Sobre Israel, Palestina e os ataques do Hamas

O ciclo de violência parece determinado a se autoperpetuar, porque ambos os lados têm em vista um saldo a liquidar

“Metade das duas milhões de pessoas de Gaza tem menos de 19 anos – eles conhecem pouco além de bloqueios e de mísseis caindo do céu. O sofrimento dessas crianças inocentes nascidas dentro dessa realidade é incompreensível para mim” | grafite: Otto Schade / imagem: Manish Prabhune

texto originalmente publicado pela Tangle, traduzido com permissão
por Isaac Saul
tradução por Duanne Ribeiro


As pessoas me perguntam sempre se sou “pró-Israel”, porque eu sou um judeu que viveu em Israel, e minha resposta é que ser “pró-Israel” ou ser “pró-Palestina” ou ser um “sionista” não captura bem as nuances de pensamento que a maior parte das pessoas tem ou deveria ter com respeito a esse tema. Certamente, não captura o meu.

Eu tenho muito a dizer. Eu passei as últimas 72 horas1 escrevendo, enviando mensagens e conversando com israelenses, judeus, muçulmanos e palestinos. Bastante da minha reação vai irritar pessoas nos “dois lados”, mas eu estou exausto e ferido e eu penso que não há outro modo de discutir essa situação sem ser radicalmente honesto sobre os meus pontos de vista. Então eu vou tentar dizer o que eu acredito ser verdadeiro o melhor que posso.

Deixe-me começar com isto: Poderia ter sido eu.

Esse é um pensamento difícil de pôr de lado ao assistir os vídeos registrados em Israel – o público de uma rave fugindo através de um campo vazio, reféns sendo exibidos pelas ruas, pessoas sendo mortas com tiros na cabeça em pontos de ônibus ou dentro dos seus carros. Eu fui a essas festas no deserto, eu andei em companhia de israelenses e árabes e judeus e muçulmanos, eu facilmente teria aceitado um convite para um show perto de Sderot2, apenas para ser indiscriminadamente abatido. Ou, talvez pior, ser tomado como refém e torturado.

Eu não acredito que o Hamas está matando israelenses por liberação, nem acredito que eles estão fazendo isso para chegar à paz. Eles estão fazendo isso porque eles representam o demônio no ombro de cada palestino oprimido que perdeu alguém nesse conflito. Eles estão fazendo isso porque eles querem vingança. Eles estão fazendo isso porque odeiam os judeus. Eles estão empatando o jogo, e seguindo o pior dos nossos impulsos humanos, reagir ao sangue com sangue – uma inclinação a que é fácil ceder após o que o seu povo suportou. Não deveria ser difícil entender essa lógica – só é difícil de aceitar que os humanos são capazes de serem levados a isso. Não defender o Hamas não é um critério difícil de cumprir. Por favor, cumpra-o.

Não é possível recapitular todos os cinco mil anos da história dos povos lutando por essa faixa de terra em uma única newsletter. Há inúmeros lugares facilmente acessíveis onde você pode aprender sobre ela se você quiser (e, a propósito, muitos de vocês deveriam – gente demais fala desse assunto com uma quantidade obscena de ignorância, quilos de arrogância e uma visão histórica estreita focada nas últimas décadas). Mas vou rapidamente destacar algumas coisas que são importantes para mim.

Na minha opinião, o povo judeu tem uma reivindicação histórica legítima ao território de Israel. Os judeus foram expulsos e retornaram e foram expulsos de novo meia dúzia de vezes antes da ascensão do governo muçulmano e árabe do Império Otomano. Claro que é complicado porque nós judeus e os árabes e os muçulmanos são parentes, descendentes dos mesmos caananitas. Mas os árabes conquistaram o território há séculos da mesma maneira que Israel e os judeus o conquistaram no século 20: por meio do conflito e da guerra. Os ingleses derrotaram o Império Otomano e então veio a Declaração de Balfour, de que decorreu a concessão inglesa da área ao povo judeu, uma promessa que posteriormente a Inglaterra tentou renegar – tudo isso antes das guerras que definiram a região desde 1948.

Aquele momento histórico no fim dos anos 1940 foi único. Depois da Segunda Guerra Mundial, com muitos estados árabes e muçulmanos já existentes, e depois de seis milhões de judeus terem sido assassinados, a comunidade global sentiu que era importante conceder ao povo judeu uma pátria. Em um mundo mais lógico ou justo essa pátria teria sido fundada na Europa como uma forma de reparação pelo que os nazistas e outros antes deles fizeram aos judeus, ou, talvez, na América – por exemplo, no Alasca – ou em outro lugar. Mas os judeus queriam Israel, os ingleses haviam aderido ao movimento sionista, e os ingleses haviam derrotado o Império Otomano, o que lhes deu controle daquela terra, e a América e a Europa não queriam os judeus. Como resultado disso, temos Israel.

Os estado árabes já haviam repetidamente rejeitado um Israel dividido antes da Segunda Guerra Mundial e o rejeitaram novamente depois do Holocausto e do fim da guerra. Eles não queriam entregar nem um pouco do seu território a um monte de judeus intrusos que o ganharam de repente das mãos de ingleses intrusos que haviam chegado lá cem anos antes. Quem poderia culpá-los por isso? Haviam se passado séculos desde que os judeus tinham vivido naquele espaço em grande número, e agora eles queriam retornar aos borbotões como europeus secularizados. Muitos de nós provavelmente reagiriam da mesma maneira. Portanto, simplesmente como a humanidade fez desde sempre, eles lutaram. Vários dos estados árabes entã existentes se voltaram contra o novo e florescente estado judeu. Um lado ganhou e um lado perdeu. Isso é o mundo brutal, doente e violento em que nós vivemos, mas é isso que criou a ordem global em que vivemos agora.

Diante da história do século XX, os israelenses e os ingleses são “colonizadores”? Certamente. Mas isso achata milênios de história e cnflito, assim como os contextos da Primeira e da Segunda Guerra Mundial. Eu não acho que os israelenses e os ingleses sejam mais colonizadores do que os assírios ou os babilônios ou os romanos ou os mongóis ou os egípcios ou os otomanos que disputaram essa mesma faixa de terra desde 800 anos antes de Jesus até agora. Os judeus que fundaram Israel apenas venceram a mais recente grande batalha por ela.

Você não pode falar desse tema em um vácuo. Você não pode fingir que há apenas 60 anos atrás Israel foi cercado por todos os lados por estados árabes que queriam varrê-lo da face do planeta. Apesar do equilíbrio de poder ter mudado neste século, essa ameaça é ainda uma realidade. E você não pode falar daquele tema sem se lembrar que a primeira e única razão pela qual os judeus foram para Israel é que eles haviam passado os séculos anteriores fugindo de um monte de europeus que também queriam varrê-los da face do planeta. E então Hitler deu as caras.

Os políticos norte-americanos têm uma visão estreita dessa história, e um viés estado-unidense que é irritante de testemunhar. Como Lee Fang precisamente comentou: “O Hamas com certeza executaria os esquerdistas ACAB [da palavra de ordem “All Cops Are Bastards”, em tradução literal, “todos os policiais são bastardos”] que se animaram com a horrível violência perpetrada contra Israel se eles vivessem em Gaza & os direitistas norte-americanos que cegamente torcem pela subjugação de palestinos se rebelariam de forma duas vezes mais violenta se os americanos fossem submetidos a uma ocupação similar”.

E, mesmo assim, muitos americanos só veem o moderno Israel como o polo “poderoso” nessa dinâmica. O que é verdade – ele obviamente é. Não é uma lusta justa e não tem sido por décadas porque o governo israelense é rico e pleno de recursos, tem o apoio dos Estados Unidos e da maior parte da Europa, e uma estrutura militar incrivelmente poderosa. Além disso, Israel desenvolveu avanços tecnológicos e militares que aprofundaram ainda mais sua vantagem – tudo isso ao mesmo tempo em que o governo israelense colaborou para criar um prisão a céu aberto de dois milhões de árabes e escassos recursos em Gaza.

Do outro lado, aos palestinos falta uma liderança unificada real, e o mundo árabe está agora dividido quanto à questão da Palestina. Israel não deseja dar à população de Gaza e da Cisjordânia mais do que uma polegada de liberdade para viver. Essas populações são formadas em grande parte dos refugiados e descendentes de refugiados das guerras de 1948 e de 1967, vencidas por Israel. E você não pode manter duas milhões de pessoas nas condições em que aqueles que estão na Faixa de Gaza vivem e não esperar eventos como esse.

Eu peço desculpas por dizer isso enquanto o sangue ainda está fresco na terra. A maioria dos israelenses que foram mortos nesse ataque não tinham qualquer relação com aquelas condições de vida, a não ser terem nascido em uma época na qual Israel e os judeus estão na dianteira desse conflito. Algumas das vítimas nem mesmo eram israelenses – elas eram apenas turistas. É por isso que as chamamos de “inocentes” e é por isso que o Hamas só reafirmou com esse ataque que é uma organização terrorista brutal – uma organização que eu espero que seja logo derrubada, pelo bem tanto dos palestinos quanto dos israelenses. Mas, sendo alguém com um profundo amor por Israel, que tem amigos em perigo e pessoas conhecidas que estão desaparecidas, quebra o meu coração dizer isso, porém eu vou dizer de novo porque esse é talvez o dado contextual mais proeminente nesse emaranhado de séculos de contexto:

Você não pode manter duas milhões de pessoas vivendo nas condições em que a população de Gaza vive e esperar por paz.

Você não pode. E você não deveria. O ambiente em que estão é antitético à condição humana. Rebeliões violentas são garantidas. Garantidas. Tão certas quando o nascer do Sol.

E o ciclo de violência parece determinado a se autoperpetuar, porque ambos os lados têm em vista um saldo a liquidar:

1) Israel já respondeu com vingança, e vai continuar a fazê-lo. Seu desejo por violência não é diferente do Hamas – tem tanto a ver com sangue por sangue quanto com qualquer medida legítima de segurança. Israel terá “todo direito de responder com a força”. Derrubar o Hamas – um grupo, aliás, que Israel falhou em ter apoiado – será agora o objetivo, e a morte de civis será vita como dano colateral inevitável. Mas Israel fará também um monte de coisas que o país não tem o direito de fazer. Vai arrasar prédios de apartamentos e matar civis e crianças e muitos na comunidade global provavelmente vão comemorar quando isso for feito. Israel já cortou o abastecimento de água, eletricidade e comida para duas milhões de pessoas, e matou dezenas de civis em bombardeiros retaliatórios. Nós nunca deveríamos aceitar isso, nunca deveríamos perder de vista que esse horror está sendo inflingido a seres humanso. Como o grupo B’Tselem3 disse: “Não há justificativa para tais crimes, sejam eles cometidos como parte de uma luta por liberdade e contra a opressão ou incluídas na agenda de uma guerra contra o terror”. Eu lamento pelos inocentes da Palestina assim como eu faço pelos inocentes de Israel. Ultimamente, morreram muito, muito mais pessoas no lado de lá do que em Israel. E é provável que muitos mais palestinos sejam mortos nessa avalanche de violência outra vez.

Infelizmente, a maioria das pessoas no Ocidente só prestam atenção à essa história quando o Hamas ou um palestino em Gaza ou na Cisjordânia comete um ato de violência. Cidadãos palestinos morrem regularmente nas mãos das forças armadas israelenses e o seu sofrimento é largamente ignorado até que eles respondam por sua vez com violência. É estimado que Israel tenha assassinado 250 palestinos, incluindo 47 crianças, só neste ano. E isso somente na Cisjordânia.

2) Toda vez em que Israel mata alguém em nome da sua autoproteção o país cria um punhado de novos extremistas radicalizados que se sentirão justificados por querer tirar uma vida israelense em represália no futuro. Metade das duas milhões de pessoas de Gaza tem menos de 19 anos – eles conhecem pouco além do domínio do Hamas (estabelecido em 2006), da ocupação israelense, de bloqueios e de mísseis caindo do céu. O sofrimento dessas crianças inocentes nascidas dentro dessa realidade é incompreensível para mim. Eles sofrerão mais agora por causa das ações do Hamas e da resposta de Israel, tudo isso sem serem culpados de nada.

Não há saída desse padrão até que um dos lados consiga se conter ou que os líderes dos dois lados encontrem um nova solução. Israelenses dirão a você que se os palestinos baixarem suas armas a guerra acaba, mas que se Israel baixar suas armas o país será apagado do planeta. Eu não tenho uma bola de cristal e eu não posso te dizer o que é verdade. Mas eu estou certo de que toda vez que Israel mata mais inocentes são gerados mais raiva e ódio e são recrutados mais palestinos e árabes para a causa contra o país. Não há como negar isso.

Tendo tudo isso em vista, por que o ataque aconteceu agora?

Eu não sei bem como responder a essa questão, apenas digo que era forçoso que acontecesse em algum momento. Constitui uma imensa falha de gestão e de inteligência pela qual Netanyahu deve pagar o preço político – ele é um líder fracassado. O Irã provavelmente colaborou com a organização do ataque e o dinheiro liberado pelo governo Biden pela troca de prisioneiros4 também não deve ter ajudado a situação. O governo crescentemente extremista de Israel e os colonos provocando palestinos certamente não ajudaram. Assim como ir à mesquita de Al-Aqsa e profaná-la. Assim como bloqueios e bombardeios e a subjugação indiscriminada de todo um povo. Assim como se recusar a dialogar com líderes não-terroristas na Palestina. Assim como continuar a se expandir ilegalmente e roubar o que sobrou de terra palestina, como muitos judeus e israelenses têm feito no século 21 apesar dos pedidos da comunidade global para que isso parasse. Uma resposta violenta era previsível – de fato, muita gente de fato a previu.

Israel está permanentemente enfiando aquelas pessoas em caixas cada vez menores e com cada vez menos recursos. Mas se você quer atribuir culpa aos líderes israelenses pela contínua expansão e colonização de terras que não pertencem a eles (como eu quero), então você deveria também guardar alguma culpa para os líderes palestinos por repetidamente não aceitar um Israel dividido ao longo do século XX, o que poderia ter levado à paz (como eu guardo).

Por favor, lembre-se também disso: o Hamas ainda é um grupo extremista. O povo palestino não tem um governo ou líderes que legitimamente representem os seus interesses, e pode ter certeza que esse não é o caso do Hamas. Alguns palestinos vão comemorar e aplaudir diante dos cadáveres, ou cuspir neles quando forem exibidos em Gaza? Sim, eles irão. E eles o fizeram. Muitos também vão lamentar, porque eles desprezam o Hamas e sabem que isso só vai tornar as coisas piores. Isso não é diferente de como alguns americanos comemoram os mortos de cada uma das guerras que eles já travaram. Não é diferente dos israelenses que colocaram cadeiras do lado de fora para assistir ao seu governo bombardear a Palestina e aplaudi-lo. Isso não significa que palestinos ou israelenses ou americanos são demoníacos – isso significa que alguns deles estão cedendo aos seus impulsos violentos e aos seus fervorosos sentimentos de justa vingança.

Quais soluções, você pergunta? Eu não sei se tenho alguma. Se você veio até aqui por isso, me desculpe. A solução de dois estados parece morta para mim. Uma solução de três estados faz algum sentido, mas parece fora da consideração das pessoas que importam e que poderiam fazê-la acontecer. Eu queria que a solução de um estado fosse realista – um mundo em que israelenses e árabes e muçulmanos e judeus vivessem lado a lado com direitos iguais, totalmente integrados e desarmados do seu ódio, é uma versão de Israel que eu adoraria. Mas ela parece menos e menos realista a cada novo ato de violência.

Eu sou pró-Israel ou pró-Palestina? Eu não faço ideia.

Eu sou pró-não-matar-civis.

Eu sou pró-não-prender-milhões-de-pessoas-em-prisões-a-céu-aberto.

Eu sou pró-não-atirar-na-nuca-das-avós-de-alguém.

Eu sou pró-não-arrasar-blocos-de-apartamentos.

Eu sou pró-não-estuprar-mulheres-e-fazer-reféns.

Eu sou pró-não-aprisionar-injustamente-pessoas-sem-o-devido-processo-legal.

Eu sou pró-liberdade e pró-paz e pró- todas as coisas que nós não vemos mais nesse conflito.

Seja ele o que for, eu não quero mais nada do tipo.

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