Vitória de Lula escancara os desafios para o futuro do Brasil

O presidente encara um planeta à beira da exaustão climática e dividido por profundas crises

O presidente Lula, em evento pré-eleitoral

O que é um momento histórico?

A rigor, todo momento é histórico se puder ser inserido em um contexto relevante para entender a trajetória humana. Toda uma geração de historiadores, há poucas décadas, dedicou-se a dar sentido ao cotidiano como fonte para produção de um registro histórico que beira a antropologia. Por isso, a palavra “histórico” revela-se insuficiente para descrever a vitória de Lula.

Luís Inácio da Silva, o Lula, não é um político comum. Sua origem humilde e sua trajetória de vida de operário e sindicalista, assim como a fundação de seu partido e sua entrada na política o colocam bem distante dos políticos que descendem de famílias tradicionais ou que compõem as profissões liberais de uma classe média solidamente ancorada no setor público. Da mesma forma que seu partido, o Partido dos Trabalhadores, talvez seja o único (entre os grandes) neste momento no Brasil, que genuinamente tem uma identidade política ideologicamente definida.

Lula cresceu e amadureceu com seu partido e quando, depois de várias tentativas frustradas, finalmente chegou à presidência do país em 2002, revelou-se um hábil negociador, um diplomata nato e um governante eficiente e com visão geopolítica incomum. Conseguiu se reeleger, levando o Brasil a patamares de respeito e importância internacional até então inéditos: chegamos a ser a sexta economia do mundo, saímos do mapa da fome, houve uma inclusão social massiva no ensino superior, no acesso à saúde pública e no consumo de bens duráveis e moradias. À época, pesquisas promovidas por setores de marketing indicavam que os brasileiros nunca havíamos sido tão felizes, o que levou a uma aprovação popular de Lula acima dos 70% quando deixou o governo, fazendo sua sucessora.

Entretanto, desde sempre Lula sofreu a hostilidade e campanhas de difamação constantes dos setores mais conservadores da sociedade e da mídia. Foi implacavelmente perseguido e sofreu um processo de lawfare promovido pelos interesses mais escusos, os mesmos que levaram ao golpe político que derrubou a gestão de Dilma Rousseff e tentou destruir o Partido dos Trabalhadores. Tendo sido preso e condenado em um processo viciado e eivado de irregularidades (para não dizer coisa pior), passou quinhentos e oitenta dias preso, até ser inocentado e ter os mais de vinte processos irregulares anulados.

Novamente candidato, Lula lutou contra a máquina, que o atual ocupante da presidência usou da maneira mais abusiva e desmedida. Lutou contra mais de uma década de difamações, calúnias e mentiras, que ainda circulam da maneira mais ordinária entre o público, insufladas por interesses que vão muito além da mera política. Lutou contra um adversário que o elegeu como inimigo e assim o tratou.

E venceu.

Venceu voto a voto. Venceu sofrido, como seu querido Corinthians. Venceu.

Então, não é uma vitória apenas histórica.

A vitória de Lula é uma vitória épica.

E o é para nós também, que sofremos a destruição do país após o golpe de 2016. O desmonte das políticas sociais, o desmonte da administração pública, dos serviços de saúde, do ensino público e da respeitabilidade e credibilidade internacional do Brasil. Além de termos amargado as monstruosidades promovidas pelo atual presidente, ainda estamos lutando para sobreviver a uma pandemia que ceifou a vida de mais de seiscentos e oitenta e oito mil brasileiros.

Nesse sentido, os desafios que se apresentam para Lula não são poucos:

  1. Reestabelecer o poder de compra do salário mínimo;
  2. Reconstituir as políticas de bem-estar social;
  3. Criar um combate emergencial à fome e à miséria;
  4. Neutralizar as políticas de austeridade, que promovem o desmonte do Estado;
  5. Levar o Brasil novamente à relevância internacional;
  6. Desmontar as bombas-relógio econômicas e sociais deixadas por seu antecessor;
  7. Combater a crescente fascistização da sociedade brasileira, promovida por seu antecessor, que nos deixa uma multidão armada, enraivecida, radicalizada à extrema-direita e que ora promove motins e episódios de violência, com pouco ou nenhum controle ou repressão das autoridades;
  8. Desmobilizar a violência das forças públicas de segurança, radicalizadas por seu antecessor.

E isso são apenas as pautas mais urgentes.

Lula enfrenta os desafios de um planeta desgastado, à beira da exaustão climática e dividido por profundas crises humanitárias e políticas. O lugar do Brasil nessa nova configuração geopolítica, que flerta com conflitos e opõe o imperialismo ocidental a nações degradadas, devastadas e sujeitas ao crescimento venenoso de ideologias extremistas, está em aberto. Mas só podemos pensar como sinais positivos, os efusivos cumprimentos que dezenas de chefes de Estado lhe destinaram nas primeiras horas após a eleição.

Em 2002, Lula encontrou um país exaurido por gestões temerárias e displicentes, que colocavam os números da economia acima do bem-estar da população. A estabilização da moeda havia sido feita às custas de recessão, miséria e fome, e as desigualdades históricas pareciam normalizadas pelos setores classistas mais encarniçados em auferir as benesses do setor público. Lula mostrou que não precisava ser assim e, ao incluir todo o resto de nós no orçamento, conquistou o ódio eterno desses grupos sociais, e eles continuam aí.

Os desafios são gigantescos. Mas Lula também é mais experiente e sabe que não tem tempo para erros ou hesitações. Ele tem consciência plena de seu papel político e de suas responsabilidades históricas.

Após este período monstruoso e sombrio, penso que será o começo de uma dura luta para evitar o avanço da extrema-direita no país e no planeta. E é importante ter consciência que essa não é a luta de um único homem. Ele precisa de todos nós.

Autor

  • Mestre e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, na área de concentração de História do Brasil. Pós-doutora em Filosofia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas.

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