment de Dilma. No segundo mandato do governo Dilma quando, em termos políticos, o governo Dilma perdeu o apoio da base aliada no Congresso Nacional: Eduardo Cunha, do PMDB, venceu as eleições no Congresso Nacional somando 267 votos e tornando-se presidente daquela casa. A vitória de Eduardo Cunha do PMDB – ala oposicionista ao governo Dilma – fez com que o governo Dilma recuasse e passasse a negociar com o Congresso. Eduardo Cunha, um desafeto político de Dilma, não tardou em aceitar e encaminhar o processo de impeachment proposto pela professora Janaína Paschoal e os juristas Miguel Reale Júnior e Hélio Bicudo2.
Após o aceite do processo pelo presidente do Congresso, Eduardo Cunha (PMDB), um político com credenciais éticas pouco louváveis, o povo brasileiro viu um festival de horrores na votação do processo de impeachment num domingo à noite em rede nacional. Embalados por som de batidas de panelas, finalmente o fim do ciclo petista de governar chegava ao fim. Dilma saiu derrotada da Câmara dos Deputados. Foram 367 votos favoráveis a seu afastamento, 137 contrários, além de sete abstenções e duas ausências. Assumiria o vice de Dilma, Michel Temer, que entrou para a história política do país como um conspirador, um traidor. Afinal, o “golpe parlamentar” fora tramado por ele, Eduardo Cunha, boa parte do PMDB e oposição. Dilma foi deposta pelas supostas “pedaladas fiscais”, prática recorrente em administrações públicas3.
3 – “A virtú e a fortuna”: Maquiavel toma em consideração a hipótese de as coisas do mundo serem governadas pela sorte ou por Deus, que os homens não possam corrigi-las nem as remediar. Sustenta como mais provável, entretanto, que a sorte (fortuna) seja árbitra de metade das ações humanas, deixando aos homens o comando da outra metade (virtú). Da mesma forma o candidato Lula vence as eleições de 2022 por conta, é claro pela sua própria virtú. O sucesso de seus dois mandatos, a continuidade da proposta petista com a eleição de sua sucessora, Dilma Rousseff e a e a vitória de 2022, o credenciam como o político mais popular do país de todos os tempos. Terá ele a fortuna (sorte) de chegar ao final do mandato com o sucesso que almeja?
4 – “Um príncipe sábio deve prever os males antecipadamente”, como está no Capitulo III de O Príncipe. Maquiavel, aliás, recomendaria ao presidente uma postura com base no Capítulo XVIII: “Não se desviar do bem, mas saber usar o mal se necessitar”. A postura de Lula diante o ataque às instituições democráticas do dia 8 de janeiro de 2023 o aproxima das teses de Maquiavel. Lula soube antecipar-se frente à tentativa de golpe dos opositores e ser duro contra os manifestantes: “Isola a praça e prende todo mundo amanhã”, disse Lula ao militar responsável pela segurança no entorno dos três poderes.
O ser humano difere das concepções mais românticas defendidas por Aristóteles e Rousseau. Talvez se aproxime mais do desejo e o ímpeto de conquistar o que é dos outros, tais quais as teses de Maquiavel e de Hobbes. Uma boa recomendação seria apresentar os clássicos da política aos atuais mandatários, no intuito de errar menos e acertar mais em suas ações governamentais.
Fontes pesquisadas
BOBBIO, N. Teoria Geral da Política. Rio de Janeiro, Campus, 2000.
BOBBIO, N.; BOVERO, M. Sociedade e Estado na filosofia política moderna. S. Paulo, Brasiliense, 1986.
CREMONESE. D. Fundamentos da Teoria Política. Curitiba: Appris, 2020.
MAQUIAVEL, N. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
QUIRINO, C.; SADEK, M. T. (Org.); Para o Estudo do Pensamento Político Moderno: o pensamento político clássico. Martins Fontes: SP.
WEFFORT, F. (Org.) Os Clássicos da Política, Vol. I.– Ática Editora. SP.
Notas