Ponha as mãos na massa: Ensinar filosofia com oficinas práticas

Duas experiências de ensino que misturaram filosofia com jogos de tabuleiro e RPG, estimulando pensamento, vivência e criação

O uso de jogos permitiu um engajamento único dos alunos: “Porque havia uma experiência compartilhada e em primeira pessoa para ser discutida, eles eram capazes de ter empatia pelo que os outros passaram e atentar aos detalhes das experiências dos seus companheiros de curso” | imagem: Benjamin Esham

texto originalmente publicado pelo Daily Nous, traduzido com permissão
por Cat Saint-Croix e C. Thi Nguyen
tradução por Duanne Ribeiro


Relatos de experiência

Thi: Há alguns anos eu tive uma oportunidade estranhamente incrível. Eu tinha acabado de terminar um livro inteiro sobre a filosofia dos games – sobre a estética dos games e sobre o que define essa mídia especial que são os games. E eu acabei de preencher uma vaga na Universidade de Utah, que por acaso possui um dos maiores e melhores departamentos de design de games do mundo. Eu já vinha colaborando com um dos profissionais dessa faculdade, Jose Zagal, e nós pensamos que seria incrível ensinar algo juntos para os alunos de design de games.

A princípio nós iríamos apenas fazer uma aula honesta do tipo infodump [despejo de informações] em que nós ensinaríamos um monte de teorias sobre jogos e a prática de jogar. Mas o programa de design de games é um programa bem prático, bem técnico, bem voltado à programação e à animação, e nós ficamos inseguros sobre se os estudantes do curso iriam mesmo voluntariamente se inscrever em uma aula teórica no estilo das humanidades. Então José teve uma ideia. O currículo do curso inclui teoria do design, e o departamento precisava de mais disciplinas com esse teor. Mas o pulo do gato é que as matérias deviam ter bastante prática. Metade das aulas podiam lidar com teoria e metade dos trabalhos podiam ser escritos. Mas os estudantes também tinham que fazer coisas. Jose não sabia se eu iria topar, mas a primeira coisa que passou pela minha cabeça foi: “Claro!” (A segunda foi: “Meu Deus do céu, onde foi que eu me enfiei?”).

Só uma coisa me fazia pensar que isso era sequer possível: o trabalho de Meg Wallace, que havia escrito há um tempo, no site Aesthetics for Birds, um artigo incrível sobre a sua disciplina “Introdução à filosofia por meio das artes circenses” [texto também traduzido pela Úrsula]. Ela é metafísica, mas seu hobby é o circo. Ela fez esse experimento doido: lecionou um curso de introdução à filosofia, alternando aulas tradicionais com oficinas práticas de artes circenses. Tipo: dava uma aula sobre o que Aristóteles disse sobre as habilidades e então, na próxima sessão, um instrutor convidado os ensinava a fazer malabares. E aí os participantes discutiam o que isso iluminava sobre as ideias de Aristóteles sobre habilidades. Essa ideia funcionou surpreendentemente bem, ela disse; a energia entre a metade aula e a metade prática deram muito mais certo do que ela podia esperar. Aquilo era mais do que uma invencionice, era de fato uma maneira incrível de ensinar filosofia.

Ilustração do jogo The Quiet Year

Então nós tentamos algo do tipo: um curso sobre filosofia do jogo integrado com oficinas de design de games. Já o oferecemos duas vezes. É assim que funciona: as terças são os dias de aula teórica; Jose e eu nos alternamos; às quintas ocorrem as oficinas, com alguma atividade diretamente relacionada com as aulas. Às vezes nós sugerimos que os alunos joguem algum jogo interessante que escolhimos – em geral algo experimental e soturno, como The Quiet Year, em que os jogadores, cada um a seu turno, narram as voltas e reviravoltas de um vilarejo pós-apocalíptico e desenham cada novo evento em um mapa coletivo. Às vezes nós fazemos com que eles modifiquem certos jogos, procurando mudar seu clima e sua sensação, de modo a atingir algum objetivo. Numa aula, nós apresentamos a eles um jogo precário e pedimos que o melhorassem somente retirando algumas regras. E depois disso tudo eles começam a fazer seus próprios jogos e a trabalhar neles nas oficinas.

A aula teórica sempre é um subsídio direto para oficina e para os trabalhos. Foi assim no primeiro ano em que demos o curso: nós falamos a eles sobre filosofia do horror e sobre os debates em torno do paraxodo de por que apreciamos obras artísticas que nos causam desconforto. Nessa ocasião jogamos um difícil RPG sobre desequílibrios de poder injustos. E demos a eles a seguinte tarefa: desenvolver um jogo que capturasse a experiência emocional de ser um estudante durante a pandemia.

Eu fiquei completamente chocado com o quanto tudo isso funcionou bem. Há uma energia enorme e fértil nesse vai e vem entre o teórico e o prático. Os estudantes de design de games disseram que o curso foi transformador para as suas carreiras; muitos deles contaram para a gente que as aulas ampliaram mesmo a percepção que tinham do que jogos podem ser, e modificaram suas metas artísticas. Mas o que eu não esperava era que fosse tão especial para os que não eram designers de games.  O curso é oferecido também os graduandos de filosofia, e eles adoram também. Não só como um passatempo; eles sempre me falam do quanto as oficinas intensificaram o seu engajamento com questões teóricas centrais. Há algo incrivelmente valioso no vai e vem entre teorias e uma prática rica, fundamentada, focada.

Veja também:
>> “Em Casa nos Mundos Inventados por Nerds“, por Saladin Ahmed
>> “Filosofia dos Games“, por Ryan OD

Cat: É impressionante pra mim o quão temerosos nós dois estávamos em relação a esse curso apesar do fato da pedagogia acertar na mosca! Acho que comecei considerar seriamente a ideia do meu curso Filosofia de Tabuleiro depois de bater um papo com Rima Basu sobre o seu curso a respeito do problema do mal, do qual a ementa e as tarefas foram feitas com base em um tema inspirado por Dungeons & Dragons, de modo a dar um pouco de leveza e distanciamento a um curso bem pesado. Mas realmente jogar os jogos, pensei, tinha tanto potencial!

RPGs foram parte da minha desde antes que eu pudesse jogá-los – eu me lembro de ficar sentado debaixo da mesa do porão dos meus pais enquanto meus irmãos e seus amigos lutavam contra hidras, dragões e bandos de ratos logo acima. Todavia, nos últimos cinco anos, mais ou menos, eu tenho jogado semanalmente. Durante todo esse tempo, vira e mexe eu me pego pensando sobre questões filosóficas dessa experiência:

  • Dungeons & Dragons é mesmo um jogo? (Ninguém ganha, no fim das contas…)
  • É uma forma de arte? (É um teatro de improviso com mais etapas, não é?)
  • O que há de verdadeiro nesses mundos cocriados? (Se eu acredito que o meu personagem tem cabelo azul, mas o mestre (o jogador que controla monstros e personagens não interpretados pelos jogadores, e que assume os papéis de juiz e de narrador) e meus companheiros de partida não sabe disso, o que há de verdadeiro no que se refere ao cabelo do meu personagem? Quem decide? O que se passa quando o mestre acredita que o cabelo do meu personagem é na verdade preto?
  • Qual a relação entre os jogadores e seus personagens? Podemos induzir ao erro um ao outro durante o jogo (sem trapacear)?
  • Podemos aprender a ser pessoas melhores jogando esse tipo de jogos?

Essas questões coalesceram em Filosofia de Tabuleiro, um curso que combinava filosofia e RPGs de tabuleiro. A ideia central era simples: os alunos jogariam os jogos e nós estudaríamos aquelas questões usando a sua experiência como uma pedra angular compartilhada. Eu fui contemplado com uma bolsa de inovação no ensino em 2019 para desenvolver o curso e, de verdade, tive a sensação de que havia cometido algo, mas me safado. Jogar os jogos era essencial, porém: ao construir o curso, eu estava preocupado sobre como as imensamente diferentes bagagens dos estudantes poderiam atrapalhá-los. Como você pergunta a um estudante que nunca jogou nenhum RPG o que ele pensa sobre RPGs como uma ferramenta para o estudo da ética? A coisa só pode piorar quando esse estudante está ao lado de outro do qual toda a vida social nos últimos quatro anos girou em torno de uma campanha de Call of Cthullu. Os alunos precisavam de um terreno comum, e foi assim que Filosofia de Tabuleiro se tornou um curso prático.

Eis como o curso foi estruturado. A maior parte dos encontros era bem normal: um pouco de giz e de conversa, alguma reflexão individual, e uma boa cota de debate. Mas, a cada duas semanas mais ou menos, nossas reuniões de quarta-feira se tornaram noites de jogatina. A aula começava às 16h, como sempre, mas os estudantes ficavam até tarde – às vezes até umas 19h30 – para jogar. Cada sessão de jogo foi definida para proporcionar um tipo de experiência que seria o tópico de discussão nos próximos encontros. Nessas ocasiões posteriores, os alunos estavam transbordando com argumentos, pontos de vista e entusiasmo. Eles haviam firmado um território intelectual e desejavam defendê-lo. Eles se divertiam, e eu também.

Essas partidas também davam subsídios para vários trabalhos. No curto prazo, os alunos usavam as suas experiências da Noite de Jogatina como base para (Meta-)Histórias, que consistiam em pequenos textos de escrita criativa. Os estudantes podiam assumir a perspectiva dos seus personagens, escrever um trecho do seu diário ou uma carta à sua família, ou poderiam se engajar em uma reflexão mais filosófica. No médio prazo, eles podiam usar aquelas vivências como parte de uma argumentação nos Artigos de cinco frases, que eram pequenas tarefas de redação voltadas a ensinar aos participantes o arroz com feijão da disputa filosófica. Os estudantes foram igualmente encorajados a usar suas experiências em ensaios de maior fôlego. E eles fizeram isso. Eles as usaram para contestar, expandir, precisar, concordar com e suspender as leituras do curso. Eles agiram assim com confiança e vigor.

Na nossa experiência, esse é um resultado comum de aulas práticas. O resto deste artigo é sobre o por que disso e como você pode tentar por si mesmo. Se você o fizer, por favor nos deixa saber o que rolou!

Por que funciona

Thi: Eu acredito que, de certa forma, eu dei sorte de achar dois tópicos que caíam bem juntos. Algo ótimo sobre os jogos é que eles cabem bem na sala de aula; eles têm o tamanho certo. Você não precisa imaginar fazer uma coisa, e você não precisa se apoiar nas experiências diversas dos estudantes. Todo mundo pode simplesmente jogar o mesmo jogo ali mesmo. E fazer jogos é também inteiramente possível dentro da sala de aula.

Cat: É isso mesmo! Essa configuração dá aos alunos a oportunidade não só de ter a experiência, mas de tê-la sabendo que eles vão discuti-la e aplicá-la às leituras do curso logo mais. Meus estudantes comentaram sobre isso, aliás, falando sobre como eles às vezes se sentiram como se estivessem se observando jogar o jogo!

Thi: eu tive um professor na faculdade que organizou um seminário de filosofia da mente sobre o tema da dor, e no começo de cada aula ele nos fazia bater com as mãos na mesa até que doesse, apenas para que o fenômeno estivesse ali, não distanciado. A pegadinha dos estudos sobre ética é que nem sempre você pode fazer essas coisas em sala. Você não quer gerar a possibilidade de um risco real. Mas com jogos, artes circenses e afins você efetivamente pode. Você pode falar sobre a teoria de algo, então mergulhar na feitura desse algo e talvez você se esqueça da teoria por um tempo. Então, mais tarde, quando nós passamos à discussão, você pode ter essa conversa bastante teórica e filosófica enquanto o fenômeno está bem fresco na sua mente. É uma maneira tão diferente de ensinar, em que você vai e volta entre o teórico e o fenômeno real, a coisa mesma. E isso funcionou tão bem – ter uma vivência concreta fresca na mente de todo mundo, e aí levar isso para um debate teórico. Ou ter a teoria na cabeça e então de fato tentar executá-la – tentar fazer um jogo a partir de alguma consideração estética sobre o prazer da investigação ou a partir de uma posição filosófica que afirme, por exemplo, que jogar é ter uma experiência de pura liberdade.

Eu me recordo de uma aula em particular, na qual nós havíamos conversado sobre os diferentes efeitos estéticos que podem ser criados por meio das mecânicas de jogo. Eu estava realmente preocupado com o preconceito que muita gente tem de que os jogos são apenas para diversão, ou que ser viciante é a melhor coisa que um jogo pode atingir, e eu queria chegar até uma compreensão da amplitude potencial dos efeitos estéticos. Nós lemos algumas coisas sobre o amplo campo das qualidades estéticas possíveis – sobre como a arte pode ser bela e inteligente, mas também aterrorizante, catártica, depressiva, cômica, estranha. E então nós jogamos The Mind  – um jogo em que o grupo tem de cooperar para ordenar um conjunto de cartas randomicamente numeradas, mas sem conversar ou se comunicar de qualquer maneira. E no debate de fechamento após a partida, Jose perguntou aos alunos: sobre o que é esse jogo? E eles estavam simplesmente cheios de comentários estéticos. Um deles disse que o jogo tratava de intimidade, sobre tentar desvendar a mente de alguém. E outro disse que era sobre tornar a experiência do tempo palatável, sobre fazer com que todos desenvolvessem e se harmonizassem em um senso coletivo do tempo que passa.

Cat: Esse é um exemplo excelente, porque esse não seria o tipo de resposta que surgiria se pedissemos aos alunos que imaginassem como é jogar The Mind. De fato, sempre que eu descrevi esse jogo para amigos e parentes, a reação principal foi confusão. Pelo contrário, jogar o jogo produz esse entendimento completamente diferente – você se sente como se estivesse tocando em um quarteto silencioso. Contudo esse não é o tipo de experiência que a maioria das pessoas têm ou muito menos pode imaginar sem jogar o jogo. O barulho e as regras do jogo são as ferramentas para produzir a experiência que queremos estudar.

Penso que isso é similar ao que temos tentado fazer com os experimentos de pensamento – estamos tentando fazer os estudantes imaginar o que queremos estudar. Ao explicar a sua inspiração para “Aqueles que abandonam Omelas” (1973), Ursula Le Guin dá o crédito para “O Filósofo Moral e a Vida Moral”, de William James [disponível em inglês]. Neste texto, James expõe um típico problema consequencialista: é realmente correto manter uma pessoa em sofrimento se fazer isso acarreta a felicidade de muitos outros? O festival sacrificial de verão de Omelas dá vida a esse cálculo consequencialista. Sentimos a questão urgente e vívida.

Nas aulas de filosofia moral, eu fiz com que os estudantes jogassem uma aventura pronta de Dungeon & Dragons – uma estrutura que contava com personagens, mapas, pontos de interesse e assim por diante – que incorporava a mesma questão. Os personagens dos alunos tinham de decidir se libertariam a vítima sacrificial apesar de saber que o sacríficio proporcionava vidas felizes e boas para as pessoas que eles conheceram. Eles ruminaram o dilema, ponderaram seriamente ambas as opções, tentando achar uma solução e separar as suas próprias perspectivas daquelas dos seus personagens.

Se experimentos de pensamento podem parecer mirrados e apáticos e podem fazer com que os alunos se apeguem a detalhes curiosos ou colem nos rostos genéricos das vítimas do dilema do comboio as imagens de alguma pessoa, desde amigos a avós até valentões e ditadores, viver a experiência por meio do D&D parece evitar essas derivas. E na medida em que foram os seus personagens – a quem os estudantes deram famílias, histórias e perspectivas morais – que tomaram as decisões, os participantes as sentiam com mais intensidade do que teria somente a aceitação ou a violação de uma ou outra teoria moral. Em vez de resistir a se imaginar em uma situação que eles veem como absurda (“Quem está saindo por aí amarrando todas essas pessoas em trilhos de trem?”), eles se entregavam à história que estavam cocriando. E aí, falavam sobre ela na sala de aula. Eles utilizavam o que sentiram como base para suas reações às ideias em torno da natureza do aprendizado ético e a simulaçao como uma ferramenta para esse aprendizado. Porque havia uma experiência compartilhada e em primeira pessoa para ser discutida, eles eram capazes de ter empatia pelo que os outros passaram e atentar aos detalhes das experiências dos seus companheiros de curso.

Thi: Sim, totalmente. Em outros cursos de filosofia, é comum que os estudantes se coloquem e apliquem as teorias às suas próprias vidas. Bom, eles o fazem de vez em quando, se você tem sorte. Mas essas apropriações ocorrem de forma errática, e de fato apenas por parte dos alunos mais engajados. Nas nossas aulas práticas, todos realizam precisamente a mesma atividade. Nós podemos trabalhar sobre os detalhes. E, como professor, eu posso selecionar uma atividade bem adequada à proposta. Na primeira vez em que nós demos o curso, algumas práticas funcionaram, algumas foram apenas ok, e outras deram com a cara na parede. Daí nós pudemos fazer um ajuste fino, encontrar as ressonâncias certas entre leitura e oficina.

Os jogos também têm isso de serem tão portáteis e fechadinhos. Em um verão passado eu dei um aula de curso de verão para estudantes estrangeiros, e uma das aulas, sobre estética, ocorreu em Londres. Nós pudemos, por eemplo, ler teoria sobre a arte de rua e então sair pelas ruas vendo essa arte. Mas essa foi uma oportunidade única para mim. Os jogos, em contraste, não requerem um certo estado de coisas, podem ser jogados em qualquer lugar.

Eu suspeito que isso tudo é uma mina de ouro – que há muitas combinações de teoria/prática que seriam tão frutíferas quanto. Mas elas serão específicas para cada professor. Meg escolheu as artes circenses, que ela ama, e isso fez com que funcionasse. Eu fico imaginando outras possibilidades – não sei, tipo um curso de filosofia da ecologia com jardinagem ou um curso de filosofia do bem-estar e do significado, combinada com exercícios de meditação ou algo assim. Ou construir um projeto centrado no lugar em que é feito (do tipo, se as aulas são em Londres, você pode fazer passeios para observar arte de rua frequentemente).

Ilustração do site do jogo Ten Candles

Cat: Sim, as restrições da educação universitária normal – 50-75 minutos em uma sala de aula no campus – de fato formata o que fazemos. E, ao passo que os jogos são uma ferramenta excelente para expandir os limites do que podemos fazer, construir uma curadoria acertada é um enorme desafio (um desafio que aparecerá, cremos, em qualquer curso prático). Nós tivemos que escolher jogos que coubessem na quantidade disponível de tempo (Twilight Imperium, por exemplo, anuncia 4 a 8 horas de partida, o que está bem abaixo da realidade), que fosse simples (ou pouco punitivos) de modo a serem aprendidos rápido, e que pudéssemos confiar que produziriam a experiência desejada. Embora essa última exigência seja, talvez, uma missão impossível. Nas minhas aulas, por exemplo, nós terminamos tendo uma discussão inteiramente diferente do que eu havia planejado após termos jogado Ten Candles, um RPG de “horror trágico”. Ten Candles é um jogo sombrio. Nenhum personagem sobrevive, e todos os jogadores sabem disso desde o começo. Eis como o jogo se descreve:

Este é um jogo sobre contar uma história. A história que você contará não é bonita, e está bem longe de ser feliz. É o tipo de história de bordas afiadas. Do tipo que fica contigo bem depois de que acaba, fazendo seu ninho em pesadelos e vagando em cada sombra. Do tipo que ninguém quer contar. Do tipo que precisa ser contado.

Esta é uma história sobre o que acontece no escuro. Esta é uma história sobre sobreviventes tentando iluminar seu cantinho no mundo e fazer algo significativo nas poucas horas que lhes restam. Esta é uma história sobre desespero. Esta é uma história sobre pessoas como você e eu resistindo contra a escuridão, apenas para inevitavelmente e inescapavelmente ser consumidas por ela.

Nos preparativos para o jogo, os jogadores acendem velas e desligam as luzes. Quando as velas se apagam, seus personagens morrem e eles narram sua morte. (Claro que essa foi a única aula em todo o semestre em que um desprevenido entrou por engano na sala. Ele rapidamente saiu, concluindo que aquilo que certamente parecia com uma sessão de invocação de espíritos não era o lugar que estava procurando.)

Eu escolhi Ten Candles para a unidade que tratava sobre se os RPGs são arte ou não, de maneira a exibir a eles um jogo que lhes daria uma experiência inegavelmente estética e significativa. Mas, em vez de histórias sombrias de sobrevivência e esperança falida, o que rolou foi praga mutagênica na ilha dos Muppets! Quase todos os grupos se deslocaram ao horror cômico. Assim, a conversa se deslocou também: nós falamos sobre como o timing, o contexto e a intimidade (jogar com colegas de classe em vez de velhos amigos) transformou a experiência estética que eles criaram juntos. Depois acabamos chegando aos tópicos que eu havia planejado, mas deixar que a discussão seguisse a experiência foi incrivelmente fértil. Eu acho que a lição que podemos tirar de Ten Candles é que esse tipo de aula exige que se esteja aberto à espontaneidade e à flexibilidade na sala de aula. Como você está fazendo uma curadoria de experiências e usando isso como material do debate em classe, a conversa que ocorrerá é muito menos previsível do que, não sei, outra resposta genial ao dilema do comboio.

Thi: Eu creio fortemente que esse não é o tipo de curso em que você pode simplesmente roubar a ementa de alguém inteirinha. Ele deve vir de você, da pessoa que você é, da sua vida fora da filosofia. As artes circenses funcionam para Meg, porque ela as viveu durante anos. Cat e eu gostamos muito de jogos, e temos uma tonelada de conhecimento sobre eles. O curso prático funciona devido a essa estreita relação entre a abstração da teoria e o terreno muito particular do conteúdo prático. Por isso eu duvido que alguém que não curtisse jogos pudesse simplesmente dar o nosso curso, assim como eu não tenho chance nehuma de dar as aulas de artes circenses da Meg. Mas Cat e eu pensamos que se nós falássemos sobre o que fizemos e os nosso motivos e sobre o que funcionou, então talvez outras pessoas podiam encontar algo, colhido na integridade das suas vidas, que elas possam usar para construir o seu próprio curso de filosofia prática.

Cat: Isso é especialmente verdadeiro tendo em vista os alunos que esses cursos atraem! As vagas para Filosofia do Tabuleiro acabaram no primeiro dia de matrícula – todos os inscritos, com exatamente uma exceção, eram estudantes que adoravam RPGs. Eles conheciam todos os jogos novos, eles estavam imersos nessa cultura, e eles usavam esse conhecimento nas aulas todos os dias. Então, se por mais nada, é importante escolher temas que façam parte da sua vida para que não te peguem no pulo!

Thi: E eu acho que uma coisa que deu muito certo em todos os exemplos que nós citamos é que essas eram atividades de baixo risco. Pelo menos em alguns dos cursos de aprendizagem de serviço [service-learning], você coloca os estudantes lá fora, no meio social, para cumprir tarefas eticamente importantes. E você não quer deixar que eles tenham tanta liberdade assim quando fazem isso. Se eles estão realmente cozinhando sopa para pessoas que estão realmente com fome, você não quer que eles estraguem tudo. Então você em geral acaba sendo bem protocolar. Cat e eu sentimos que o que estávamos fazendo era um pouco diferente, em parte porque era algo relativamente de baixo risco. Meg diz que é crucial que coisas como fazer malabares não importam. Se os alunos aprenderem mal, está tudo bem. Eles podem realmente experimentar, podem realmente testar coisas estranhas e se deixar levar. Eles podem provar experiências audaciosas, e alguns vão quebrar a cara – e e daí? Está tudo bem! E isso mostra também muito respeito pelos estudantes – respeito pela sua capacidade criativa e pela sua autonomia intelectual –, tirar as rodinhas da bicicleta e deixá-los correr.

Cat: Certo. Em vez de deixá-los testar as teorias que aprenderam a seu bel-prazer, o service-learning dispõe aos estudantes códigos bem rígidos do que fazer e como. E isso faz sentido: se um aluno decide que a melhor maneira de contribuir para o sistema de parques da sua região é cortar todas as flores silvestres os canteiros e cobrir tudo de grama, porque é fácil de manejar, no outro ano a próxima leva de alunos de aprendizagem de serviço não será bem-recebida!

Thi: Eu devo acrescentar: minha tendência é sobrecarregar os cursos. Eu quero que os alunos leiam muito, sejam expostos a muita coisa. Eu estava bem ansioso que neste curso nós não seríamos capazes de ter tanta leitura ou cobrir tanto terreno. E, tendo em vista a minha experiência pregressa, só consigo pensar que os estudantes aprenderam mais e entenderam mais profundamente os temas do que ocorreria em aulas puramente teóricas. Quero dizer, eu já dei aulas mais tradicionais de filosofia do jogo e dos jogos, e desse jeito foi simplesmente melhor. Eu não acho que dá pra fazer isso com todas as temáticas, e creio que nem todo aluno vá preferir esse método, e eu certamente não penso que todas as aulas de filosofia deveriam ser assim. Mas eu acho muito doido o quão bem isso fez que os estudantes de filosofia entendessem o conteúdo filósofico, como não foi só um meio de se conectar com a prática.

Algumas especificidades dos cursos

Cat: Bom, vamos aos detalhes. Como eu mencionei antes, os tópicos de Filosofia de Tabuleiro foram construídos em torno de questões sobre as quais eu vinha me debruçando: em que sentido se pode dizer que RPGs são jogos? São eles uma forma de arte? Como a cocriação de mundos afeta o que é verdadeiro neles? E assim por diante. Contudo, escolher leituras para esse curso foi um tanto desafiante por duas razões. Primeiro,de fato não há muitos trabalhos filosóficos sobre RPGs. Há uma boa fortuna crítica sobre jogos no geral, mas RPGs não cabem muito bem em muito da teoria disponível. Segundo, como Filosofia de Tabuleiro é um curso avançado, o grupo de estudantes é academicamente diverso. Cursos avançados na Universidade de Minnesota são limitados a 19 alunos, portanto era uma sala pequena, não obstante todo mundo de engenharia a Letras/Inglês e além se inscreveu. Isso implicou que, ao passo que muitos deles tinham interesse em filosofia, poucos tinham bons fundamentos. Por todas essas razões, eu decidi que seria útil para os estudantes se nós partíssemos de uma base teórica – as perspectivas de Games: Agency as Art [Jogos: Agência como Arte], do Thi – e víssemos se eles concordavam com essas ideias (muita vez trazendo outros textos para contraste) e como as aplicariam aos RPGs. Eu vou dar uma melhorada nisso nos próximos anos, mas acho que vou uma boa abordagem: os estudantes pegaram bem a visão central e puderam aplicá-la agilmente a novos contextos.

Já para a parte “prática” do curso prático, encontrar RPGs que tanto coubessem no nosso limite de tempo quanto fossem relevantes para o curso não foi fácil, mesmo com as Noites de Jogatina e seu tempo estendido. Apesar disso, creio que chegamos a uma excelente seleção: os alunos jogaram Sign, o qual retoma o desenvolvimento da língua de sinais nicaraguense. Eles não podiam falar durante o jogo, e deviam criar uma língua de sinais juntos de modo a construir relacionamentos e se aproximar dos personagens alheios. Eu escolhi Sign para os nossos debates sobre os jogos como instrumentos de proporcionar agência, isto é, sobre a ideia de que as regras e as metas de um jogo podem ser usados como uma maneira de empacotar, compartilhar e praticas formas de agir. Eu já comentei Ten Candles e Dungeons & Dragons, mas vale dizer que tivemos duas sessões de D&D: uma dedicada à criação de personagem e preparativos e a outra para jogar. O fechamento do curso foram Honey Heist e Microscope. Honey Heist é um RPG bonitinho de uma página só que eu queria usar para aquecer os alunos para a frivolidade, a espontaneidade e a vulnerabilidade com que eles precisariam estar confortáveis no curso. Eis um resumo do jogo:

Estamos no festival Honeycon 2017. Você vai realizar o maior roubo que o mundo já viu. Dois critérios:

Um: Você tem um plano complexo que depende de um timing preciso

Dois: Você é A PORRA DE UM URSO

Microscope, por outro lado, é um jogo de construção de mundos em que os jogadores criam amplas histórias enfocando e se afastando de alguns momentos em particular. Eu selecionei este jogo para produzir uma discussão sobre a verdade na ficção, porque o jogo permite que os participantes adicionem cenas na linha do tempo, em qualquer posição e quando quiserem. Isso significa que eles podem alterar os significados, as causas, os resultados etc. de passagens ficcionais já estabelecidas!

Talvez com medo que um reitor perdido por aí pensaria que os alunos não estavam fazendo nada se passasse pela sala de aula em um das noites de jogatina, eu estabeleci um monte de trabalhinhos para esse curso (mas dotados de uma boa dose de flexibilidade). Os estudantes deviam produzir quatro meta-histórias (redações sobre as sessões de jogo), cinco artigos de cinco frases (exercícios de argumentação na escrita filosófica), dois pequenos artigos e um projeto final. As meta-histórias e os artigos de cinco frases recebiam notas em uma sistema simples: ✔-, ✔, ✔+, e os artigos e projetos finais foram avaliados de maneira tradicional. Para os projetos finais, eles podiam escrever um artigo sobre um tema à sua escolha, revisar e ampliar um dos seus artigos curtos ou desenvolver seu próprio RPG. Como era de se esperar, a maioria escolheu fazer seus próprios jogos. Eu fiquei deslumbrado com a qualidade do trabalho deles. No encontro final do curso, eles apresentaram suas criações. Eu nunca tinha visto alunos tão entusiasmados com trabalhos dos seus companheiros de classe! Um dos estudantes, um graduando de design de moda, fez um jogo que consistia em se infiltrar na Fashion Week de Nova York (está com roupas fora da moda? perca 500 seguidores), outro fez um RPG de uma página chamado Ruffians sobre crianças armando um roubo e outro fez um jogo sobre aves de espécies diferentes sovrevivendo ao ciclo das estações juntas. Foram tantos pequenos e bonitos jogos!

E a propósito: no fim das contas, o receio do reitor andarilho foi à toa: a universidade deu um apoio maravilhoso ao curso.

Thi: Jose e eu organizamos nosso curso em cinco unidades. Cada unidade tinha um tema: fizemos uma unidade de abertura centrada em estética no geral e em diferentes teorias dos jogos; uma unidade sobre criatividade e jogo; uma unidade sobre “jogos negativos” – jogos frustrantes, traumáticos e dolorosos; e uma unidade sobre competição e espírito esportivo. Cada unidade pedia uma redação e um trabalho de design de games.

Nós demos esse curso duas vezes, com em torno de 30 estudantes em cada. Os trabalhos de design de games foram planejados segundo os limites do curso. Os jogos tinham de ser analógicos – de tabuleiro, de cartas, jogos físicos. Deviam ter partidas de 15 minutos, mais ou menos, de modo que pudéssemos ter oficinas em sala nas quais grupos de três ou quatro estudantes jogassem o jogo dos demais e comentassem sobre eles, tudo no período de aula.

Nós recebemos jogos tão adoráveis no curso – muitos deles jogos brilhantes, muitos deles jogos emocionantes. Tivemos golfe de tabuleiro jogado com garfos e facas de plástico. Tivemos um jogo em que as pessoas, em turnos alternados, retomavam memórias de infância sobre lugares reais enquanto os deenhavam num mapa – e então rasgavam o mapa em pedacinhos enquanto falavam sobre como nunca poderiam retornar à sua infância. Tivemos uma variante do Pictionary em que cada tentativa de adivinhar o que o outro está representando tinha de ser enunciada como um comentário agressivo de um crítico de arte esnobe (“Peraí, isso é um elefante? Meu Deus, esse é o pior elefante que eu já vi. Você chama isso de tromba?”). Tivemos um jogo em que os jogadores recebiam secretamente descrições diferentes do que significava cada peça, e então jogavam em mundos ficcionais distintos sem perceber.

Nós sobretudo deixamos o curso sem atribuição de notas [we mainly ungraded the class]. O curso era tão inusitado e dar notas a atos criativos como o design de games era tão artificial que nós bolamos uma mistura esquisita de specs grading1 e ungrading2. Nós entregamos a eles toneladas de avaliações escritas, mas foi simplesmente natural evitar a típica atribuição de notas. Foram dez trabalhos durante o curto, classificados como “aprovado/não-aprovado”, e eles tinham de passar em oito deles. Se eles conseguissem passar em oito, ganhavam uma nota mínima B. (E se eles conseguissem passar em sete, ganhavam um B-, etc, etc.) Sem nota maior por passar em mais de oito. No final do curso eles tinham a oportunidade de argumentar sobre qual nota eles achavam que de fato mereciam e por que. Nós não tivemos muitos problemas com isso. Os estudantes foram bem sinceros e basicamente pediram a nota que nós daríamos a eles. (Houve alguns casos em que o estudante subestimou demais a sua performance e tivemos de dizer algo como, “Deixa de ser tão modesto, você merece um A.”) Falando honestamente, a adesão ao e o interesse pelo curso foram tão grandes que a maior parte dos estudantes no geral fez o seu melhor, com exceção de uns poucos. A estrutura 8-de-10 além disso permitiu que os alunos fizessem mais o que gostariam de fazer – eles podiam dividir de forma igual, mas podiam também fazer cinco redações e três trabalhos de design de games ou vice-versa. Para mim, foi um aprendizado do quanto pode ser produtivo deixar de se prender a uma mentalidade de teste e avaliação, e simplesmente tentar descobrir quão longe você pode ir como um professor quando você pára de se preocupar em ser um avaliador. A essência do curso – ser uma empreitada criativa, colaborativa, profundamente curiosa – seria muito prejudicada se eu e Jose tivéssemos que dar notas às suas criações. E os estudantes não se sentiriam livres para assumir riscos.

Jose teve a brilhante ideia de realizar um festival de jogos como trabalho final, um projeto de grupo. (Diga-se de passagem, eu tive muita sorte de ter como parceiro alguém que tem muita experiência como professor de design. Jose sabe muito de como conduzir oficinas.) Nós pedimos que o alunos se autoindicassem a destaques pelos jogos feitos durante o curso, todas essas indicações foram lidas e fizemos uma curadoria coletiva, selecionando doze jogos que representassem bem o que fizemos nas aulas como um todo. (Essa foi outra sacada excelente de Jose – ele pensou que se nós disséssemos a eles para selecionar os doze “melhores” jogos as pessoas ficariam magoadas, mas tentar definir um conjunto representativo era um objetivo comum muito mais prazeroso.) Então os estudantes cujos jogos foram destacados os refinaram e aperfeiçoaram como projeto final, e o restante dos alunos se tornaram os “curadores” e escreveram comentários críticos sobre os jogos escolhidos. Nós publicamos esses textos em um livreto, que se tornou um pequeno e agradável relicário.

E aí o grand finale do curso: nós conseguimos um lugar e organizamos um festival aberto de quatro horas. Os aluno convidaram seus amigos, companheiros de curso e familiares, e o público passeou por ali jogando os diferentes jogos criados por eles. E deixe eu te falar uma  coisa: ir a um festival dos seus alunos, jogar seus jogos, dar risada com eles, disputar com eles em complexas lutas de dedão, e então compartilhar com eles memórias traumáticas de infância em um jogo de desenhar – isso é um fechamento muito satisfatório para um curso. Nós tivemos até mesmo um jogo em que todos os jogadores jogavam como designers de games que estavam desenvolvendo um jogo-dentro-de-um-jogo, e eles tinham de debater os méritos estéticos de possíveis novas regras criadas randomicamente – e eles tinham de jogar o jogo-dentro-de-um-jogo que eles fizeram.

Cat: Como se pode adivinhar, nós não temos uma receita simples de como criar esse tipo de curso, mas vale quebrar a cabeça. E há certos temas que pedem um formato mais voltado à prática. Por exemplo, um curso sobre bem-estar e felicidade pode incorporar meditação ou usar jardinagem como forma de pensar sobre cuidado e contemplação. Indo mais longe, se poderia pensar em um projeto de planejamento de refeições que utilizasse diferentes teorias do bem-estar (hedonismo, desejo-satisfação, valor-realização, lista de objetivos etc.) para montar cardápios. Tem muita coisa que se pode fazer nesse sentido! O primeiro passo, como Thi disse, é atentar ao que te apaixona fora da filosofia. O que captura o seu interesse? O que você conhece de trás pra frente? Que coisa que os seus amigos não-filósofos não aguentam mais que você misture com filosofia? O que, quando você dá um tempo da filosofia, você faz?

***

Cat Saint-Croix é professora de filosofia da Universidade de Minnesota. Pesquisa epistemologia, teoria da decisão e filosofia feminista. É autora da tese Non-Ideal Epistemology in a Social World.

C. Thi Nguyen é professor de filosofia da Universidade de Utah. É autor do livro Games: Agency as Art e de uma série de artigos sobre temas como estética, fenomenologia, mídias sociais, gamificação e política.

Autor

Notas[+]

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa