Confissões de um Manifesto: Posfácio Paçoca

Com os filósofos Donna Haraway e Sêneca, um ensaio-crônica sobre uma companheira canina que se foi, mas que não deixou de ficar

A cadela Paçoca | imagem: acervo do autor

(Ah […])

A saudade…

O mergulho em suas calmas e agridoces coloridas águas mornas faz-nos lembrar de como era a realidade a qual estávamos vivendo até pouco tempo que se foi. Vida real de momentos compostos de instantes outrora uníssonos, outrora não harmônicos, mas sempre com sons que reverberam em nossas lágrimas. Propriamente, são as lágrimas, metafóricas e literais, que, com o reflexo advindo da luz do crepúsculo eterno da solidão, formam o oceano no qual mergulhamos na expectativa do reencontro com aquilo que consideramos perdido no âmago dos nossos corações.

(Ah, […] que saudades de você […])

Para tentar amenizar a saudade fui atrás de ajuda, em outras palavras, resolvi me afogar na escrita de Donna Haraway. Mais precisamente em seu Manifesto das Espécies Companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa. Precisava desesperadamente encontrar palavras sobre relações afetivas entre humanos e canídeos. Primeira confissão: a dificuldade foi enorme. A cada página sobre como a realidade da vida é constituída e constantemente moldada pela abertura aos afetos de outra espécie animal o choro silencioso e seco me tomava por completo.

Espécie companheira… se permitirmos, ela nos revela universos extracorpóreos escondidos pela pragmática natureza humana. A partir do momento que escolhemos ser guiados sem coleira pelo fogo, pela terra, pelo ar e pelas águas cosmogônicas do espírito animal, nos tornamos outros. Essa Dança Elemental nada mais é que uma brincadeira com o devir e que nos incorpora ao mundo. E o sentimento de preenchimento é pleno, caloroso.

(Ah, Paçoca […] que saudades de você […])

O calor entre o humano e sua espécie companheira – víveres por suas histórias díspares – é tão significante que ambos passam a transitar por distintos mundos e universos por um caminho em comum. Invisível caminho aberto a cada abraço, a cada lambida, a cada afago, a cada beijo, a cada suspiro, a cada cuidado ao sono do outro. Juntos e afetados, humano e espécie companheira seguem o caminho invisível que costura suas realidades próprias em uma linda colcha sem retalhos. Alteridade significativa, assim nomeia Haraway o caminho invisível.

Em seu manifesto, Haraway critica e tão logo aceita o termo amor incondicional. Segunda confissão: invejo os pós-estruturais. Gostaria muito de conseguir transpassar às palavras o dualismo dos meus afetos. Não sei se falo da dor de ver o canto em que ela dormia vazio e como isso me deixa incapaz. Não sei se falo das belezas construídas depois do mergulho no colorido oceano da saudade. Procuro às cegas palavras nas quais eu consiga me agarrar.

(Ah, Paçoca […] que saudades de você […] dos seus […])

Terceira confissão: a receita de Paçoca é muito simples. São três ingredientes: olhos de cafuné, pelos de encanto e ternura. Misture todos os ingredientes com um abraço. Coloque tudo na forma de um pastor alemão. Beije as bochechas e atrás das orelhas. Pronto, você terá 40 kg de Paçoca para aquecer o coração. O único trabalho para mantê-la sempre bem é brincar de bola no quintal. E dar qualquer coisa que você estiver comendo.

Assim passamos os anos. Olhando o sol e as outras estrelas, sentindo os ventos das estações, cheirando as flores que brotavam de galhos ficando cada vez mais altos, rindo enquanto os gatos adotados por sua bondade materna cresciam. Companheiros de espécies diferentes vivendo em um único mundo composto pelos afetos mais significantes. Assim foi, assim é, assim será.

(Ah, Paçoca. Vivemos bem. Que saudades de você, […]. Dos seus farelos […])

O pensamento filosófico de Paçoca deriva do estoicismo. Quarta confissão: tal qual Sêneca, Paçoca escrevia cartas. Cartas sobre o oceano da saudade. Tal qual Lucílio, compartilho uma das cartas. Assim escreveu Paçoca:

Desde o momento que encontramos o verdadeiro afeto, o amor, já sentimos saudade. A saudade é composta da mistura do amor com um falso afeto de perda. Não perdemos o que amamos. Contudo, a dor do desencontro é tão real quanto o amor. E é justamente essa dor que perfura os olhos e deles as lágrimas jorram. E das lágrimas das espécies companheiras nasceu o Oceano da Saudade. Não há praia, apenas água por todos os lados. No horizonte o crepúsculo é eterno. Dizem que tem a cor da solidão. O reflexo da luz crepuscular pinta o oceano de aquarela. A profundidade das águas ajeita-se pelo tamanho de quem sai do mergulho, não é permitido se afogar. Mergulho feito, em um primeiro momento, a dois. Pois apenas no abraço final da breve vida em companhia é possível chegar no Oceano da Saudade. Não vai demorar para mergulharmos juntos. Quando você emergir sozinho não enclausure seu coração em concha. Dê um nome a nossa alteridade significativa. Faça dela uma joia.

(Ah, Paçoca. Vivemos bem. Que saudades de você, dos seus encantos. Dos seus farelos […]).

Todos os dias me lembro do dia que eu e Paçoca mergulhamos abraçados no Oceano da Saudade. Todos os dias me lembro do desencontro… quando ela se esfarelou em meus braços e emergi sozinho. Quinta confissão: Você sabe como se formam as pérolas? A ostra é um molusco que possui uma proteção rígida, a popular concha. Ela protege a ostra das hostilidades da vida marinha. Entretanto, quando pequeninos grãos de areia, farelos, conseguem passar pela concha da ostra e toca sua parte central a reação de proteção interna do animal a faz produzir uma pérola.

Sexta e última confissão: após emergir sozinho do mergulho fiquei perdido. Tudo estava alterado na minha realidade. Ora, minha companheira animal não estaria mais comigo… respirei fundo… mergulhei novamente na esperança de encontrá-la. Não sei como aconteceu, apenas sei que vi farelos de Paçoca entrar pelo meu peito e senti quando chegou ao meu coração.

Ah, Paçoca. Vivemos bem. Que saudades de você, dos seus encantos. Dos seus farelos fiz Pérola.

Autor

  • Meu diploma diz que sou biólogo. Minha curiosidade sobre documentação me disse para procurar a graduação de Biblioteconomia. O futuro imaginado vislumbrou um biobliotecário. Enquanto o futuro não chega, você pode me encontrar na Biblioteca Central César Lattes da Unicamp (eu trabalho lá!) para conversar sobre o que você quiser, sou muito curioso (e às vezes não falo tanta bobagem).

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