Em entrevista a Lucas Grosso, a escritora fala sobre ficção – da elaboração de personagens ao romance de viagem
Os meus leitores sabem: não sei como chego até as pessoas, mas, de algum modo, elas aparecem nas redes sociais e algo nelas me encanta. Foi assim com Bruna Maia: a autora gaúcha, debochada e crítica, me maravilhou ao abordar temas como cultura pop e feminismo. Quando ela lançou Com Todo o meu Rancor, logo o li e foi uma das melhores leituras de 2022.
O enredo, em resumo, traz Ana, mulher que resolve se vingar de Matheus, depois que ele termina com ela (não sem antes elencar uma série de ataques à moça). A protagonista foge do lugar-comum do abandono: Ana é a revolta contra um estilo, uma maneira de interação social e um padrão de comportamento simbolizado em Matheus. Uma figura única, sedutora, cativante e melancólica que carrega as tristezas de jovens cuja vida adulta começou no século XXI. Com essa trama, Bruna mostra contradições da esquerda branca rio-paulistana de hoje, sem deixar de ser ela mesma de esquerda.
Matheus é um “esquerdomacho”: um homem branco, de São Paulo, cheio de discursos progressistas e, no entanto, violento com Ana. A escritora entende como a misoginia passa por cima de demais pautas em nome da manutenção de um privilégio destrutivo. A obra ataca o formato “Matheus” de pessoa, mas não só ele: o mais importante é que a produção escancara o que dele há em nós. Com sensibilidade, você, leitor, consegue olhar para si mesmo.
Com Todo o meu Rancor não parece um romance de estreia. Bruna Maia sabe conduzir as personagens e as emoções e revelar as várias agressões sofridas por Ana (bem antes de Matheus – o pai, o trabalho em uma agência medíocre, os namoradores anteriores). Além disso, a artista articula, com maestria, linguagens distintas – das artes visuais a indicações de músicas (ouça aqui). E são sobre essas questões, do fazer literário ao entrelaçamento de linguagens, que conservei com Bruna na entrevista a seguir.
Bruna, como você começou sua produção visual e literária?
Comecei a publicar os quadrinhos em 2017 (antes, eu não desenhava). O pessoal foi curtindo, tudo foi crescendo e, então, publiquei Parece que Piorou: Crônicas do Cansaço Existencial (2020) pela Companhia das Letras. Sempre escrevi, sou jornalista. Para mim, aliás, escrever é mais natural do que desenhar.
Em Com Todo o meu Rancor (2022), assim como em seus cartuns, as personagens principais carregam bastante da sua forma de se expressar (ou, pelo menos, do seu modo de se expressar nas redes sociais). Quais são os limites entre personagem e autora?
Os limites entre personagem e autora são bem delimitados na medida em que uma personagem tem toda a liberdade que a ficção traz e, a autora, não. Nesse sentido, deixo as minhas personagens livres para se divorciarem de mim, do que penso, do que faria e do que acho que é bom senso. Elas seguem as próprias trajetórias sem censura.
Como você desenvolveu a voz da narradora?
A voz da narradora tem a ver, digamos, com as protagonistas do Parece que piorou: uma certa ira, um certo cinismo, uma voz bem carregada de raiva que, acho, é uma tendência das mulheres que escrevem a partir desse sentimento.
Nesse romance ainda, você cria paratextos com suas telas. Como foi a criação desse elo entre palavras e imagens?
Já tinha o plano de que o livro tivesse imagens. Acabei colocando algumas delas no meio do texto, uma questão de estar muito íntima com a narrativa e pensar como a personagem poderia se expressar por diferentes tipos de linguagens – acrílica, colagem, guache, aquarela, caneta etc. Criei símbolos para representar o que acontece no enredo.
As criaturas do seu romance são profundos e fogem da tipificação. Como você pensa as personagens, tanto femininas quanto masculinas, para que não fiquem estereotipadas?
Pensar menos na descrição da personagem (como você a julga) e mais nas coisas que ela faz. Você pode partir de estereótipos ou de pessoas que existem, mas, na hora em que você está criando a personagem, você está criando ações. Em uma boa história, as personagens agem e, assim, ganham identidade.
Ana é uma personagem fascinante, crítica e mordaz, com toda a inteligência e a iconoclastia dos millennials. Estamos vivendo uma época de individualismo hedonista, sem valores consistentes, ou se trata de um momento de reinvenção dos nossos ícones e das formas de viver?
Não acho que estamos em uma época de hedonismo. Acho que as pessoas não têm muito prazer no que fazem. Estamos em um período de individualismo, focado em desempenhos e metas, não no prazer. A relação com tudo – o trabalho, os relacionamentos, o sexo, as experiências pessoais (até mesmo as drogas) – passa por cumprir uma lista.
Vamos reinventar essas formas de viver? Espero que sim, que se pare de realizar algo com o objetivo de cumprir uma meta ou obter uma aprovação externa.
Vejo muitos romances brasileiros da nossa geração (autores nascimentos a partir de 1980) com personagens viajando para algum país da América Latina a fim de ter uma guinada na vida. Do que estamos fugindo? Por que uma viagem pelo continente corresponde a algo tão importante hoje?
O romance de viagem, o road book, consagrou-se na literatura, uma tradição desde a literatura beatnick e em outros títulos. Não acho, porém, que as personagens e as pessoas estão, necessariamente, fugindo e alguma coisa. Em geral, o que está por trás dos gêneros road trips (é um gênero, não é? Um gênero literário, artístico) é a autodescoberta, como se virar em uma situação difícil, os sentimentos diante de uma realidade distinta. E, para nós, a América Latina é um lugar muito interessante – para a ficção e para a nossa identidade enquanto latinos.
Em Com Todo o meu Rancor, a viagem tem outro significado, não o de fugir ou realizar uma meta. O sentido reside em estar com uma amiga, conversando, em um lugar bonito, curtindo estar ali e não apenas riscando uma checklist ou o mapa-múndi. A ideia é a possibilidade de se observar de longe. Viajar coloca o mundo em perspectiva, destaca a dimensão das coisas e as diferenças entre as pessoas. Por isso, que a road trip é tão interessante.
Que artistas estão te influenciando?
Atualmente, estou lendo Lisa Taddeo, autora que escreveu um best-seller de não-ficção intitulado Três Mulheres (2019), um livro sobre female rage, um movimento de mulheres, personagens femininas, que têm muita raiva de tudo o que o patriarcado fez com elas. Elas agem com essa raiva e o trabalho acaba tendo uma função meio catártica para as leitoras. Inclusive, a obra dialoga bastante com o Com Todo o meu Rancor.