Os modos de existir de Bruno Latour

Latour renovou a forma como são entendidas as sociedades e a construção da ciência, e forneceu recursos para pensar a nossa sobrevivência na Terra

O filósofo e sociólogo Bruno Latour | imagem: Jean Baptiste

Bruno Latour existiu e ainda existe de diversos modos. Escrever sobre a existência dele é um desafio. Em 9 de outubro de 2022, Latour nos deixou aqui na Terra, ou melhor, em Gaia, termo presente no título de uma de suas obras recentes – Diante de Gaia: oito conferências sobre a Natureza no Antropoceno. Em vida, a existência de Latour fez sim, desde 22 de junho de 1947, muita diferença, renovando o pensamento de muitos seres e incluindo vários outros, principalmente os não-humanos, antes não tratados como igualmente válidos nas Ciências Humanas e Sociais. Com efeito, para o precursor da Teoria Ator-Rede (TAR), Gabriel Tarde, conforme Latour, “existir é diferir”, como dito em Monadologia e sociologia – e outros ensaios.

A vastidão de obras, palestras, conferências, livros, ensaios, artigos, entrevistas, enfim, de escritos de Bruno Latour e sobre ele, em diversos idiomas (francês, inglês, espanhol, português, alemão, bósnio, croata, romeno, italiano etc.), expressam a importância e a relevância de sua pessoa e de seu pensamento para nós, terrestres — termo que também consolida uma perspectiva ecológica mais evidenciada em seus escritos, sobretudo em Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno e em Onde estou? Lições do confinamento para uso dos terrestres. De fato, viver no Antropoceno, era geológica em que a força humana se sobrepõe à da Natureza, cuja revanche fica por conta de Gaia, é lidar com um dilema que o filósofo, antropólogo e sociólogo Bruno Latour nos rememora em Investigação sobre os modos de existência: uma antropologia dos modernos: modernizar ou ecologizar? Tais rótulos classificatórios se descolam dele, pois ele mesmo alega que é um híbrido — uma composição não purificada de áreas do saber —, em Biografia de uma investigação — a propósito de um livro sobre modos de existência.

A indagação anterior, oscilando entre um pólo e outro, sintetiza o seu pensamento, mas não o limita. De fato, tratar da modernidade, ou melhor, investigá-la, foi o grande trajeto de Latour. Aqui utilizo o termo trajeto para demarcar a constante movência do autor entre diferentes áreas do conhecimento como Antropologia, Filosofia, Sociologia, Linguística, Psicologia Social, Direito, Política, Economia, Ecologia, Religião, Biologia. Em Investigação sobre os modos de existência, que também se propõe como site, o autor recorre ao termo trajeto como alternativa à palavra projeto, que seria roteirizado, fechado e acabado. A alguns desses diferentes modos de existência dos modernos, bem como à investigação sobre eles, Latour dedicou essa última obra inteira, bastante densa e volumosa — 403 páginas. 

Inspirado nesse livro, proponho ler Latour em três modos que me parecem atrair e possibilitar uma compreensão didática de seu pensamento. Tomo esses modos à minha própria maneira de ler a trajetória desse autor, de maneira que eles não coincidem com os modos investigados e apresentados por ele. Bem, os três modos que proponho são: Filosofia, Antropologia e Sociologia. Cada modo se refere a um dos próximos tópicos, nos quais tentarei brevemente aglutinar algumas de suas ideias e escritos — os mais próximos de minha tese e das leituras que tenho de Latour. Certamente que os modos se mesclam, mas farei um esforço de purificação — termo usado em Jamais fomos modernos: um ensaio de antropologia simétrica — para tornar minhas ideias mais inteligíveis.

Filosofia

A formação doutoral de Bruno Latour é em Filosofia. Orientado pelo André Malet, pastor protestante e tradutor de Rudolf Bultmann, na Universidade de Dijon, na França, entre 1966 e 1973, Latour se dedica a realizar uma exegese de textos bíblicos sobre a ressurreição de Cristo. O interesse dele estava nos regimes de verdade e de veridicção presentes nas narrativas cristãs. Posteriormente, com a escrita de Investigação sobre os modos de existência, ele retoma a mesma proposição ancorada na semiótica narrativa e discursiva francesa desenvolvida por Algirdas Greimas e Joseph Courtés para verificar as condições de felicidade de cada modo de existência dos modernos — aqueles que tenderam a racionalizar o mundo e a instituir um sujeito conhecedor pautado no conhecimento científico para validar os fatos, separando os domínios do conhecimento por meio de práticas de purificação, como nomeia Latour. A essa proposta também se soma as ideias elaboradas por John Austin acerca dos atos de fala. É válido destacar que Latour também retira de Greimas a noção de actante — aquele que age em uma narrativa, seja humano ou não, orgânico ou não, concreto ou não — para evitar e superar o dualismo moderno entre sujeito e objeto, isto é, entre quem a priori poderia agir e quem sofreria a ação.

Uma outra proposta pragmática (pragma é ação em grego), que entendo de modo mais amplo como filosófica, questiona portanto quem pode agir, como pode agir, onde pode agir, em que condições pode agir e quais outros entes convoca a agir quando age. Nesse sentido, as ideias racionalistas, humanistas, antropocêntricas e subjetivistas das filosofias propostas por Aristóteles (homem como sujeito da ação posto que racional e animado — detentor de uma alma), René Descartes (cogito ergo sum, sujeito individual) e Immanuel Kant (a apreensão dos fenômenos apenas pela mente) são postas à prova. Em Cogitamus: seis cartas sobre as humanidades científicas, Latour questiona a individualidade na produção de conhecimento científico, reconhecendo que a ciência é fabricada coletivamente, por uma comunidade; ou como ele prefere, em ação, não estando pronta nem acabada, o que pode ser aprofundado com a leitura de Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora.

A grande crítica de Latour é endereçada ao falacioso projeto de Modernidade, que seria uma espécie de constituição cujos princípios se pautariam pelas práticas de purificação, ou seja, diferenciação entre o que é propriamente da Natureza e o que é especificamente da Cultura. Como ele mesmo defende: “Jamais fomos modernos”. Jamais fomos capazes de purificar seres naturais de produções culturais, pois somos híbridos, mistos de naturezas-culturas, quase-sujeitos e quase-objetos para retomar o filósofo francês Michel Serres. 

O que Latour defende, por outro lado, é que sempre traduzimos, sempre realizamos práticas de tradução, combinando Natureza e Cultura nas nossas práticas, sobretudo as científicas. De modo mais didático, não há humanos de um lado e não-humanos de outro, mas coletivos que, juntos, compõem um mundo comum. Essa é para ele a grande questão com a qual lidamos hoje, que implica em práticas de ecologização e outras Políticas da Natureza, título também de uma de suas obras — Políticas da natureza: Como associar as ciências à democracia.

Antropologia

Para refrear o avanço de um certo “fronte de modernização”, Latour buscou realizar uma antropologia simétrica, subtítulo de Jamais fomos modernos. O princípio de simetria implica em considerar que os mesmos tipos de causa dos diversos fatos devem ser explicados, sejam eles verdadeiros ou falsos. Trata-se também de evitar de antemão atribuir agência (capacidade de agir) apenas aos humanos ou estabelecer a priori que os vencedores são apenas os modernos com suas práticas científicas em detrimento de saberes tradicionais e não-modernos, não-europeus, não-brancos, não-masculinos e não-científicos. A investigação concerne, portanto, a realizar uma antropologia dos modernos, levando em conta as próprias condições de investigação modernas atribuídas aos outros, nativos, para descrever a si mesmos. Em suma, refere-se a uma autoinvestigação ou a uma prática autoantropológica, um autoexame.

A condição humana está estreitamente associada à técnica, sendo isso também o que define o humano. Em parceria com a primatóloga Shirley Strum, Latour defende que é a vinculação aos não-humanos que caracteriza o humano. Não haveria, nesse sentido, relação estritamente entre humanos (H-H), mas sim relações humanas mediadas por não humanos (H-NH-H). Estes (NH), por sua vez, muitas vezes prescindem de nós (H) para agirem. Desse modo, realizar uma antropologia simétrica igualmente implica em adotar uma posição do/no centro, sem tender para o pólo só da natureza ou da cultura.

Sociologia

O modo de existência sociológico de Latour é o mais evidente para mim, uma vez que culminou na proposta da Teoria Ator-Rede, uma das vertentes mais conhecidas de seu pensamento. Essa abordagem sociológica se difere da Sociologia do Social (ou Sociologia Clássica), como Latour explicita em Reagregando o social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Esta última seria filiada à Émile Durkheim. Distintamente, a TAR ou a Associologia (o estudo das associações), filia-se à Gabriel Tarde e busca considerar as pequenas ações infinitesimais que compõem o mundo. Essas ações são plurais e incertas, quer dizer, não sabemos previamente quem age, como age, com quem age, onde age, quando age, quantos agiram e o porquê de agirem. Logo, a ação é uma surpresa (ver, sobre isso, A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos).

As ações e os atores (actantes ou agentes) são redes, e as redes são atores, pois um ator é levado a agir por outros, de modo que não há um senhor da ação — sujeito individual racional que intencionalmente decidiu agir. Pelo contrário, o que há é um emaranhado de vinculação, conexões e ataduras entre humanos e não-humanos que foram levados a agir por outros humanos e não humanos e assim sucessivamente.

Com efeito, o social (socius — etimologia latina que Latour retoma em Reagregando o social) é um composto temporário de associações humanas e não humanas. Por isso, a preferência de Latour é utilizar as nomenclaturas coletivo e/ou híbrido em detrimento de social e/ou sociedade. O termo social, então, não é o que explica as outras ações do mundo, mas uma ação que precisa ser explicada; ele não é um material que ata duas coisas distintas, mas aquilo que emerge da vinculação provisória entre os atores.

Nesse sentido, a ação à qual a TAR se dedica é a mediação: ação que faz fazer, acarretando mudança naquilo que transporta, naquele/a que transporta e naquilo que possibilita o transporte. O comum se dá justamente nesse encontro entre diferenças, de modo rizomático, para lembrarmos de Gilles Deleuze e Félix Guattari, influentes em seu pensamento. O grande desafio da humanidade hoje, frente à impetuosa força da Natureza que digladia com a força humana, é produzir e compor um comum que considera a agência dos não humanos, em um grande esforço e exercício de responsabilidade, para retomarmos Donna Haraway, como faz Latour em Diante de Gaia. Em outras palavras, o legado de Latour implica em desenvolvermos e exercermos a capacidade de respondermos às urgências climáticas que cada vez mais se impõem sobre nós, terrestres, caso queiramos permanecer atados à Terra.

Referências

LATOUR, B. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

LATOUR, B. Biografia de uma investigação – a propósito de um livro sobre modos de existência. São Paulo: Editora 34, 2012.

LATOUR, B. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

LATOUR, B. Cogitamus: seis cartas sobre as humanidades científicas. São Paulo: Editora 24, 2016.

LATOUR, B. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza e o Antropoceno. São Paulo: Ubu, 2020.

LATOUR, B. Investigação sobre os modos de existência: uma antropologia dos modernos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019.

LATOUR, B.; STRUM, S. C. Human social origins: Oh please, tell us another story. Journal of Social and Biological Structures, v. 9, n. 2, p. 169-187, abr. 1986.

STRUM, S. C.; LATOUR, B. Redefining the social link: from baboons to humans. Social Science Information, v. 26, n. 4, p. 783-802, dez. 1987.TARDE, G. Monadologia e sociologia – e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

Autor

  • Docente da graduação em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Comunicação pela UFMG, com estágio doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em Paris, na França. Mestre e especialista em Comunicação pela UFMG. Graduado em Publicidade e Propaganda pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Autor do livro Cibercultura e Sociologias Pragmáticas pelo Lab 404 e Editora Edufba. Possui publicações sobre Teoria Ator-Rede (TAR) e traduziu artigos de Bruno Latour e outros autores da TAR.

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