O grifo como inscrição poética: Curadoria em seu próprio tempo

Um depoimento e uma investigação sobre os sentidos da prática de anotar livros

Em produções culturais e curadorias, é comum abordar os processos de criação de quem escreve. Mas quais são os processos criativos de quem lê? Acredito que seja essa a pergunta que tomei pelas mãos e com a qual me deixei conduzir para a escrita deste ensaio, sempre brincando com as lentes da curadoria, da mediação e do tempo.

Partindo do pressuposto de que somos leitores empíricos, e não leitores ideais, preenchemos as lacunas que o texto escrito apresenta e iluminamos os trechos que mais dialogam conosco – seja pela familiaridade, seja pelo estranhamento. O que é esse iluminar senão uma prática de curadoria? Segundo o artista Gean Ramos Pankararú, muitos dizem que os vaga-lumes sumiram, mas não se escurece mais o céu a ponto de vê-los. Coloco, então, o grifo como um jogar luz a palavras em um céu anoitecido.

Quem cura uma atividade cultural costura narrativas e apresenta ao público uma construção tecida a partir de várias referências, que podem não aparecer nitidamente no produto final. Penso o grifo na leitura de literatura como uma dessas tramas. Por que acendemos uma determinada palavra, um trecho específico? Em um processo curatorial acontece fenômeno semelhante: em meio a inúmeras possibilidades, algumas referências saltam aos olhos. Há curadoria em nosso cotidiano, e ela está sendo refinada a todo tempo.

As trocas entre o novo e o repertório que carregamos em nosso corpo são choques que criam abalos temporais. É como se a leitura de algo que dialoga tão intimamente com você, mas que foi escrito por outra pessoa, merecesse uma interrupção do tempo. Acredito que o grifo desempenha o papel de marcar na pele do livro esse mistério que foi despertado.

Quando o leitor grifa um texto literário, dá início a um movimento performático a partir de um querer. A raiz desse movimento é um desejo de expressar um sentimento, mas, me pergunto: qual mistério rege esse sublinhar específico que aparta um trecho do todo?

Faço um paralelo entre o grifo e a curadoria. A poesia nunca permanece no mesmo lugar em que a deixamos, assim como uma exposição, uma programação, um tema que se deseja tornar público. A partir das discussões sobre crítica, curadoria e pesquisa, tenho ampliado as percepções de que há gestão e curadoria no cotidiano e de que a palavra inscrita afeta de forma diferente dependendo de quando e onde – e se – é compartilhada. É o grifo uma criação? O que se revela no grifo de quem lê? O que move o corpo a pegar o lápis, riscar linhas e escrever nas margens?

O tempo do fantástico e da serendipidade

De acordo com o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, o termo “grifo” vem tanto do latim, gryphu, “animal fabuloso, de cabeça de águia e garras de leão”, quanto do grego, grîphos, “questão difícil, embaraçosa, enigma”. É, ainda, um adjetivo que, derivado do nome do impressor alemão Sebastian Gryphius, passou a significar o realce tipográfico sublinhado.

Comumente atribuímos o grifo a esse simples realce visual, mas quantas não são as vezes em que o trecho de um texto nos toca tão profundamente que acaba por suscitar uma imagem comparável à de um enorme animal fantástico, algo que só pode, mesmo, ser fruto de uma esfera maior, mágica? Assim como, quando imersos em um processo curatorial, temos a impressão de que o cotidiano atende aos nossos estímulos e passa a entregar mais e mais matéria bruta sobre o que pesquisamos.

O leitor, com seu grifo, abre um portal no papel, e o livro passa a ser também de sua autoria – tanto que certos trechos destacados podem dizer mais sobre quem os grifou do que sobre quem os escreveu. Ora, quem escreve faz um todo, mas quem lê pesca hipnotizado um trecho específico, algo que, em sua opinião, merece ser destacado.

Para escrever este ensaio e perceber melhor esses movimentos de escolhas, me deixei aberta para as possíveis sincronicidades, ou melhor, para os momentos de serendipidade, como Ana Maria Gonçalves coloca em seu livro Um defeito de cor – num trecho que sublinhei em meu exemplar físico: “Serendipidade então passou a ser usada para descrever aquela situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas para a qual já tínhamos que estar, digamos, preparados”.

Esse conceito muito dialoga com o enigma do grifo, que pode apresentar uma resposta para um questionamento que não necessariamente estava sendo feito. Nem sempre a gente consegue entender o que precisa, e a literatura ajuda a dar nome a essas coisas. O grifo funciona como lupa, para desvendar o que há de silêncio, o que há de tempo e de mistério. A partir desse encanto, me pergunto se a figura leitora não entra num vórtice do tempo ao encontrar no livro uma resposta para uma questão que veio antes ou mesmo para uma que está por vir.

Curadoria em seu próprio tempo

Etimologicamente, “curadoria” vem de cura. Em latim, “cura” equivale ao restabelecimento da saúde. Em grego, à cicatrização. Não posso deixar de lembrar, a partir desses significados, das curas realizadas em diferentes nações de candomblé, que são incisões feitas no corpo do ìyàwó – filho de santo que está em processo de iniciação, renascimento para o orixá. A imagem que ofereço dessa união de sentidos é a da cura que vem a partir da cicatriz, sendo, então, o corpo curado, renovado, aquele que passou por um processo de modificação.

A figura “curadora artística” ocupa uma posição estratégica na mediação de discursos. É como se ela se encontrasse em uma encruzilhada e precisasse, como Èṣù ensina, seguir por um dos caminhos e assumir a encruza não como lugar de fraqueza, mas como potência de força, uma vez que oferta possibilidade de escolha. Quando se lê e o corpo performa o movimento para um grifo, há algo ancestral, imaterial, que pede passagem para que um traço seja riscado. O corpo que lê enquanto segura um lápis lê com outra atenção e postura.

Vá, faça o teste: de todas estas palavras que rabisco aqui, eu te convido a grifar pelo menos uma, talvez uma frase, um parágrafo todo. Essa bagagem pode não ser importante hoje, pode até não fazer sentido em momento algum, mas quem cura precisa de recursos que, sabe-se lá quando ou onde, podem se fazer necessários.

Garanto que eu mesma seria uma leitora-curadora tão mais confortável e ágil se não quisesse grifar, fosse por estranheza, espanto, fosse por amor. Na posição em que me colocasse eu ficaria. E leria páginas e mais páginas sem correr em busca do lápis, da melhor posição para grifar, da borracha quando grifo a mais.

Há também as diferentes predileções: prefiro ler literatura com lápis e borracha sempre à mão. Sinto que assim deixo o livro menos ferido, mas não poupado das cicatrizes necessárias. Há quem prefira usar caneta esferográfica, ou caneta marca-texto – fazendo jus ao nome –, ou post-its no topo das páginas; há quem faça dobraduras nas folhas, ou quem prefira compartilhar seus grifos em publicações nas redes sociais, em tatuagens pelo corpo, em pichações pela cidade.

Nos processos de curadoria, talvez a maior tensão se encontre na negociação entre as ideias, nas formas como as diferentes escolhas entram em diálogo. Na perspectiva da leitura, penso na ponte entre o meu repertório e o que apreendo, recuso e destaco do novo. Como se apropriar de memórias que estão na episteme do corpo? Talvez a chave esteja em uma relação entre conteúdo e forma: o texto impresso como “invólucro” do pensamento, o grifo e a marginália como uma performance que torna aquele item único.

Recorro à Leda Maria Martins e ao seu livro Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela para propor que o grifo na leitura de literatura não descende do tempo linear de Chronos, mas, sim, de um tempo espiralado, que faz curvas. Há perguntas e respostas que os textos presentificam para atender a chamados anteriores ou futuros. É o tempo da poesia, do encantamento, também do luto. E esse tempo cruzado com o sentimento pede passagem no corpo, no nosso e no do livro.

O tempo do mistério

Se, para quem escreve, há um momento de vulnerabilidade na divulgação de seu trabalho, talvez haja ainda mais pele à mostra no caso do leitor que compartilha seus animais fabulosos, os trechos que, dentro de um todo, o exaltaram a ponto de virarem grifos.

Alguns dos meus livros grifados podem ser emprestados, outros talvez levem consigo um pouco demais de mim mesma. Logo na primeira página de A obscena Senhora D, de Hilda Hilst, sublinhei e circulei: “VI-ME AFASTADA DO CENTRO de alguma coisa que não sei dar nome”, e assim segui por todo o romance, fazendo marcações que não podem mais ser apagadas, e muito provavelmente também não podem ser compreendidas em seu sentido inicial por outras pessoas. O que um novo leitor desse exemplar apreende das minhas interferências – apenas ruídos, ou novas camadas de interpretação? Certamente, quem acessa meu exemplar e depara com meus escritos não sabe que a personagem-título em muito me recorda uma vizinha minha que havia se recolhido em solidão e gritava obscenidades, a quem eu carinhosa e intimamente tratava de Senhora D. Também não sabe que, por vezes, quem se confunde com a Senhora D sou eu.

Antoine Compagnon coloca no ensaio “Solicitação”, parte do livro O trabalho da citação: “Quando leio, o que faz com que me interrompa, com que pare diante de determinada frase e não de outra? O que esse tropeço desperta em mim? Ele põe em movimento todo o processo da citação. Mas o que antes despertou esse tropeço? Bem anterior à citação, mais profunda e mais obscura, foi a solicitação: um pequeno choque perfeitamente arbitrário, totalmente contingente e imaginário”.

Ainda nesse texto, Compagnon comenta que hesita em emprestar seus livros sublinhados, uma vez que esses grifos expõem muito sobre ele. Uma excitação que talvez seja íntima demais para ser dividida. É nesse ponto que entendo que o espanto do leitor se une, amorosamente, com o trabalho de criação do autor. Um segredo compartilhado.

Os convites ao grifo

Quando me dispus a pesquisar como se dá o grifo na leitura de literatura, sugeri breves perguntas e recebi respostas de diferentes leitores sobre seus hábitos. Para esta pesquisa, não considerei livros teóricos, edições digitais ou volumes físicos emprestados de bibliotecas, por exemplo. Entre os respondentes que não grifam, muitos se preocupam em manter a edição bem cuidada e evitam interferir na interpretação de outros eventuais leitores, caso o volume seja passado adiante: “Quando estou lendo um livro físico, sinto que de alguma forma estou ‘estragando’ o livro ao anotar ou fazer algum grifo em suas páginas. E, se eu quiser ler novamente, gosto da ideia de encontrar o livro ‘aberto’ e redescobrir coisas ou encontrar outras novas nesse caminho”.

Entre os grifadores, há quem diga que, além de sublinhar, escreve ou coloca pontos de exclamação nas páginas. Há quem tente, de algum modo, fazer com que as palavras entrem em sua pele – porque se emocionou com elas, porque se reconheceu nelas, porque não as entendeu ou, simplesmente, porque o corpo pediu: “Gosto de grifar frases que me tocam, pela forma que são escritas ou porque me parecem ensinamentos que eu quero levar pra vida. Me sinto cada vez com menos memória, sei que livros me tocaram, mas às vezes nem consigo me lembrar o que aconteceu na história, e isso me incomoda. Grifar, pra mim, é um ato muito psicológico de agarrar as palavras e ficar com elas, nem que seja só durante aquela leitura, quando posso folhear o livro e ver as marcações que fiz. Uma mistura entre querer guardar na memória e absorver melhor aquelas palavras bonitas. Como se, grifando, elas entrassem em mim”.

O corpo também pode pedir o grifo.

Desse universo de 42 pessoas, 27 dizem grifar seus livros e 15 preferem deixá-los sem intervenções. Ainda assim, um dos respondentes que preferem não realizar nenhum tipo de anotação afirmou que, quando encontra algo que tem relação com situações pessoais e que provoca identificação, há marcação, sim. No entanto, na maior parte das vezes, a preocupação em cuidar do exemplar físico e deixá-lo intacto parece ser mais forte: “Não tenho esse hábito com a literatura – que pra mim é lazer e é fluência. Não consulto literatura, não leio pedaços. Se gosto do livro e me interesso em relê-lo, releio-o inteiro e prefiro que as novas impressões se sobreponham ou não à memória da antiga – e aí é a memória vaga, não demarcada pelas impressões impressas nas páginas”.

O cuidado com o objeto-livro também é um processo e pode se transformar – a partir da relação com pessoas próximas, por exemplo: “Achava que o livro era um bem precioso que não podia nem amassar. Uma vez fui pra praia com uma amiga que tava com um livro que ficou cheio de marcas por ter molhado e também cheio de grifos dela. Passei a repensar essa relação com o livro e entendi que para ter a literatura como minha companheira mesmo eu tinha que abrir mão desse cuidado todo (aqui cabe até uma interpretação pra vida, relações) e topar estar com ele nas diferentes situações, mesmo ele podendo sujar, amassar. E aí passei a entender também o grifo como um registro da minha relação com o livro naquele momento, de quem eu era quando tava lendo ele. E que talvez daqui uns anos quando reler eu queira grifar outras coisas e não veja sentido em algumas que grifei”.

Há, ainda, grifadores apaixonados, que conversam abertamente com os livros: “Grifo o que acho genial, o que explode, ou o que eu ainda não sabia. Se acho bonito/emocionante faço um coração; se acende uma fagulha cerebral faço uma estrela. Circulo muitas vezes expressões inusitadas, encontros inesperados entre palavras. Se me espanta muito, escrevo na borda: caralhoooo”.

Em alguns casos, o grifo é uma pista: “Às vezes grifo detalhes que acho que serão importantes para o desfecho, quando a história tem algum enigma”.

Sobre os bens comuns

A biblioteca acolhe o livro num espaço que impede, ou deveria impedir, a possibilidade de que ele seja “danado”. É territorialista o grifo? Quando meu corpo é levado a escrever numa margem, a tecer comentários sobre uma trama, me questiono silenciosamente se estou me colocando com ousadia no mesmo nível de autores como Conceição Evaristo, Clarice Lispector, Machado de Assis e Orides Fontela, dialogando com aquelas linhas como numa prosa entre amigos. Há um grifo que não machuca o livro físico e que cumpre um papel, um rito? Será que aquilo que não escrevo esqueço? Que medo é esse de deixar uma ideia ou sentimento ir embora e que me faz marcar um papel, uma pele?

A leitura, como a curadoria, é um processo de criação. Todo conteúdo, seja intelectual, seja artístico, afetivo, que somamos à nossa estrutura de existência é também uma criação. Desvendar o texto não escrito por nós é uma expressão íntima. Posso não colocar em palavras meus pensamentos, mas aquilo que acolho do que recebo é uma entrega ao outro de como funcionam minhas sinapses. Para que essa comunhão seja completa, atingida e absolvida, é preciso que exista o diálogo. Pode ser entre um – eu – e o outro, pode ser entre um – eu – e a obra.

Como possibilidade de discutir curadoria a partir da leitura e sua recepção, ofereço aqui a encruzilhada. Ela oferta diferentes caminhos. Nenhuma curadoria, leitura ou explicação vai dar conta de mostrar o todo.

Afeto em seu próprio tempo

Quando se transfere a palavra escrita de uma obra literária para outro suporte que não o livro – um destaque num espaço expositivo, por exemplo –, há uma responsabilidade por parte da curadoria, que gera o desmembramento de um todo. Esse desmembramento não deixa de ser um grifo, ou uma citação, como Compagnon apresenta. Há ainda um outro elemento caro à curadoria: o mistério. Um diálogo que ocorre ininterruptamente na chave da serendipidade.

A escritora Conceição Evaristo conta que uma de suas primeiras memórias afetivas é a de sua mãe, Joana Josefina Evaristo, desenhando o Sol no chão de terra para que ele voltasse a brilhar e continuasse secando as roupas no varal, sem interromper o ganha-pão da família. Vejo esse mesmo Sol num círculo, num coração, numa exclamação, num espanto de uma marginália. Um pedido de conversa com algo além do que há em nós.

Assim como posso fotografar uma obra num museu e depois ver o registro num contexto só meu, ou colocar uma música para ser tocada repetidas vezes, fora da ordem do disco, sublinho palavras no papel na tentativa de marcar o tempo, já que não posso pará-lo. Como quem diz: eu senti, eu entendi, isso me tocou.

Encerro estas breves reflexões com o fim-começo de A hora da estrela, de Clarice Lispector:

Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?

Autor

  • Produtora cultural, formada em jornalismo, especialista em gestão cultural e mestranda em literatura e crítica literária.

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