Belchior canta o método científico

Com estrutura de artigo científico, um conto sobre a amizade entre o método científico e a imaginação de um aspirante a pesquisador

Darwin atravessa a Via Láctea e leva uma multa. Custo: um poema | imagem: IA Bing

Método Belchior: o diálogo entre a alucinação do desejo de pesquisar e o método científico

Antonio Carlos Nascimento Neto

RESUMO

Para a pesquisa científica o método é essencial pois sem método não há pesquisa e consequentemente não há ciência. O presente texto parte da problemática de como é trabalhosa a apreensão do pesquisador às exigências do método. Tem como objetivo demonstrar que pesquisador e método, em uníssono, são os responsáveis pela beleza da ciência. Utiliza do absurdo proporcionado pelo realismo fantástico para criar um diálogo entre o autor e o compositor e cantor Belchior sobre a temática proposta. Discute, com o auxílio dos seus personagens, como o método, apesar de sua estrutura simples (porém intrincada), é capaz de derrubar os muros da má-ignorância. Conclui que o método é para todos; àqueles que desejam fazer pesquisas, àqueles simplesmente curiosos e àqueles que usufruem dos resultados científicos visíveis e nem tão visíveis assim.      

Palavras-chave: Método, Belchior, Ônibus das estrelas. 

1. Introdução

“O ato da imaginação […] é um ato mágico. […] um encantamento destinado a fazer aparecer o objeto no qual pensamos, a coisa que desejamos […]. Nesse ato há sempre algo de impiedoso e infantil, uma recusa a se dar conta da distância, das dificuldades.”

– Jean-Paul Sartre  

Quando criança, se a memória não pregou peças, lembro que um dos primeiros livros que li sozinho foi O ônibus das estrelas, de Martin Oliver, da coleção Salve-se quem puder. A coleção é composta pelos clássicos da sessão da tarde literária que encantou tantas crianças em processo de alfabetização. Todavia, aquele ônibus mágico estacionou não apenas na memória cognitiva, mas também no espírito e no coração. Dentro daquele ônibus amarelo que voava pelo cosmos era possível ver, enxergar mesmo, os gases estelares, formas de vidas diferentes (sim, no plural), o silêncio colorido da escuridão do universo. Surfar nas ondas de calor do Sol, pensei, é possível? Um carro, elucubrei, por ser menor que um ônibus, consegue voar? Dá para respirar, com o entusiasmo da descoberta de coisas novas, em outro planeta? As perguntas, assim como eu, ficaram menos verdes, espero, com o passar do tempo. 

Rádio ligado; hoje, surfo no asfalto a caminho da primeira aula de uma disciplina do programa de pós-graduação no qual entrei. Não estou em um ônibus; estou no meu Fiat Uno preto, modelo 2007, carinhosamente apelidado de Darwin (sua placa começa com DWN). Ele ainda não sabe voar. E, se considerarmos outra cidade como outro planeta, espero que o entusiasmo não me mate sufocado. Mas algo incomoda, perturba, inquieta, acossa, estorva, constrange meus pensamentos. Como se estuda, ou pesquisa, como se faz um mestrado? Será que vou conseguir fazer? Me disseram que se eu confiar no método científico tudo dará certo, mas quem, ou o que, é esse trem? Putaquepariu, no que eu fui me meter?

Mas trago, de cabeça, uma canção do rádio
Em que um antigo compositor baiano me dizia
Tudo é divino, tudo é maravilhoso”

— Método científico; duas palavras diferentes unidas por um hífen invisível capazes de causar espanto em 20 de 10 pessoas que desejam seguir pela estrada da pesquisa. Pesquisa científica também são duas palavras diferentes unidas por um hífen invisível; porém, causam euforia e alimentam o desejo de 20 entre 10 pessoas que desejam voar sem asas por suas próprias ideias. 

— Oi? Quem fala?

Olho para o lado e lá está ele. A primeira coisa que me salta aos olhos é seu bigode. Sapato preto, calça jeans, suspensório, camisa branca com listras pretas. E volto ao bigode. Maior que o bigode, apenas o sorriso. Olhar sereno, voz forte, calma, carregada de vida e poesia. Confie no método, disse ele, olhando e sorrindo. Pergunto: e por que confiar no que considero um problema? Ora, ele responde, são os problemas que nos levam às respostas hipotéticas. As hipóteses, bem argumentadas, com seus objetivos traçados, nos levam, e também nos trazem, à metodologia, à maneira como fizemos o trabalho, que vamos entregar aos nossos leitores. Bem explicada, bem fundamentada, a metodologia indica o caminho, através dos seus resultados, e pela discussão desses resultados, o leitor aterrissa em nossa conclusão, ou até, quem sabe, em nossas considerações finais.

— Antes de qualquer coisa, qual o seu nome? – pergunto, sem espanto, àquela representação de professor.

— Antônio Carlos Belchior, ele responde. Continue dirigindo, vou ajudar você. Mas, antes, vendo aquela placa, não muito longe, com uma seta apontando para o alto? vendo que a estrada atrás dela, sobe? Entra lá.

— E para onde ela leva?

— Para o encontro da imaginação, da ideia, de um possível futuro pesquisador com o método científico.

2. A ideia 

“[…] é preciso perceber que o conhecimento empírico […] envolve o homem sensível por todas as expressões de sua sensibilidade.”
– Gaston Bachelard

— Belchior, agora que estamos subindo pela estrada, aliás, antes, uma observação: linda paisagem essa, não tenho lembranças de ter imaginado que o céu poderia ter tons de verde entre o azul claro debaixo das nuvens e o azul turquesa acima das nuvens. Voltando ao assunto… você pode me dizer como se dá esse encontro da imaginação, da ideia e do pesquisador? 

“Como Poe, poeta louco americano
Eu pergunto ao passarinho
Assum preto, pássaro preto, blackbird, o que se faz?

— Observar é ação natural e intrínseca ao cotidiano de qualquer pessoa. O olhar atento que repara nas minúcias das relações dos fatores bióticos e abióticos, que percebe as influências culturais na arte, que nota a diferença entre as construções erguidas nas cidades etc., é o tipo do olhar daquele que procura o caminho de uma possível resposta, ou respostas, para a pergunta, ou, quiçá, perguntas, de suas próprias experiências com a realidade.  

E continuou cantando como o corvo de Poe…

— Subjetivas, as ideias constroem suposições apenas por construir, ausente de lógica ou ordem, sendo de difícil explicação até para a própria pessoa pensante. Idealizar não é errado, muito pelo contrário, é na imaginação, no senso comum, que a pessoa pensante encontra sua motivação para começar, continuar, recomeçar, renovar, finalizar os estudos.

— Olha, escutando parece fácil. Colocar isso em prática é outra coisa… – digo enquanto observo o azul turquesa ganhar tons mais escuros conforme Darwin chegava mais perto da exosfera.

— De certo modo, de alguma maneira, ao seu modo, a imaginação vai ser educada. Educação essa que nada mais é que a organização, de forma sistemática, estruturada, das suas ideias. A ação de educar a imaginação, no sentido de fazê-la uma desafiadora da mecânica caótica das ideias é, internamente, consigo mesmo, entender que um novo conhecimento só é gerado com a honesta apreensão e criticidade para com os conhecimentos anteriores; essa relação entre o anterior e o agora será fundamental na construção de um possível, e, quem sabe, novo, conhecimento.

— Deixa eu ver se entendi: você disse que o início da construção do conhecimento se dá quando o pesquisador cruza essa linha imaginária entre o senso comum e a ciência e utiliza um sistema de organização sistemática para ordenar as informações obtidas através de conhecimentos prévios do pesquisador ou da área de conhecimento do mesmo. Mas como se dá essa passagem?

— Ora jovem rapaz latino-americano, para tanto, a ciência confiou ao método a estrutura da comunicação entre os conhecimentos anteriores e posteriores a você. Isso, em bom português, quer dizer: leia quem escreveu antes de você e escreva depois de ler. Por mais que hoje você tenha acesso às mais incríveis tecnologias de vídeo e áudio, a leitura é a verdadeira imagem, o verdadeiro som do encontro de uma ideia, de um conhecimento que era, foi,  jovem novo e hoje pode ser considerado antigo. Mas o valor do conhecimento, o verdadeiro valor do conhecimento, não é apagado pelo tempo. Leia, o que você gosta e o que você detesta.

— Ah!, o espaço! – grito de alegria.

O espaço! | imagem: Bing IA

3. O método

“É a estrutura das relações objetivas entre os agentes que determina o que eles podem e não podem fazer.”
– Pierre Bourdieu

— Como são lindas as constelações. Como são belos os movimentos das nuvens e dos mares vistos aqui de cima. E como é bom dirigir sem trânsito. Mas você ainda não me explicou o que é esse tal de método. Para mim ainda é apenas uma regra, algo a ser seguido pura e simplesmente para alguém dizer que estou errado.

“Você pode até dizer
Que eu estou por fora
Ou então
Que eu estou inventando

— Uma vez ganhei, de um casal amigo meu, uma matriosca, boneca folclórica russa. Mas ela era diferente. Ela era bem pequena, sem pintura nenhuma. E também não havia bonecas maiores para serem postas uma por sobre as outras para aumentar seu tamanho. Meus amigos disseram: pinte a primeira, com a cor que você desejar, mas uma estrela deve ter nessa diminuta figura, uma estrela deve lhe guiar. E foram embora.

— E o que você fez?

— Pintei suas vestes de verde escuro, laranja, roxo e vermelho. O rosto pintei com cor de chão de terra. E pintei uma estrela na parte de trás. Amarela como o Sol. E toda vez que meus amigos me visitavam traziam uma boneca maior para eu ir colocando as menores dentro. As vestes e os rostos continuavam com a mesma cor, porém, o número de estrelas aumentava a cada nova boneca. E cada estrela passou a representar cada passo que eu dava na construção da matriosca. E eu não imaginava, não pintava as estrelas de qualquer jeito. Eu lia como eram as estrelas de outras pessoas, eu via como eram as estrelas de outras pessoas, eu ouvia como eram as estrelas de outras pessoas. E minha matriosca foi crescendo de dentro para fora. Até que ficou pronta. Assim o método é, como uma matriosca.

— E onde está a sua matriosca? Fiquei cheio de interesse em conhecê-la!

— Está aqui, no porta-luvas do carro. Sugiro que você a veja depois de estacionar. Não desejo que você cause um acidente interestelar. Mesmo porque seu destino final é logo ali, depois daquela placa perto da Lua, vendo?  Aquela com a seta para baixo. 

4. O retorno

“Você desenhou e fixou essas palavras em peles de papel […] Agora desejo que elas se dividam e se espalhem bem longe, para serem realmente ouvidas.”
– Davi Kopenawa

Antes de entrar no trecho final da estrada diminui a velocidade, pois, juro, com todas as palavras possíveis que contemplam o significado de jurar, que vi o Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, acenar para mim e Belchior enquanto viajava pelo cosmos com sua rede de capturar cometas. E como era bonito o cometa que ele pegou carona! Mas como nem tudo são lindas nebulosas, tomei uma multa do Carimbador Maluco (Raul Seixas em sua espaçonave em forma de pirâmide), pois infringi as regras do trânsito cósmico: carros não são permitidos no espaço. Apenas foguetes, cometas, satélites, discos voadores e ônibus amarelos são permitidos (eu sabia!).

O valor da multa? Uma poesia. Belchior pagou. E descemos de volta à Terra.

Quero desejar, antes do fim
Para mim e os meus amigos
Muito amor e tudo mais
Que fiquem sempre jovens
E tenham as mãos limpas
E aprendam o delírio com coisas reais

— Lembre-se, meu jovem, não tenha medo do método. Ele o ajudará no caminho do estudo, da pesquisa, do compartilhamento do conhecimento. Agora, eu fico por aqui. Lá, naquela aurora boreal. Marquei ali, às três, com Elis e Tim, e não posso faltar. Obrigado pela carona. 

Ali ele ficou. A descida, assim como a subida, foi tranquila. No rádio, agora, em vez de música, escuto a previsão do tempo. Super Lua e chuva de meteoros, previstas para quinta-feira. Fico pensando se há um observatório por perto. Só um pensamento de passagem enquanto estacionava Darwin em nosso destino. O estacionamento da Unesp de Marília. Antes de descer do carro e ir para a aula me lembro da matriosca que Belchior deixara no porta-luvas. 

Com um suspiro, abro o porta-luvas, e, vejo, com um sorriso, meu projeto de mestrado.

5. Considerações finais

A maior dificuldade de assimilar o que é o método científico é que cada pessoa com a qual você irá conversar na tentativa de entender o método irá explicar de uma maneira diferente a mesma coisa. O mais importante é você apreender que o método é uma estrutura. Uma estrutura permissiva à construção. Um passo a passo. E a melhor maneira de realizar uma boa construção é a prática.

Leia, pratique, leia, treine, leia, escreva, leia. E escreva com o foco no leitor. Apresente seu trabalho ao leitor – o tema que você irá trabalhar no texto, o problema que o levou a querer fazer o trabalho, a hipótese que você pensou para resolver o problema, o(s) objetivo(s) que você pretendeu atingir; apresente ao leitor, por meio das citações, quem você leu; apresente ao leitor como você fez o trabalho;  mostre ao leitor os resultados; discuta os resultados com seu leitor e, por fim, conclua o trabalho. Se o leitor conseguir entender e replicar o que você disse, ora, você fez um trabalho bem feito. Lembrando que essa replicação não quer dizer, apenas, construir um ônibus amarelo ou um foguete; essa replicação também pode ser através da arte, da filosofia, da biologia, da geografia, da história, da química, da matemática, ou seja, de qualquer área do conhecimento.

O método não é inimigo da pessoa que possui o desejo de seguir com os estudos após o ensino médio ou após o ensino superior. O método não é censor da criatividade. Muito pelo contrário, ele é o agente educador da imaginação, aquele que permite à pessoa organizar suas ideias e permite que elas fluam pela escrita de maneira clara, sem perder a lógica. O método é o melhor companheiro de estudo do sujeito, aquele que tem a capacidade de metamorfosear o pensamento em palavra, na forma da descrição de cada passo do caminho percorrido do estudo. O método não é inimigo de ninguém.

Se você deseja expandir seu universo, ver o que não é possível ver sozinho, possuindo ou não possuindo o interesse pela pós-graduação (e tudo bem), tome carona com o método. No mínimo ele vai lhe ajudar contra a desinformação e as fake news. No máximo ele irá lhe guiar em retornar à sociedade melhorias e conhecimentos. O método é para todas as pessoas, pois a ciência é para todas as pessoas. Tanto as pessoas de dentro como as pessoas de fora dos muros acadêmicos. 

Juntos, todos nós, podemos, vamos, conseguiremos derrubar o muro.

Autor

  • Meu diploma diz que sou biólogo. Minha curiosidade sobre documentação me disse para procurar a graduação de Biblioteconomia. O futuro imaginado vislumbrou um biobliotecário. Enquanto o futuro não chega, você pode me encontrar na Biblioteca Central César Lattes da Unicamp (eu trabalho lá!) para conversar sobre o que você quiser, sou muito curioso (e às vezes não falo tanta bobagem).

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