“Um mundo de fantasia bem construído nos fascina. Dessa madeira, tinta, metal e horas de trabalho estafante, certa magia é criada”
texto originalmente publicado pela NPR, traduzido com permissão
por Saladin Ahmed
tradução por Duanne Ribeiro
Em um passado muito distante, “épico” era um palavrão.
No tempo em que era um jovem nerd crescendo no meio oeste americano nos anos 1970 — muito antes de me profissionalizar como escritor — histórias de anéis mágicos e crônicas de demônios milenares não eram estavam exatamente na moda. De fato, tornar público seu conhecimento sobre espadas élficas e mitos orcs era o mesmo que contrair lepra voluntariamente.
Mas parece que esse tempo passou. Nos últimos anos, a cultura americana se apaixonou pela fantasia épica. Versões cinematográficas dos livros de J.R.R. Tolkien lucraram mais de três bilhões de dólares. Dezenas de milhões de espectadores assistiram a Game of Thrones, a adaptação feita pela HBO de As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R.R. Martin. E o último volume da série Wheel of Time, de Robert Jordan, esteve um dos mais vendidos na lista do New York Times.
O que atrai milhões de leitores e espectadores para essas obras? Certamente, o grande número de bons personagens e os enredos emocionantes, cheios de reviravoltas, tem algo a ver com isso. Mas há outros gêneros que possuem essas qualidades. O que há de específico na fantasia?
Alguns anos atrás, eu tive a sorte de participar de uma palestra para futuros escritores de literatura fantástica ministrada pelo homem que a revista Time chamou “o Tolkien americano”, o agora mundialmente famoso Martin. O mestre grisalho descreveu a nós, iniciantes sedentos, os primeiros tempos do culto à Tolkien. Quando universitários e hippies começaram a pendurar posters de O Senhor dos Anéis, Martin ressaltou: “Não eram as capas dos livros ou alguma ilustração de Frodo que estavam nas nossas paredes. Era o mapa da Terra-Média”.
Em outras palavras, mais do que as profundas lições sobre a influência corruptiva do poder, mais do que as cenas de batalha excitantes, mais do que amados personagens como Frodo e Sam, os leitores chegavam aos livros de Tolkien pelo rico, mágico mundo que eles construíam através das suas palavras. Martin tomou esse ensinamento ao pé da letra — da maneira que fizeram alguns de seus mais bem sucedidos contemporâneos, como o último Jordan — levando os fãs para mundos construídos e elaborados até os mínimos detalhes, feito os de Tolkien. E os leitores, é o que parece, não se cansam disso. Com efeito, para muitos deles e não poucos escritores de fantasia, a construção de mundos é o próprio coração do nosso gênero.
Grosso modo, a construção de mundos é a tentativa de descrever um mundo inventado, fantástico, catalogando suas história, geografia, línguas, religião, economia e assim por diante. É um jeito de empurrar o leitor no que Coleridge chamou de “suspensão voluntária de descrença” pelo acúmulo de minúcias. Isso faz com que leitores e escritores se coloquem a perguntar e responder uma série, por vezes, dissonante de questões, indo de “Esse mundo tem um deus ou deusa?” e “Possui um Bem e um Mal verdadeiros?” a “Quão rápidos são os barcos?” e “Do que são feitas as tangas do orcs?”. Nem todos os novelistas e nem todos os leitores na área estão interessados nesse realismo e nesse preciosismo, é claro. Alguns dos mais talentosos e desafiadores recentes escritores de fantasia repudiaram o fetiche do gênero pela construção de mundos. “Como podemos mapear cada esquina de um lugar que não existe?”, contestou o aclamado escritor inglês China Mieville, “Por que nós queremos fazer isso?”. E M. John Harrison, um dos mais inventivos escritores de literatura fantástica contemporâneos, deu início a um imbróglio quando levantou questões sobre “o tipo psicológico do construtor de mundos”, depreciando essa vertente do gênero como “o grande pé nerd no saco”.
Mesmo entre escritores e leitores que concordam sobre a importância da construção de mundos, há uma grande desacordo sobre como fazê-lo direito. Milhares de posts foram publicados em blogs argumentando a respeito de quanto detalhe deve ser revelado ao leitor. A série Wheel of Time, de Jordan, em particular, é um permanentemente um alvo de paródia, até entre grandes fãs, entupido como ela pode ser de incansáveis descrição de roupa, estilos de cabelo, mobília e comida. E Martin pode gastar página após exaustiva página detalhando o brasão de cada participante de um banquete real. Para leitores acostumados com os protocolos da ficção literária, romances que vem com glossários e apêndices podem parecer demais com lição de casa.
Mas no seu melhor, obras que priorizam a construção de mundos oferecem prazeres que simplesmente não podem ser encontrados em outros tipos de literatura, a alegria de viajar, como disse Tolkien, por um Mundo Secundário no qual sua mente pode penetrar”. O tipo de imersão que um imenso mundo inventado pode prover é único. É uma quase física sensação de se perder em algo que não é a nossa casa, mas que termina por ser. Uma sensação de que se está andando, às vezes até dançando, sobre a corda-bamba entre o fantástico e o mundano. Na mesma medida em que As Mil e Uma Noites, que, com frequência — e sendo também um pé no saco — menciona coisas como quais vegetais tinham sido comprados ou quem era o monarca em dado momento, a literatura moderna de fantasia ganha de sua aplicação nerdista na criação de mundos um peso mimético não presente, digamos, nos contos de fada.
Como um trenzinho de brinquedo bastante realista ou uma pequena cidade de casas de boneca completamente mobiliadas, um bem construído mundo de fantasia nos fascina com a vastidão dos seus intrincamentos. E dessa madeira, tinta, tecido, metal e horas e horas de trabalho estafante e nerdístico, um tipo de magia é criado.