O que pode um violão, Edson Natale?

O violonista indica músicas que explicam o poder de um instrumento que é “um mistério a ser desvendado eternamente”


Gilles Deleuze extrai de Espinoza a questão: o que pode um corpo? Nesta série, perguntamos o que podem esses corpos feitos, por exemplo, de madeira, metal e som: os instrumentos de música. Ou ainda: o que pode esse corpo simbionte, formado de coisa, gente, técnica e afeto? Músicos responderão a essa provocação com um depoimento e uma playlist. Desta vez, fala o violonista Edson Natale.


Edson Natale | imagem: Renê de Paula

O que pode um violão? Um violão pode ser um estilingue que nos atira em direção a nós mesmos para nos desvendarmos nele; é um labirinto do qual não nos afastamos e nem queremos sair. Representante sonoro das madeiras, lança raízes através dos tempos, se entranhou pelo Brasil até ser capaz de traduzi-lo. Pode ser bálsamo para dores sutis ou um elixir encorajador de amores. Para mim o violão foi a chave que alterou a rota de meus caminhos, apresentou-se como um mistério a ser desvendado eternamente; cúmplice dos meus silêncios, anseios e afetos. Um violão tece amizades e pode abrigar e ser cúmplice de criações serenas, amorosas ou raivosas. Um violão pode prescindir de palavras (sobretudo destas) porque se basta quando vive em parceria com quem o conduz ou, às vezes, é conduzido por ele.

Sobre as músicas escolhidas:

Desvairada – composta pelo incrível Garoto (Aníbal Augusto Sardinha), essa versão de “Desvairada” está em um disco que reúne outros dois imensos violonistas: Raphael Rabello e Dino 7 Cordas. Os três fazem parte da história do violão brasileiro, sem sombra de dúvida. Essa interpretação sempre me impressionou e, da primeira vez que a ouvi, não consegui fazer outra coisa a não ser reouvir, reouvir e reouvir; ora pensando no processo e circunstância em que Garoto compôs uma peça tão bela e desafiadora, outras vezes pensando em como teriam sido os ensaios, a definição do repertório e as conversas entre Raphael e Dino. Aproveito para sugerir que vejam o documentário Garoto, vivo sonhando, de Rafael Veríssimo, Lucas Nobile e Henrique Gomide e leiam o livro Raphael Rabello: o violão em erupção, de Lucas Nobile.

La Catedral – essa música me arrebatou desde a primeira vez que a ouvi, na década de 1980, quando comprava discos pelo correio, ia buscar na agência e voltava pra casa a pé, manuseando o vinil e imaginando o que poderia existir ali, naqueles tempos “pré-internéticos”. Era um LP de Turíbio Santos, lançado pela gravadora Kuarup. Anos depois me aprofundei na história do compositor desta e de outras obras, o estupendo violonista paraguaio Agustin Barrios Mangoré. Escolhi essa belíssima versão de Berta Rojas, paraguaia como Agustin.

Summertime – porque essa versão da Rosinha de Valença é simplesmente arrebatadora. A obra violonística de Rosinha é imensa, não é à toa que consta na lista da The 250 Greatest Guitarists of All Time, da edição americana da revista Rolling Stone, que apontou os 250 maiores guitarristas de todos os tempos, no mundo. Nesta lista constam apenas dois brasileiros, Rosinha e João Gilberto. Além deste disco, Rosinha gravou o primeiro LP, em 1964, pela Elenco, o Apresentando Rosinha de Valença, seguido por outros como Sivuca & Rosinha de Valença – Ao Vivo e Um violão em primeiro plano. Infelizmente sua carreira foi interrompida por uma parada cardiorespirátoria que a deixou em estado vegetativo por longos 12 anos.

Ausência – porque é sensível, delicada, poética, e porque me faz lembrar deste grande amigo, que tanto me ensinou. Acompanhei, no final da década de 1980, o profundo mergulho de André para a concepção deste álbum – Solo – o primeiro álbum duplo de violão gravado no Brasil. Quando digo acompanhei, devo citar que foi um acompanhamento à distância, porque André se fechou e mergulhou sozinho durante meses e, quando voltou, trouxe esse álbum. Foi instigante quando ouvi, pela primeira vez, as incríveis possibilidades que as afinações diferentes poderiam dar ao violão, mas André foi além e mergulhou também em possibilidades e interpretação, dinâmicas, composições e registros primorosos. Recentemente André publicou um livro digital que conta a história toda e que se chama Solo: A história do primeiro álbum duplo de violão no Brasil.

Mediterranean Sundance / Rio Ancho – o disco foi gravado ao vivo e reuniu dois de meus maiores ídolos no violão, Paco de Lucia e John McLaughlin, além de Al Di Meola. Foi este um dos dois trios de violão muito importantes para a minha vida, os quais foram referência quando criamos o Grupo Dharana, quarteto instrumental com o qual gravamos dois discos – o outro foi o D’Alma, trio brasileiro de violões que gravou três LPs, dois deles pela histórica gravadora Som da Gente, que marcou época na história da música instrumental brasileira dos anos 1980 e 1990. O fato é que ouvir estes trios explodiu minha cabeça e me impulsionou a me dedicar mais à música.

Melodia Sentimental – são inúmeras as gravações dessa obra de Villa-Lobos e Gabriele Leite a desvendou a seu modo, algo que me chamou muita a atenção e despertou minha admiração e curiosidade para saber mais sobre esta jovem violonista que, quando tinha sete anos de idade, em Cerquilho, no interior de São Paulo, começou a brincar que um cabo de vassoura era um violão imaginário. Pronto: de maneira resumidíssima e muito poética, foi assim que tudo começou… A trajetória e o talento da jovem violonista impressionam: é formada em música pelo Instituto de Artes da Unesp, mestre em performance musical na Manhattan School of Music (Nova York/EUA) e doutoranda em performance musical pela Stony Brook University. Em 2022 recebeu o prêmio Segovia e Rose Augustine, pela Manhattan School of Music. É sempre bonito ver, ouvir e acompanhar como a música (e o violão) se renova a partir de talentos como Gabriele…

Alemande – porque Sebastião Tapajós navegou seu violão amazônico pelas trilhas do mundo e deixou sementes frondosas por onde passou. O violonista e compositor paraense andou um bocado pelo mundo desde que nasceu dentro de um barco que cortava as águas do rio Surubiu, entre as cidades de Alenquer e Santarém, no baixo Amazonas, em 1943. Estudou tanto violão tocando nas margens do rio que o incorporou ao seu nome: Sebastião Pena Marcião tornou-se internacionalmente conhecido como Sebastião Tapajós. Lá pelas tantas, ainda adolescente, convenceu o comerciante Sebastião Carvalho Marcião, seu pai e primeiro professor de violão, a deixá-lo seguir para a capital paraense para estudar música; em Belém integrou o conjunto Os Mocorongos e depois fundou o Sebastião Tapajós e seu Conjunto para ganhar a vida enquanto estudava música incansavelmente até receber a bolsa de estudos que o levou para Lisboa, onde estudou no Conservatório Nacional de Música, marco de sua vitoriosa carreira internacional, de inúmeros concertos e participação em festivais pelo mundo inteiro como solista ou ao lado de músicos como Paco de Lucia, Oscar Peterson, Astor Piazzola, Baden Powell, Paulo Moura, Sivuca, Hermeto Pascoal, Maria Bethânia, Maurício Einhorn, Paulinho da Viola e Zimbo Trio, entre outros. Entre os discos que gravou estão Guitarra Fantástica, Guitarra Latina, Terra, Guitarra Criolla, Clássicos da América do Sul, Xingú e dois belíssimos discos que gravou com Pedro dos Santos (Pedro Sorongo) em Buenos Aires, os álbuns Sebastião Tapajós e Pedro dos Santos, volume I e II.

Feira de Mangaio – porque amo essa música de Glorinha Gadelha e Sivuca desde a primeira vez que ouvi, com interpretação da Clara Nunes. É uma música feliz, com uma construção poética tão visual que, quando ouço Clara Nunes cantar, sempre passa um filme na minha cabeça: colorido, feliz, muuito brasileiro. Muitos músicos, além de Clara e do próprio Sivuca, já gravaram, como Radegundis Feitosa, Mestrinho & Nikolas Krassik, Duo Siqueira Lima, Trio Corrente, Yamandú Costa & Dominguinhos e Virgínia Rosa. Essa versão violonística do Zé Paulo Becker é linda e me impressiona como ele conseguiu colocar tudo isso dentro de um único violão…

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Edson Natale é músico, escritor e jornalista. Seu álbum mais recente é A Egípcia e o Mecânico (2022), tendo também lançado Âmbar – Os Afluentes da Música (2020) e Calvo, com Sobrepeso (2018), entre outros.

Ouça também as demais playlists publicadas na Úrsula.

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