Epígrafe, je t’aime

Pequena na forma, mas imponente, a epígrafe celebra a autonomia do pensamento, resiste à uniformidade do método

“Que a epígrafe, na rede intricada do discurso, emerja como uma entidade híbrida que interconecte mundos de pensamento” | imagem: Världskulturmuseet Göteborg

“Você
É algo assim
É tudo pra mim
É como eu sonhava
Baby”

Tim Maia, “Você”

Feito pela Lua ou feito pelo Sol o começo de um novo calendário é um inferno. Ver a primeira segunda-feira útil de janeiro só desperta a fúria de saber que outras segundas-feiras virão. E até que chegue a única segunda-feira boa do ano, ou seja, a última, muito aconteceu durante o ano que passou; e muito desejamos que não aconteça de novo no vindouro próximo ano (sabe como é, pedir que nunca mais algo aconteça é pedir demais).

E como podemos sair desse inferno criado por homens inescrupulosos que, provavelmente numa segunda-feira, tiveram a nada brilhante ideia de afrontar o tempo da pior maneira possível: contando-o, e esperando que os mesmos dias se repitam numa grande mentira que repetem a si mesmos sobre o domínio do tempo?

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Ora, nessas horas, só o amor salva. Por isso fazemos, refazemos e fazemos de novo nossos rituais de ano novo. Esse refazer metodológico acompanhado pela esperança que Pandora tão bem resguarda em sua caixa não nos permite abandonar nossos amores. O amor, esse radical, de tão grande que é nem precisaria de plural, pois, já diria Blaise Pascal “o coração tem razões que a própria razão desconhece”.

Provavelmente René Descartes diria que essa sentença, sem, ao menos, uma regra de três para confirmar o resultado, é uma falácia. Já Bruno Latour, em uma bela homenagem ao conhecimento científico, propõe, no trabalho “Redes que a razão desconhece: laboratórios, bibliotecas, coleções“, uma reflexão sobre a relação entre o cerne do conhecimento e seu entorno. Latour sugere que a produção do saber envolve uma complexa rede de relações, movimentos e transformações, muitas vezes negligenciadas pela razão.

Logo, o amor, esse inimigo do tempo, de tão mal educado que é, não precisa de permissão para nos ajudar a fazer ciência para o ano que virá. Mas, como o amor não possui método ele simplesmente não pode ser usado de justificativa ou referência. Na ciência, o amor aparece da mesma maneira que nossos rituais aparecem no começo de um novo ano: de forma bela e sutil. Porém, ao invés de aparecer em fôrma de festejos, o amor aparece na ciência na fôrma daquele pequeno conjunto de palavras que são escolhidas a dedo pelos autores dos textos acadêmicos: a epígrafe.

Na literatura acadêmica, especialmente em teses, dissertações ou artigos científicos, a epígrafe pode ser usada para introduzir o trabalho com uma citação relevante que destaca a importância do tema ou fornece uma perspectiva crítica sobre o assunto abordado. Portanto, enquanto o método científico se concentra nas etapas sistemáticas de pesquisa e experimentação, a epígrafe é uma escolha estilística que pode adicionar profundidade e contexto à apresentação de um trabalho acadêmico.

Na trama intricada da linguagem, a epígrafe se apresenta como uma delicada reverência à essência do pensamento do cientista. Pequena em sua forma, mas imponente em sua influência, torna-se, então, o ponto de partida para uma jornada intelectual que desafia as amarras do convencional. Sob sua égide, desdobram-se as páginas de um manifesto silencioso e interno do cientista, ecoando assim, a necessidade inata de transcendência e liberdade da pessoa por detrás das palavras.

A epígrafe é o espaço da celebração da autonomia do pensamento, um convite à resistência contra a uniformidade imposta pelo método. Ao evocar a pluralidade das vozes que a precederam, ela sussurra a promessa de que a liberdade reside na capacidade de questionar, reinterpretar e desafiar as estruturas preestabelecidas. Como uma confluência de destinos, ela convoca o leitor a adentrar um reino onde as ideias dançam livremente, extrapolando as fronteiras do tempo e do espaço.

Nesta ode à epígrafe, proponho um olhar não apenas para o que está escrito, mas para a rede de relações que ela engendra. A epígrafe não é uma mera citação; é um ato de tradução, uma ponte entre mundos conceituais distintos. Ela nos instiga a reconhecer a complexidade intrínseca da produção de conhecimento tecendo uma teia de relações que desafia as fronteiras do texto e do contexto desafiando-nos a desvelar as entrelaçadas linhas de influência que moldam nossa compreensão do mundo.

Que a epígrafe, na rede intricada do discurso, emerja como uma atriz essencial, uma entidade híbrida que interconecte mundos de pensamento divergentes. Que possamos abraçar a epígrafe como um convite à exploração das fronteiras do pensamento, uma manifestação material da interconexão de ideias e um catalisador para a reflexão sobre a própria natureza fluida e relacional do conhecimento. Que cada epígrafe seja um ponto de partida para uma jornada de descoberta, onde as tramas do discurso se desdobram em um emaranhado enriquecedor de perspectivas e diálogos.

Nesta declaração de amor à epígrafe, rendo-me ao seu poder como uma aliada na busca incansável pela autenticidade. Que a epígrafe, como um ritual silencioso, nos inspire a dançar com a liberdade das ideias, a desbravar as fronteiras do conhecimento, e a encontrar em cada palavra um chamado para a emancipação intelectual outrora preenchida por pensamentos métricos pré-concebidos.

Assim como nas relações sociais, a epígrafe não é uma entidade isolada, mas parte integrante de um sistema mais amplo. Ela está inserida na estrutura da obra, refletindo e sendo refletida pelos elementos que a cercam. A epígrafe, portanto, não é apenas um adereço literário, mas um componente vital na análise das forças que moldam a consciência coletiva.

Neste salmo à epígrafe, conclamo a compreensão de que, tal como as relações de produção são a base da superestrutura social, a escolha da epígrafe é um ato político, revelando as condições materiais e intelectuais que determinam o curso do pensamento. Que cada epígrafe seja examinada como um fragmento de um sistema ideológico mais amplo, convidando-nos a desvendar as contradições e a lutar por uma compreensão mais profunda da verdade subjacente à nossa condição humana.

Nesta celebração do devaneio poético da epígrafe, encontramos o sopro mágico que desperta a chama da imaginação. Rima cósmica que ecoa através das eras. Ela é o arquétipo da criação, um catalisador que transforma a leitura em um ritual de descoberta e contemplação. Janela aberta para a intimidade dos sonhos e da imaginação. Um convite a explorar os recônditos da psique, a mergulhar nas águas profundas do inconsciente, onde as ideias se desdobram como pétalas de uma flor noturna. Que a epígrafe seja celebrada como uma aurora para a mente, como uma poesia que antecede a prosa do conhecimento. Que ela nos conduza por caminhos de reflexão, locais onde a luz da imaginação e a sombra do mistério se entrelaçam enquanto dançam em festejo eterno.

Assim, nesta declaração inflamada à epígrafe, rendo homenagem à sua capacidade mágica de transformar a leitura acadêmica em um ritual de descobrimento e contemplação. Que ela permaneça como uma joia literária, científica, sonhadora, performática, conduzindo-nos por caminhos de reflexão. Que, ao honrá-la, encontremos não apenas palavras, mas a essência da riqueza infindável que permeia nosso entendimento do vasto e encantador mundo ao qual pertencemos.

Não há maior declaração de amor aos nossos textos acadêmicos que a procura por uma epígrafe que expresse nossas mais profundas ideias e desejos. Não há maior declaração de guerra aos inescrupulosos senhores do tempo acadêmico que uma epígrafe que exponha o prazer, o deleite do trabalho humano.

Ame as epígrafes.

Assim como amamos os nossos rituais de ano novo. Quem sabe assim consigamos fazer com que as segundas-feiras sejam dias menos infernais, mais felizes. Após esse desnudamento da minha relação com a epígrafe para o texto que abre esse ano novo, desejo para o calendário sob a luz da Lua ou sob a sombra do Sol, um 2024 repleto de amor que apenas a epígrafe consegue transmitir; e quando a pressão, os infortúnios acadêmicos estiverem diante de você lembre-se das palavras de Blaise Pascal,

“Uma gota de amor é mais que um oceano de intelecto”.

Autor

  • Meu diploma diz que sou biólogo. Minha curiosidade sobre documentação me disse para procurar a graduação de Biblioteconomia. O futuro imaginado vislumbrou um biobliotecário. Enquanto o futuro não chega, você pode me encontrar na Biblioteca Central César Lattes da Unicamp (eu trabalho lá!) para conversar sobre o que você quiser, sou muito curioso (e às vezes não falo tanta bobagem).

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