Que Esquerda Terá Vencido? Uma Conversa com Bruno Cava

As disputas que podem definir Lula 3 e a necessidade de criar alternativas em um mundo, que, à sombra da direita, as esmigalha

“É provável que os acirramentos e exasperações que vivenciamos na campanha eleitoral retornem a pleno. Entre aquele momento e este, nada nos impede de ocupar esse intervalo com reflexões, de modo franco, com vistas a uma reorientação” | imagem: Aart Van Bezooijen

Em um Brasil já longínquo, o de 2015 – aquele que não assistiu ao impeachment de Dilma Roussef e que nunca foi submetido a um governo de Jair Bolsonaro –, os pesquisadores Bruno Cava e Alexandre Mendes publicaram um artigo chamado “A Esquerda que Venceu“, analisando o caminho político do Partido dos Trabalhadores à frente do país desde 2003 até então. No texto, os autores diziam: “O projeto majoritário dos governos Lula/Dilma e do PT venceu e é lamentável que tenha sido assim”. Essa afirmação se sustentava sobre um amplo diagnóstico, que abrangia as transformações sofridas pelo partido no período (deixando para trás a força criativa de um lulismo selvagem, que o abria a proposições inovadores advindas do campo social, ele teria se prendido a perspectivas de mundo enrijecidas, dobrando a aposta do estatismo e se burocratizando), assim como a dinâmica dos movimentos sociais que estavam na sua órbita (a influência petista os teria enfraquecido ao ponto do imobilismo). Tendo em vista que, com as eleições e apesar do esperneio (e terrorismo) bolsonaristas, essa mesma esquerda que vencera venceu novamente, encontramos a ocasião de revisitar, em conversa com Bruno, os pontos de vista trazidos pelo escrito de sete anos atrás. Nesta entrevista, ele discute possibilidades do terceiro governo Lula e analisa o cenário político nacional e internacional, marcado “por uma espécie de Internacional Reacionária”. Além disso, diante desse cenário, ele indica a importância de “um ‘delay’, um engasgo, uma paradinha” que nos permita refletir e cultivar nossa imaginação política – que não é sonho a realizar, mas “imaginação em movimento”.

No artigo “A Esquerda que Venceu”, vocês descrevem a trajetória de Lula e Dilma no governo dessa forma:

Queremos reconhecer de uma vez por todas que o projeto majoritário dos governos Lula/Dilma e do PT venceu e é lamentável que tenha sido assim. E que para vencer teve de colmatar as brechas constituintes, reprimir junho de 2013, intensificar o poder punitivo nas cidades, não enfrentar à altura o racismo institucional (os autos de resistência…), desqualificar a indignação, — qualquer uma que não no tom e pelos meios “autorizados”, — desconstruir virulentamente as alternativas, chantagear os movimentos sociais e colocar para funcionar a seu serviço a esquerda, que prestou o seu papel e sua consultoria.

Como você avalia hoje esse diagnóstico? Hoje, sete anos mais tarde, essa esquerda vence outra vez. Por outro lado, qual o seu prognóstico no presente? Acredita que o mesmo projeto procura se estabelecer novamente ou o PT aprendeu algo?

Quando se cobra autocrítica do PT, especialmente de suas alas mais à esquerda, isto não deve ser feito em nome de uma autoflagelação, como se os intelectuais e militantes do partido devessem expiar a culpa pelo complexo de crises que os governos Lula/Dilma precipitaram e agravaram. O que se cobra é a capacidade de aprender com os erros, incorporar a densidade dos problemas que se apresentaram, reapresentar um projeto de Brasil diante dos desafios das conjunturas internas e da mundialização na década de 2020. Nesse sentido que mencionei, a “autocrítica” não aconteceu. Os intelectuais à esquerda do campo petista não atribuem as crises às decisões e estratégias conscientes dos governos Lula/Dilma, mas a fatores externos. Teriam sido vítimas das circunstâncias: uma reação conservadora, um contra-ataque dos rentistas, uma vitória estratégica do neoliberalismo. Em suma, Dilma teria sido desastrada e não desastrosa na gestão do governo federal. Sobretudo à esquerda do partido, a leitura prevalente no petismo é que, de fato, ela tenha cometido erros na percepção da correlação de forças e alguns excessos autoritários, mas que, ao fim e ao cabo, ela teria caído por suas virtudes e méritos, isto é, pela orientação mais intervencionista e dirigista nos assuntos econômicos e na condução das alianças dentro do sistema político. Resta a expectativa que, tendo vencido com uma frente ampla que reúne forças democráticas para além do campo do petismo, Lula não governe para essa esquerda do partido que, nas disputas internas durante o período dilmista, estava em franca ascensão dentro dos gabinetes de formulação e condução das políticas. Nesse sentido, se Lula souber compor um governo de coalizão nacional, centrado na conciliação e apaziguamento, tem chances de atravessar o período mais turbulento legado pela forte mobilização bolsonarista nas ruas e redes alternativas. Por outro lado, se se curvar para atender às demandas por venezuelização e mais dirigismo, inclusive em termos estatólatras, como no caso dos adeptos da Teoria Monetária Moderna, corre o risco de agravar as fragilidades que não são só do governo, como da ordem constitucional e das instituições republicanas.

Em “A Esquerda que Venceu”, vemos dois temas ao redor dos quais a esquerda tem sido fixada: o “voto útil” em 2014, para barrar o avanço da direita, tem pelo menos a mesma estrutura que o voto contra Bolsonaro em 2022; e se retomou, tanto antes quanto agora, a ideia da “frente de esquerda”. Esses tropos agora me parecem constitutivos da condição em que a esquerda participa de qualquer disputa eleitoral no Brasil: em 2026, será preciso barrar o bolsonarismo, será preciso uma frente de esquerda… De fato isso dá o teor da esquerda brasileira? É possível sair disso?

As novas direitas são um fenômeno novo, ainda que seus fundamentos e antecedentes venham de antes. Exprimem-se globalmente numa espécie de Internacional Reacionária, como localmente revigorando o pior tipo de político, aquele que se vê restaurador de uma passado perdido, de uma idade dourada corrompida e desacreditada. É assim que o trumpismo consegue aliar-se com os piores neoconservadores americanos, Putin com os nostálgicos da glória imperial da União Soviética e Bolsonaro com os saudosistas da ditadura militar e do golpe de 1964. Mas o fenômeno é novo quanto aos meios e às finalidades, as formas organizativas, a composição social em que se apoia, bem como a relação com o quadro mais geral da crise da globalização neoliberal, desde 2007-08, e os ciclos de levantes e primaveras que lhe seguiram na década passada. Ao contrário do que é sustentado pela esquerda petista, e aqui me refiro a um amplo campo de intelectuais e pensadores que orbitam de uma forma ou de outra o eixo do petismo, a ascensão de Bolsonaro não é a resultante de um despertar do Brasil profundo, do “pobre de direita”, de um conservadorismo de fundo que teria vindo à tona como reação aos avanços progressistas dos últimos trinta anos, para se opor ao Bolsa-Família, às cotas raciais, ao reconhecimento das minorias LGBT e à pauta ambiental. Não. Na realidade, as novas direitas foram produzidas, se constituíram, recuperando e reformulando as forças regressivas mais antigas, ao mesmo tempo em que as renovam, as repõem dentro de outras realidades socioeconômicas e internacionais. O PT ajudou a produzir o bolsonarismo que, em boa medida, reaproveita métodos populistas e discursos marqueteiros de polarização das campanhas petistas contra seus adversários históricos na redemocratização, os tucanos. Ajudou a produzi-lo, sobretudo, ao empurrar para a direita a massa de indignados com a representação política, que é expressão da miséria de lideranças e propostas no país, como também protesto contra ela. Ao rechaçar o levante de 2013, epônimo de uma nova subjetividade antagonista do Brasil, ao recusar atender suas demandas mais sistêmicas, o campo petista arrastou uma parte significativa das esquerdas do país para a renhida defesa da reeleição de Dilma. A seguir, empurrou os indignados com a corrupção, em meio às espantosas revelações das fases da operação Lava-Jato, para o rótulo pejorativo dos coxinhas, reaças ou manipulados, deixando livre o espaço de florescimento de movimentos como o MBL, o Vem Pra Rua, o Revoltados Online. A parte que restava da esquerda crítica terminou magnetizada pela defesa de Dilma do impeachment e, depois, de Lula contra a prisão, enquanto grandes contingentes populacionais ficavam órfãos de referências. Nesse grande vazio, se deu a greve dos caminhoneiros de 2018, um movimento capilar por toda a sociedade e desde baixo, ante o que a esquerda passou em branco, depois o protagonismo midiático de redes e plataformas à margem da mídia corporativa, que a esquerda desprezou como oceano de trolls e ignorantes; e, finalmente, o lamentável atentado contra Bolsonaro, que galvanizou nessa figura até então caricata uma esperança messiânica de salvação, diante de um cenário de aceleração de crises entrecruzadas. Foi quase um xeque-mate nas chances do PT, revertido apenas pela resiliência dos mandatos regionais do partido, o fiasco do governo Bolsonaro na economia e a pandemia de covid-19, que embaralhou as cartas. É possível sair disso? Sim, mas é uma construção que cabe a nós. Assim como as novas direitas foram produzidas em relativamente pouco tempo, também se pode e se deve produzir uma alternativa. É uma construção montanha acima, pois todas as forças do velho sistema político, que hoje se agarram a Lula, não vão livrar espaço sem antes resistir à mudança, ao mesmo tempo que o bolsonarismo se posiciona no marco da revolta antissistêmica e da esperança escatológica. O desafio para a próxima eleição presidencial é esse mesmo: barrar a volta do bolsonarismo sem com isso cair, por inércia, na reeleição de Lula como única opção viável.

No mesmo sentido desse debate sobre o menos pior, vocês escrevem que o “voto útil” serviu para “resistir à onda de reacionários, coxinhas e golpistas que estariam ‘hegemonizando’ — pobre Gramsci — as ruas e redes contra a esquerda, as conquistas dos últimos governos e o estado democrático de direito”. À época, vocês utilizaram o futuro do pretérito: estariam. Hoje, há de fato uma onda desse tipo, forte, disciplinada, rapidamente mobilizável e crescentemente agressiva. Nesse novo cenário, faz sentido a posição de recuo, de uma “autopreservação” da esquerda?

No caso brasileiro, não erramos quando, por sinédoque, falamos em esquerda nos referindo à esquerda petista. Existem outras esquerdas fora do partido, claro, forças minoritárias, porém ou orbitam ao redor do PT (ou PSOL, que virou linha auxiliar assumida) quando o assunto é eleição, ou se abstém do voto denunciando o processo como farsa burguesa. Mesmo estes, com o impeachment, a prisão de Lula e a emergência bolsonarista, se veem constrangidos pelas circunstâncias a partilhar trincheiras com os petistas. Nesse sentido, o “voto útil” e o “apoio crítico”, tópicos do debate sobre polarização em 2014 ou 2016, se tornaram um voto convicto, ainda que desencantado, para Lula e o PT, como escudos diante do projeto de revolução conservadora em curso, no Brasil e no mundo. Há um acirramento da polarização levando a níveis críticos de violência com fundo político, o que se desdobra de diferentes modos: no trumpismo, a invasão do Capitólio e as ameaças de guerra civil; na Europa Ocidental, o aumento da perseguição do imigrante; na Rússia, a invasão putinista na Ucrânia e a brutalização de grupos LGBT. Então, o que antes era uma tendência que entendíamos ser possível de reverter ao longo de sua trajetória, terminou chegando em um ponto de não-retorno, quando não há mais espaços para serem ocupados que já não tenham sido engolidos, seja pela recomposição do sistema político erodido (a volta ao normal), seja pela revolução conservadora capitaneada pelas novas direitas (o rasgo messiânico). Esse também é um trabalho a fazer, desde a remobilização de movimentos no interior da gama de crises para além da centrifugação entre petismo e bolsonarismo. Não é algo que acontece apenas no Brasil: o esmigalhamento sistemático de alternativas construtivistas entre o apego à normalidade e seu rechaço antissistêmico à direita (conservador). São tempos difíceis, mas muito interessantes para quem se aventurar no terreno arrasado a construir o novo. Quanto à esquerda, isto é, a esquerda petista, tende a permanecer, no principal, instrumentalizada pela defesa e realização do terceiro governo Lula, ainda que deva dar… ou melhor, tem a responsabilidade de dar contribuições setoriais relevantes para os menos remediados e as minorias.

Igualmente, vocês aludiram criticamente à premissa de que “PT e PSDB são as duas forças ideologicamente consistentes e que, portanto, as duas que disputam projetos distintos de país, em busca da hegemonia social”. Essa rigidez, se pareceria então forjada pelo viés governista, agora soa como uma constatação simples, pois sem PT (ou sem Lula) Bolsonaro teria ganho a eleição. São, de fato, os dois lados que regem a política nacional? E será assim em 2026 (quando haverá um PT sem Lula)?

Essa polarização típica da redemocratização ficou para trás, pois suas premissas e fundamentos colapsaram num projeto único, que poderíamos chamar de social-democrático, ainda que o PT tenha sido a força estruturada sobrevivente da história. De todo modo, em boa medida, Lula e o PT agora são os fiadores do sistema político herdado da redemocratização que os tucanos também integram. A polarização não se dá mais entre PT e PSDB, mas entre o velho sistema político e os jacobinos de direita, que exercem a pressão antissistêmica, com um desejo da Grande Batalha, de golpe, de intervenção armada, enfim, figuras de descontinuidade em relação ao que está aí, à representação existente. É preciso esperar para se analisar como o campo do bolsonarista vai se reorganizar depois da derrota eleitoral. O mais provável é que convivam duas tendências em estado de tensão: a tendência de incorporação aos rituais e jogos do funcionamento institucional, na medida em que os candidatos bolsonaristas conquistaram pelo voto posições importantes no no Legislativo e na esfera estadual; e a contratendência de continuar a batalha por outros meios, por meio da ação direta, da ocupação de espaços e do protesto desmedido. Esses acampamentos de bolsonaristas que ficaram órfãos do presidente são apenas um prenúncio de uma indignação social massiva girando à solta, que não se sente representada e que na primeira crise do governo Lula pode ressurgir de maneira violenta e radical. Essa é a polarização que me parece vá atravessar os próximos anos: o bolsonarismo selvagem contra a frente ampla instalada nas instituições da Constituição de 1988. As duas variáveis que devem ser observadas são: 1) o potencial de massificação dos focos de antagonismo antissistêmico, devido a crises e ao ímpeto conservador; e 2) a articulação política ou institucional, com as forças de segurança e os mandatos da direita e extrema-direita, desses focos. É preciso tanto seguir examinando a capilarização dos protestos, como eles ressoam pelo tecido social fragmentado e em crise no Brasil (como ocorreu, por exemplo, na greve dos caminhoneiros de 2018), quanto o comportamento de sub-lideranças espalhadas pelas casas legislativas e governos estaduais, se estão ou não articulando forças de governo/estado com os protestos.

Ao lado das críticas ao PT, vocês ressaltam, notadamente nos governos Lula, a instauração de políticas que remodelaram o campo social brasileiro, como o bolsa-família e os pontos de cultura: eram políticas do comum, que caracterizavam um lulismo selvagem. Gostaria que você comentasse um pouco sobre o que define esse lulismo e respondesse: pelo esforço do governo de transição pelo bolsa-família, pelo arranjo ministerial, quais as possibilidades desse tipo de ação no novo mandato?

O PT surgiu de uma nova subjetividade antagonista e emergente durante o período do fim da ditadura. Aquele foi o momento das migrações em massa do Norte-Nordeste para o Sul-Sudeste, a fase final do deslocamento da população do campo para a cidade, a aceleração da autoconstrução de moradia popular pelas metrópoles e a formação de alguns bolsões de industrialização intensiva depois do Milagre. Tal mobilidade social de várias ordens se tornou mobilização no final da década de 1970, com greves operárias de novo tipo, protestos estudantis e a entrada de novos personagens em cena (os novos movimentos sociais, como também diferentes grupos autônomos e uma cauda longa de coletivos, como descrito à época por Éder Sader). Essa renovação da composição social foi o lado de dentro das crises que se sucediam: crise do petróleo, da dívida latino-americana, da inflação, ou seja, foi a positividade criativa. O PT original surge daí, cavalgando essas forças que ganharam consistência entre o final dos anos 1970 e a década de 1980, até obter alguns governos de relevo, como as prefeituras de São Paulo e Porto Alegre, e chegar a executar algumas políticas participativas e espaços de revezamento entre movimentos e governo. Quando falávamos em lulismo selvagem, falávamos também de uma nova subjetividade antagonista e emergente, mas que surgia no período da crise da globalização neoliberal ou fase de financeirização da vida. No meio da precarização generalizada, das estratificações do trabalho no subemprego e trabalho autônomo e nas franjas da informalidade, víamos a aparição de uma nova classe, ainda sem nome, que apontava para outras formas de viver a política e organizá-la institucionalmente. Assim como, no quadro das transformações da sociedade brasileira dos anos 1980, surgia o paradigma do participacionismo, uma atualização dos projetos mais antigos das reformas de base e do welfare, entendíamos que o novo programa deveria ser coerente com as mudanças do mundo do trabalho e das formas de vida no começo do século XXI: políticas do Comum ou Commonfare. Algumas políticas do primeiro governo Lula, como cotas raciais federais, Pontos de Cultura, Prouni e Bolsa-Família (enquanto embrião da Renda Universal) nos pareciam ser ganchos ou primeiras tentativas da montagem desse quebra-cabeça, o que nos colocava no rumo das transformações por que passava a composição social em tempos de precarização, financeirização e inclusão digital. O problema é que a esquerda que venceu dentro do governo foi exatamente a que se opôs a esses direcionamentos, que eles compreendem ser capitulação ao neoliberalismo. Para eles, o marco de reorganização das políticas públicas e da economia política continua sendo estatal, keynesiano, dirigista de cima, como de fato foi implementado em algumas áreas no limiar da década de 2010: Gilberto Gil e a Cultura Viva foram substituídos por Ana de Hollanda sob o signo das Praças de Cultura; o Bolsa-Família e Marina Silva foram tratados como “porta de saída”, quase como políticas indesejadas e dissonantes, a ser superadas, em nome da verdadeira mudança estrutural que viria pelo PAC, o BNDES, Belo Monte e o Brasil Maior; em síntese, os espaços de caldeamento com os novíssimos movimentos e coletivos, o que conectava o governo ao lulismo selvagem que ocorria nas bordas incandescentes da dita “inclusão social”, tudo isso foi substituído pelos aparelhos, os burocratas de partido ou, pior, por dublês de empresário que se apropriaram dos órgãos, verbas e políticas públicas. Até agora, de positivo, se pode mencionar a volta de Marina Silva à pasta do meio ambiente, que no mundo de hoje deveria ser medular na orientação estratégica de todos os ministérios, em vez de mero regulador ou compensador dos impactos e desdobramentos da política de desenvolvimento. Foi uma alocação recuada para uma figura como Marina Silva. Se o novo governo fosse ousado, teria nomeado Marina para o cargo de chanceler, uma vez que a mudança climática, a transição energética e a biodiversidade da Amazônia são problemas a serem abordados no âmbito da mundialização e não apenas do Brasil.

Há uma frase, dita quase de passagem em “A Esquerda que Venceu”, com fortes ressonâncias: “A falta de imaginação é um problema democrático”. Até onde afeta a esquerda uma falta de imaginação – seríamos nós como todos e não conseguimos “imaginar o fim do capitalismo”? Como nos educar à imaginação?

A imaginação não é algo dentro das cabeças, como um sonho que brota na mente e depois podemos realizá-lo na prática. Na verdade, nossos sonhos e imaginários mentais estão presos ao possível, em certo sentido, são uma recombinação e recorte daquilo que vemos, sentimos e pensamos. Quando falamos em “falta de imaginação”, pensamos na imaginação como uma dinâmica material, uma imaginação em movimento, que abre o campo dos possíveis a coisas até então impensáveis. Um exemplo desse processo é o acontecimento de 2013, que tornou óbvio o que antes era inimaginável: tínhamos o direito à produção da cidade, a metrópole era uma composição de afetos, velocidades e lentidões produzido por nossos corpos, que já vinha se insinuando com as ocupas no biênio anterior e que em junho se generalizou desde o centro da cidade, como na chegada irresistível de uma estação do ano (não se pode resistir à chegada do inverno, da primavera…). Ali se iniciou uma imaginação concreta, em rede, uma estrutura do sentimento, que depois foi muitas vezes atacada, desprezada e, finalmente, capturada, colocada em latinhas. Em boa medida, a ascensão das novas direitas no Brasil está ligada a essa capacidade de se abrir aos protestos e ao mesmo tempo enlatá-los, torná-los produtos vendáveis e controláveis, o que se deu durante a fase do movimento anticorrupção ao redor das revelações da Lava-Jato, do impeachment de Dilma e da campanha eleitoral nas redes alternativas de Bolsonaro em 2018. A esta altura dos acontecimentos, admito que seja difícil não só apontar onde estão os movimentos, os embriões das alternativas, os programas virtuais da multidão (como pensávamos ser, o Commonfare, na década passada). Hoje é difícil dizer até mesmo o que são os movimentos, o que podemos chamar assim, e o que significa isto diante de tamanho deslocamento dos sentidos da revolta, do protesto e mesmo da revolução. É por isso que, no texto em que manifestei o apoio, já em primeiro turno, à campanha de Lula (“A desmobilização oportuna“), usei o conceito deleuziano de ‘vacúolos de silêncio’, que o filósofo criou a partir de músicos experimentais como John Cage e Pierre Boulez: a necessidade de introduzir um intervalo, um “delay”, um engasgo, uma paradinha. A eleição de Lula, improvável até pouco tempo atrás, pode provocar esse emperramento momentâneo do circuito de polarizações e verborragia nas redes. A qualquer momento, na primeira crise do governo, é provável que os acirramentos e exasperações que vivenciamos na campanha eleitoral retornem a pleno. Entre aquele momento, que, não nos enganemos, vai chegar cedo ou tarde, e este em que estamos aqui conversando sobre o futuro, nada nos impede de ocupar esse intervalo com reflexões, pensamentos, autocríticas, de modo franco, com vistas a uma reorientação. Em certo sentido, Junho de 2013, assim como o ciclo antecedente de ocupas, também foi isso: uma parada na vida agitada da metrópole, de seus fluxos alucinantes e violentos, para imaginarmos juntos, para ao menos acreditar que ainda há possíveis.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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