Questões que não vêm ao caso

Houve quem se perdesse durante a pandemia. É nesse grupo que me encaixo

Mais de dois anos depois do meu último ponto final, escrevo prosa novamente | imagem: Or Hiltch

Ever tried. Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better.” (Samuel Beckett; em tradução livre: “Tentou. Falhou. Não importa. Tente de novo. Falhe de novo. Falhe melhor.”)

Durante a pandemia – para nós, brasileiros, ela começou na segunda quinzena do mês de março de 2020 –, cada um de nós viveu seu inferno particular. Crianças, jovens, adultos e idosos precisaram se adaptar ao isolamento e ao distanciamento social. Como desgraça pouca é bobagem, precisamos enfrentar discursos negacionistas de que a pandemia era uma invenção ou que ela foi orquestrada pela China – ou por Bill Gates.

Veja também:
>> “Ensaio Sobre o Fracasso“, por Duanne Ribeiro

A confusão, sabemos, era enorme. Não tínhamos muitas informações sobre o vírus, os cientistas ainda não o conheciam bem. Boa parte da população acreditou que se tratava de uma situação passageira. Muitos de nós imaginaram que o “lockdown”, iniciado em fins de março de 2020, não duraria muito tempo. Otimista, apesar de estar passando por um momento pessoal bastante delicado, fui um dos que imaginaram um cenário transitório. Acreditei que em pouco tempo estaríamos livres do vírus.

Eu não podia estar mais enganado. Aquele foi apenas o início de todo o nosso tormento. Todos nós, em maior ou menor grau, fomos afetados pelo coronavírus. Particularmente, não perdi ninguém próximo, mas milhões de pessoas perderam familiares, amigos e colegas de trabalho. Até onde sei, não tive a doença, mas milhões de pessoas tiveram, e parte delas enfrenta sequelas até hoje. Por mais que eu e muitas outras pessoas não tenhamos tido contato direto com o vírus e suas consequências trágicas, fomos afetados – ao menos aqueles que têm coração; leia-se empatia – pelo sofrimento ao nosso redor, noticiado a todo momento em todo lugar. A partir de determinado ponto, parei de acompanhar os números de infectados e de mortos. Eu não aguentava mais. Não bastassem as notícias tristes relacionadas à doença, era preciso lidar com os absurdos ditos pelo presidente da república e com as ações claramente genocidas do governo federal, algumas delas em parceria com governos estaduais e municipais. O que aconteceu em Manaus foi doloroso e revoltante demais. Lançando mão do bordão “se o Brasil fosse um país sério”, não tenho receio de afirmar que muita gente estaria presa por ter provocado aquelas mortes, se o Brasil etc.

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Um dos chavões da pandemia foi o de que ela mudaria nossas vidas para sempre. Muita gente também imaginou isso. A raça humana poderia sair da tragédia mais sensibilizada, mais solidária, mais… humana. Mas não foi o que aconteceu. O “novo normal” já não existe mais, voltamos para o “velho normal”. Sim, alguns hábitos mudaram, como a manutenção do uso de máscaras por uma parcela da população ou a higiene pessoal reforçada, bem como o cuidado redobrado na lavagem de embalagens de produtos adquiridos em lojas e supermercados. Mas, grosso modo, tudo está como sempre esteve. Não evoluímos, não amadurecemos, não tiramos nada de bom – é apenas um modo de dizer, sei que não há nada de bom em uma pandemia – desse período tenebroso que passamos.

As únicas vidas mudadas para sempre pela pandemia foram as daqueles que morreram – e as de quem hoje vive seus lutos.

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Quando Duanne Ribeiro, editor desta Úrsula, propôs o tema “Então é isso o novo normal?” para colaboradores da revista escreverem a respeito da pandemia e suas consequências, de imediato tive a ideia de escrever sobre a minha pandemia particular. Sim, porque cada um teve a “sua”, ela não foi igual para todos. Muitos perderam pessoas, empregos, lares. Outros tiveram que lidar com a nova realidade de estar com os filhos em tempo integral, além de conciliar as crianças com o trabalho em casa. E houve quem se perdesse durante a pandemia.

É nesse grupo que me encaixo.

Questões que não vêm ao caso tornar explícitas me tiraram do rumo pouco tempo depois do “lockdown”. Num primeiro momento, foi difícil reconhecer e aceitar que eu estava perdido. Sempre fui emocionalmente muito autossuficiente, auxiliado por meus livros, meus discos e meus filmes. Mas, em meados de 2020, nada mais me sustentava, e tive que recorrer à psicanálise – e, por um curto período, à terapia. E então teve início um processo de autoconhecimento que não foi finalizado – e que só terá fim quando o meu fim chegar.

Talvez a questão que mais me incomode, depois de arrefecidas algumas angústias maiores, seja a seguinte: por que não consigo fazer hoje o que antes eu fazia naturalmente? Posso desmembrar essa pergunta em várias outras: Por que não consigo mais ler e escrever como antes? Por que não consegui fazer o lançamento virtual de meu novo livro? Por que não consigo ter as iniciativas que antes tinha? Por que não consigo mais assistir a filmes no meu tempo livre? Por que reluto tanto em ouvir novos discos de meus artistas preferidos?

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A leitora ou o leitor que tiver alguma familiaridade com o assunto provavelmente já percebeu que em algum momento após o início do “lockdown” adentrei – contra a minha vontade, obviamente – o quarto da depressão, de onde venho tentando sair desde então.

Além de contar com a psicanálise e com o acompanhamento psiquiátrico, tenho lido sobre o assunto e buscado encontrar um caminho de retorno ao meu “velho normal”. Enquanto esse dia não chega, o meu “novo normal” tem sido de sucessivas tentativas e falhas. Justo eu, que sempre fui pouco simpático às falhas, e, com o perdão da aparente arrogância, a elas pouco acostumado, tenho estado constantemente às voltas com os fracassos. O fracasso em continuar e terminar uma leitura, em escrever o que quer que seja, em escolher um filme e assisti-lo, em ouvir os lançamentos de vários de meus artistas prediletos, em iniciar e manter uma rotina de atividades físicas, entre outras coisas.

Eu, que sempre fui muito ansioso e queria tudo “para ontem”, tenho aprendido cada vez mais a virtude da paciência. Além disso, tenho aprendido, também, a ser mais gentil comigo mesmo. E a conviver com os fracassos.

Quando li, por acaso, a proposta do Duanne, feita numa postagem do Facebook, rede que pouco tenho acessado, vi que poderia ser uma chance de voltar a escrever – ou de, pelo menos, escrever alguma coisa. E então me dispus a realizar essa “tarefa”.

Sei que este texto não é lá grande coisa, e que o estou terminando com atraso (perdão, Duanne, e obrigado!). Mas eis-me aqui, mais de dois anos depois do último ponto final que coloquei em algum texto, escrevendo prosa novamente. É mais um fracasso, eu sei. Mas talvez seja um fracasso melhor.

Autor

  • Autor dos livros O escritor premiado e outros contos e Mais um para a sua estante, e um dos contistas da antologia O livro branco – 19 contos inspirados em músicas dos Beatles + bonus track. Mora em Feira de Santana, Bahia.

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