O tradutor do livro comenta como foi vertê-lo ao português e apresenta este filósofo que propõe uma metafísica dos objetos
O que é uma tradução? Ou melhor… o que é uma tradução dentro de uma área não paradigmática como a filosofia, um espaço descentrado em que a verdade pode até existir, mas nunca é a protagonista? Nesse cenário além das fronteiras confortáveis e previsíveis dos paradigmas, significantes carregam um estilo, uma performance, uma marca, um corpo. Da mesma forma que os tradutores de literatura, como na poesia, os profissionais das ciências humanas precisam ultrapassar a obsessão epistêmica, o simples desespero pela verdade, pela simples correspondência com um certo conteúdo pronto, dado. Filósofos, sociólogos, antropólogos, psicólogos e muitos outros “ólogos” por aí querem mais do que o verdadeiro, querem também deixar uma marca, uma digital, da mesma forma que as pinceladas rústicas de um Cézanne, a escrita anti-psicológica de Kafka, o silêncio musical de John Cage, ou a performance animalesca de Artaud, guardam nos bastidores um tipo de trajetória, muito além da dança vazia dos significantes.
A tradução nas humanidades transborda os limites de uma pura correspondência, por mais sedutora que ela seja aos olhos de algum positivista qualquer, indo além do gosto amargo das tautologias. Sem dúvida, é preciso trazer “a verdade” do texto, um compromisso técnico com o que foi escrito, além de todo um conjunto de nuances específicas da obra traduzida, mas a verdade não enche a barriga de ninguém, nunca encheu. É preciso resgatar no meio do oceano epistêmico o traço estético da obra, sua trajetória, suas pinceladas, digamos assim. Por exemplo, Graham Harman – filósofo de quem traduzi O Objeto Quádruplo: Uma Metafísica das Coisas Depois de Heidegger – é bem-humorado, com uma escrita metafórica, escapadiça, além de uma tendência quase espontânea ao neologismo, como se espera dos pupilos de Heidegger. Como manter esse ritmo? Como preservar as digitais de um corpo filosófico? Em outras palavras, como traduzir o conteúdo e a forma de um livro?
Veja também:
>> “Os modos de existir de Bruno Latour“, por Tiago Salgado
>> “Confissões de um Manifesto: Posfácio Paçoca“, por Antonio Neto
Como sugere o próprio subtítulo da minha tradução, Graham Harman propõe uma “metafísica das coisas”, ou dos “objetos”, como ele mesmo gosta de dizer em seu compromisso declarado com a Escola Austríaca, de nomes como Brentano e Husserl. Ao tratar tudo como objeto, em um mesmo nível horizontal de implicações (a famosa “ontologia plana”), ganhamos uma forma curiosa de fugir um pouco das garras do filósofo de Königsberg, ou seja, da tradição kantiana e sua busca obcecada pelo tesouro epistêmico. A consequência dessa fuga (ainda que parcial), implica em um descentramento do humano, agora não mais visto como uma matriz de sentido inevitável, uma condição de acesso indestrutível. Até mesmo seus subprodutos, também kantianamente problemáticos, como “cultura”, “poder”, “linguagem”, “sistema”, “mente”, perdem suas pretensões de correlato, ao mergulhar agora em um mundo pulsante, escapadiço, muitas vezes até traiçoeiro. Isso significa uma maior consideração com elementos não-humanos, como mesas, cadeiras, cães, árvores, observando o quanto carregam dentro de si uma espécie de autonomia constituinte, o que Harman e sua veia aristotélica chamam de “substância”. Em vez de perguntas mais epistemologizadas, como “quais as condições de acesso ao mundo?”, que tal falar do “mundo em si?”. Sem dúvida, esse “em si”, em Harman, continua com um sabor um pouco remoto e incompreensível, o que poderia lembrar o cheiro de idealismo alemão, mas, ao contrário de Kant, essa “contingência” não é um simples reflexo das projeções humanas ou de suas limitações compreensivas, mas resultado direto do próprio mundo e seus componentes. Nas próprias entranhas da realidade, em terras muito distantes onde o humano é apenas uma breve lembrança, o mundo continua lá, presente, excessivo. Esse mesmo mundo resiste a nós, resiste a mim, assim como a qualquer investida teórica ou até mesmo prática. Ou seja, nem o conceito de “experiência” dos fenomenólogos, com toda sua epoché pretensiosa, suporta o peso de um mundo rebelde, ou “recalcitrante”, como imaginava Bruno Latour. De uma forma bem heideggeriana, Harman diria que esse “recuo” do mundo (withdrawal) nos leva muito além das fronteiras previsíveis e fenomenológicas de uma intersubjetividade. Afinal, testemunhamos agora o aparecimento do “interobjetivo”, de relações pós-humanas no centro de um projeto realista ambicioso ou, como ele diria, de um “realismo estranho”. Nas palavras de Harman:
Aqueles que negam que objetos são a base de construção da filosofia têm apenas duas alternativas básicas. Eles podem dizer que os objetos são um mero efeito superficial de uma força mais profunda, de modo que o objeto é “subminado”. Ou eles podem falar que os objetos são inúteis superstições em comparação com suas qualidades mais evidentes ou relações, de modo que o objeto é “supraminado”. Vamos começar com essas duas estratégias críticas, observando por que elas não conseguem ser bem-sucedidas, e por que os objetos devem finalmente prevalecer. O leitor não precisa ter medo porque o resultado não será um realismo chato e tradicional de átomos e bolas de bilhar. Ao invés disso, os objetos apresentados nesse livro são tão estranhos como fantasmas em um templo japonês, ou sinais incompreensíveis que brilham da lua.
Depois de quase duas décadas, contabilizando traduções em mais de 20 idiomas, além de eventos e palestras ao redor do mundo, Graham Harman e sua Ontologia Orientada ao Objeto (OOO), enfim, chega ao Brasil e aos países de língua portuguesa. Sua abordagem ousada, original, além de muito criativa, ultrapassa os próprios limites da filosofia, invadindo áreas como as artes, as humanidades e até mesmo ciências mais duras, como a própria física. Como é a primeira publicação de um dos seus livros no país, você consegue imaginar o peso nas minhas costas, a responsabilidade nos bastidores dessa minha jornada como tradutor. Esse livro representa, portanto, uma nova gramática filosófica, um novo repertório de termos que deve guiar futuras traduções, sejam elas feitas por mim ou por qualquer outro tradutor que se arrisque nas águas continentais da Ontologia Orientada ao Objeto. Termos como “subminação”, “supraminação”, “objeto sensitivo” fazem parte agora dos bastidores do campo acadêmico. Essa busca por uma linguagem mais padronizada é também uma forma de manter a identidade do autor, evitando que a cada nova tradução um novo arranjo aleatório de palavras apareça.
Sobre os termos inéditos da filosofia de Graham Harman, já que não existem correspondentes em português, neologismos foram criados com a ajuda do próprio autor. Como nas traduções francesa e espanhola os tradutores não conseguiram importar os prefixos “under” e “over”, termos como “undermining” e “overmining”, conceitos-chave da teoria de Harman, foram traduzidos por palavras de uso diário (francês: démolition e ensevelissement; espanhol: demolición y sepultamiento). Na tentativa de manter os neologismos criados por Harman, além de preservar a noção de “mine” (minar) e os seus prefixos, assim como o som das palavras e sua própria identidade conceitual, os termos foram traduzidos para o português como “subminação” e “supraminação”, seguindo muito mais os tradutores italianos (“subminazione”, “surminazione”). Como disse no começo desse ensaio, o grande desafio de qualquer tradutor nas humanidades é manter o corpo do traduzido na linguagem, sua marca, ou, como diria Harman, seu estilo. Por isso que os termos “undermining” e “overmining”, assim como suas variações adjetivadas e substantivadas (undermined, underminer, etc etc), precisavam de um cuidado maior, já que representam o coração metafísico de Harman. Por esse motivo, de todos os conceitos traduzidos por mim, esses dois foram os mais estressantes, os que mais ocuparam o meu tempo e até o meu espaço. Dezenas de rabiscos em papéis, vários e-mails enviados, não sei quantas reuniões com outros tradutores, mais de 500 horas de tradução, além de quase dez releituras de todo o material em busca de possíveis problemas… pois é, essa foi minha rotina com O Objeto Quádruplo.
Esse livro, como qualquer outro objeto na teoria de Harman, provavelmente vai produzir efeitos inesperados, sejam eles bons ou ruins, muito além da expectativa hilemórfica desse humilde tradutor baiano que aqui vos fala. Uma vez no mundo, o objeto ganha autonomia, por isso ninguém ao certo sabe as surpresas que nos aguardam por aí. Como essa tradução vai ser interpretada, difundida, reciclada no território brasileiro? Não sei… O que existe até agora, nos primeiros dias de lançamento, é apenas as expectativas dos humanos envolvidos, como eu, por exemplo. Mas, como diria o próprio Harman, os objetos frustram, surpreendem e transbordam essa rede de expectativas, o que chamou de “encanto” (allure). Quais portas devem se abrir? Quais portas devem se fechar? Em outras palavras, como vai ser a trajetória desse objeto chamado LIVRO? Diante de tantas perguntas, o conselho de Graham Harman e sua Ontologia Orientada ao Objeto é simples: “Deixe ser”.