Político, poético e físico: a angústia em movimento como tecido literário do poema “Walking around”, de Pablo Neruda

Em setembro de 2023, completam-se 50 anos da morte do poeta. Em homenagem, analisamos em detalhe um dos seus poemas

Detalhe da Casa de Isla Negra, uma residência de Pablo Neruda | imagem: Claudio Valdenegro

Si me preguntáis en dónde he estado
debo decir “Sucede”.

– Pablo Neruda, “No hay olvido (Sonata)”, 1935

12 e 19 de abril de 1969: dois sábados, duas páginas do Jornal do Brasil. Em duas partes, a prosadora Clarice Lispector publica uma entrevista-relâmpago com o poeta Pablo Neruda. O caráter breve, bem breve do pingue-pongue, vale salientar, deve-se ao fato do artista chileno ter respondido tudo por escrito. Porém, apesar da frustração de Clarice com o resultado curto, a sucintez nerudiana mostra-se aguda. Por exemplo: ao descrever um ser humano o mais completo possível, ele saca três adjetivos – político, poético e físico1. E são, justamente, tais dimensões (expressas pelas qualidades citadas) que formam o norte do ensaio que aqui se faz. Essas linhas de força percorrem a extensa e polimórfica obra de Neruda de maneiras variadas a depender do momento em foco – de sua estreia com Crepusculario (1923) às memórias póstumas Confieso que he vivido, de 1974. O objeto destes parágrafos, importante contextualizar, encontra-se em Residencia en la tierra II, reunião de poemas elaborados entre 1931 e 1935 (época que antecede a Guerra Civil Espanhola): trata-se de “Walking around”, cujos versos revelam um eu lírico todo desassossegado e sem esperança. O pessimismo já se percebe no leitmotiv da composição – “Sucede que me canso de ser hombre” – e se espraia pelas fibras de imagens que jogam com o cotidiano e o estranhamento. Está-se diante de um andarilho em nada apaixonado pela cidade, sujeito que, ao caminhar com cara de cárcere, constrói um movimento até maior do que o realizado por seus pés, suas unhas, sua sombra: é móvel a descrença que o torna dissonante em relação ao cenário de acúmulos urbanos. A aflição anda pelo espaço e pelas estrofes, uma náusea permanente, filha de um tempo morto2. Essa angústia, além de acompanhar o indivíduo, mobiliza os eixos do poema, compreendidos nesta análise a partir das características destacadas por Neruda quando da entrevista para Clarice. De quais modos o político, o poético e o físico se atrelam ao desespero do flâneur problemático”? Eis a pergunta que, agora, guia este exercício crítico.

Explicitada a interrogação orientadora destas colocações (também ela, por assim dizer, uma potência motriz), cabe enfatizar, antes que se entre no texto propriamente, a dinâmica deste pequeno ensaio: por meio do método denominado close reading, procura-se uma aproximação tanto com os núcleos de sentido de cada estrofe quanto com a unidade geral do poema, a fim de se embrenhar no “registro visceral”3 nerudiano. Posto isso, a tarefa começa mesmo pelo título: “Walking around”. Há de se questionar: por que o poeta utiliza vocábulos em inglês? Para a língua portuguesa, a expressão pode ser traduzida como “andando por aí”, mantendo o gerúndio (verbo exposto na forma nominal responsável por realçar a noção de deslocamento) e a indeterminação de lugar. Esses termos, aliás, aparecem no nome de um outro trabalho em versos: “Just walking around”, de John Ashbery4. No caso da produção do artista estadunidense, o advérbio “apenas” equivale a mais um índice ligado ao campo cinésico. Contudo, a despeito da presença, em ambos os escritos, da tópica do perambular, a obra de Ashbery atribui a aura agônica a um tu com quem o eu busca se comunicar e não tensiona a matéria poética mediante o atrito de idiomas. O representante da New York School5 caminha só por uma língua. Pablo Neruda, ao contrário, põe toda a carga desoladora no eu lírico e explora o choque causado por um título em inglês a abrir terreno para estâncias em espanhol. Nas mãos do mestre de origem hispano-americana, o emprego do idioma estrangeiro traça um paralelo com a estranheza do transeunte cansado, imerso em um mundo de alfaiatarias, cinemas, escritórios e lojas de ortopedia. Em uma esfera capitalista (denotada, no poema em estudo, pelo plural sempre plural de locais e produtos), o sujeito sente-se farto da cidade e de si próprio. Ele, tal como o título (feito na língua do capital), estranho. E essas camadas se unem quando o autor, de fato, está em solos estrangeiros.

Sim, Neruda acha-se fora do Chile na etapa em que se dedica à concepção de Residencia en la tierra. Torna-se, nessa fase, um residente no globo, passando por três continentes (a América do Sul, a Ásia e a Europa). O professor Hernán Loyola, nas ponderações introdutórias da quarta edição do livro mencionado, acentua que o poeta inicia os volumes I e II de Residencia na pátria, mas cria grande parte dos textos no exterior – da Birmânia (atual Mianmar) à Espanha (em Barcelona e, em seguida, Madrid). “Walking around”, especificamente, é composto na capital da Argentina, Buenos Aires, entre o final de agosto de 1933 e o princípio de maio de 19346, informação que adiciona um outro nível referencial à ideia de estrangeiridade, patente já no impacto idiomático do título.

Idiomático e político, visto que se apropriar da língua regente do sistema capitalista (poucos anos depois da Crise de 1929) traz um adensamento da mirada crítica inerente ao objeto analisado. A expressividade avança em alto grau no decorrer dos versos livres, desde o primeiro: “Sucede que me canso de ser hombre”. Sobre esse verso, o pesquisador Jaime Concha, no artigo “En torno de las Residencias”, frisa: nesse conjunto repetido (a repetição enquanto cadência de dias desencantados e da poesia), há a marca de uma “visão da humanidade burocrática, sujeita às circunstâncias servis de um trabalho estéril e improdutivo”7. Tem-se um elemento social e um estofo de autorrepresentação: as temporadas longe do país natal acontecem devido à carreira diplomática de Neruda, incumbência que não dialoga com o ofício literário. E, mais do que só uma vivência negativa, explica Concha, o aspecto do papelório corresponde a uma “zona de anti-humanidade”8, algo que muito contrasta com a realização inventiva vinculada ao fazer artístico. Para além da simetria autobiográfica, o leitmotiv apresenta a tônica do poema – a exaustão – alicerçada na mudança de um estado natural (a sucessão de horas, eras, eventos, o tambor de todos os ritmos a tocar e costurar trajetórias) para o mecânico. O verbo condutor (“sucede”), portanto, não anuncia o tempo da vida; indica, do lado avesso, a hora do murcho, do impenetrável, do cisne que, de um jeito distinto ao retratado por Rubén Darío9, surge do feltro. A estrofe inaugural, dada à polimetria e à anáfora, exibe itens temáticos e estruturais que constituem as porções seguintes desse tecido poético alinhavado pelo fastio do ser. De ser.

O próximo quarteto chega com uma construção hiperbólica afiliada à competência auditiva (“llorar a gritos”) e ao olfato (“el olor”). A esse exagero (que exige do leitor uma disposição para o fio sinestésico), somam-se a repetição de “sólo quiero” (gancho para o assunto do desejo acanhado, apequenado em sua melancolia) e o polissíndeto puxado pela conjunção “ni” – este, a propósito, um recurso que corrobora com a enumeração de lugares citadinos. Deve-se sublinhar a semelhança dos espaços (ou objetos, a exemplo de “anteojos”) apontados, áreas que, junto à condição urbana (e, no que tange ao substantivo “mercaderías”, verifica-se uma sinédoque do argentarismo), evidenciam o culto à aparência sob um prisma arguto e inquisitivo: de “peluquerías” a “ascensores” (“sastrerías” e “cines” na quadra anterior), lida-se com o visual (necessário recordar de espelhos em elevadores). O caminhante coloca-se cético frente à realidade, combalido até ao enunciar uma vontade desdobrada em opostos: quer o descanso – seja de pedras ou de lã. Tamanha fadiga aceita qualquer trégua.

Aquilo que reflete ou, ao menos, abeira-se de um problema metafísico ganha, no universo de Neruda, uma imagem telúrica, concreta (o esteio físico). Uma, não; algumas. Na sequência, fora, de novo, o uso da anáfora e do polissíndeto (agora, o “e”), manifesta-se a metonímia relativa ao corpo do agente lírico. Pés, unhas, cabelo e sombra, captados na composição estudada, podem reforçar as trilhas desumanizadoras prementes no texto. No entanto, existe a imaginação. Em resumo, a quarta estrofe sugere uma mudança de tom ao constatar, por intermédio do gosto (“delicioso”), a aspiração absurda encarnada em assustar um notário ou matar uma freira (duas profissões, a sério, apegadas a leis e a um curso de reconhecida monotonia burocrática). O surreal, é relevante se atentar, continua em ebulição nesse trecho que, com hipérboles e gradação de atividades a culminar no óbito, violam a rotina apática. E, outra vez, o grito, à la Edvard Munch10, equivale a uma possibilidade extrema de revelação do que se recalca. Antes um grito nerudiano de dor do que de surpresa.

O sofrimento perdura nas estrofes cinco e seis, ambas quartetos (assim como, adiante, a sete e a oito), pautadas pelo não querer anafórico (o tema do desejo volta ao domínio do explícito graças ao termo “no quiero”) e pelo desenrolar de imagens. Destaca-se a metáfora arquitetada em torno de “raíz”, acompanhada por gerúndios (perto da metade da criação, o poeta reafirma o ritmo que, desde o título, comanda a obra) – “seguir siendo”, “tiritando”, “absorbiendo”, “pensando” e “comiendo”. E não passa despercebida a lapidação sonora que o artista concebe ao manejar a sílaba “ti” no início de vocábulos como “tinieblas”, “tiritando” e “tierra” (além de “tripas”, cujo som da primeira sílaba também abarca esse mesmo jogo). O poético, dessa maneira, enche a boca de quem lê os versos e a dimensão física se expande para a toada. Avoluma-se ainda a angústia, sentimento que dirige tudo, com o auxílio do nexo incomum (e de puro desalento) entre o verbo “comer” e o substantivo “dia”.

Por falar no conceito de dia, ele ressurge na sétima estrofe, evocando aquela que, talvez, seja a unidade de tempo mais atada à rotina: a segunda-feira. Personificada na figura que vê o eu chegar, a segunda concorda com a ação de arder (elemento que se põe aceso, em chamas, sobressaltado) e, desse ajuste, resulta a comparação do tal dia, esmaecido no âmbito laboral-burocrata, com um óleo mineral combustível: o petróleo. Para o sujeito, a reinserção, semana após semana, na engrenagem do sistema vazio, fere, provoca sangramento. Nessa altura, aliás, faz-se essencial observar uma certa subversão formada por Pablo Neruda ao deixar a segunda-feira tão em movimento (o dia desloca-se como a criatura com semblante de prisão) a ponto de a ela ser imputada a lesão e o sangue (os seus passos são de sangue e, em sua caracterização, alça-se a imagem de uma roda ferida). Com a vinda da noite, nada melhora. O eu lírico é empurrado para locais da cidade propícios à repulsa: recantos, casas úmidas, hospitais, sapatarias cheirando a vinagre, ruas espantosas. Aos hospitais, associam-se ossos saindo pela janela: está-se na oitava estrofe e a amargura não cessa, tampouco diminui. Odor (da loja de calçados), a dupla hipérbole e metonímia (o retrato dos ossos, da gente morta) e regiões enumeradas contribuem para o aprofundamento (profundo como o ouro negro) do asco aflitivo.

Contra essa ânsia, Neruda empunha a expressão literária. A respeito disso, vale recuperar o que explica o escritor Enrique Lihn11: “a palavra poética é uma experiência de linguagem” colocada à prova, de modo negativo, pelo autor de Residencia en la tierra (e não só por ele). Essas letras de força e boniteza se mostram como uma oposição às “pretensões totalizadoras do sistema simbólico predominante ou dominante em uma dada sociedade”12. A palavra elevada resiste à medida comum dos códigos (o dizer uniforme, o ramerrão do linguajar), às monstruosidades que moem o humano, à agonia de que trata “Walking around”. Na verdade, a inquietude não corresponde à temática da obra apenas, mas a uma espécie de paradoxo intrínseco à poesia (levado ao limite pelo mestre de Parral): aborda-se um andarilho em estado de apreensão constante por meio de uma arte cuja pulsação vital é, precisamente, a antítese das instituições promotoras do mal-estar na civilização (pede-se licença a Freud13 em razão dos termos pegados de empréstimo). Por esse motivo, esta análise apresenta, já no título, a ideia de que a angústia se acha tanto no conteúdo quanto se entremeia no tecido dos versos.

Versos que, nestas páginas, estão quase todos examinados. Faltam as duas últimas estrofes, as quais consolidam procedimentos empregados desde o começo do poema. A penúltima, produzida inteira com base na reiteração do verbo “hay”, traz imagens que, novamente, relacionam-se a traços surrealistas – dos pássaros pendurados nas portas às dentaduras esquecidas em uma cafeteria. A tese da destruição emerge em mais uma sinédoque alusiva à categoria corpo (umbigos e dentes falsos). E a prosopopeia afeta os espelhos que choram (reflexo do transeunte) – espelhos também incluídos na nova listagem de itens, ao lado de guardas-chuvas e venenos. A técnica de enumeração permanece na estrofe final, em que sensações pertencentes às pessoas (“calma”, “furia” e “olvido”) se mesclam a artefatos (“zapatos”, “calzoncillos” e “toallas”), espaços (de “oficinas” a “tiendas de ortopedia”) e à metonímia presente em “ojos”. Nota-se ainda o polissíndeto (sempre evidente no texto nerudiano em questão) com os conectores “con” e “y”, a personificação das roupas (peças que, a exemplo dos espelhos, lamentam através de lágrimas – “lentas lágrimas sucias”) e a nítida retomada da dinâmica central da composição – o indivíduo passeando por aí. The (or a) person walking around.

O caminhante e o seu (ou de toda uma gente?) desespero tomam lugares de pano denotativo e de malha tramada pelo figurado. Deslocam-se, o eu e o esgotamento, dali para lá, diferentes de um flâneur de Baudelaire14, dado que a produção nerudiana se banha e se entranha na aflição pessimista e, em simultâneo, mobilizadora da mais alta poesia. Curioso é que, Neruda, o homem das operações poéticas inefáveis15, ao ser indagado por Clarice Lispector (pingue-pongue citado na abertura destes parágrafos) sobre a noção de angústia, responde simplesmente: sou feliz16. A resolução mais longa, sem dúvidas, mora em suas criações, como a que estas breves, bem breves linhas discutem.

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ASHBERY, John. “Just walking around”.

CONCHA, Jaime. “En torno de las Residencias”. In: Revista Estudios Públicos. nº 94, 2004. pp. 47-70.

FRANCO, Carla Cancino. “O antiflâneur de 'Walking around': errância e estranhamento na cidade”. In: La Junta, 2018.

LIHN, Enrique. “Residencia de Neruda en la palabra poetica”. In: Revista Mensaje. Santiago, vol. XXII, nº 224-225, 1973.

LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

LOYOLA, Hernán. “Las dos Residencias”. In: NERUDA, Pablo. Residencia en la tierra. 4ª ed. Madrid: Cátedra, 1997.

MISTRAL, Gabriela. “Recado sobre Pablo Neruda”. Altazor – Revista Electrónica de Literatura.

NERUDA, Pablo. Residencia en la tierra. Prólogo de Frederico Schopf. Santiago: Editorial Universitaria, 1992.

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