A Nova Eugenia: Um Futuro ‘Melhor’ ou Com Menos Diversidade?

Quem decide o que é doença e que genes devem ser valorizados?

imagem: yumikrum

Ultimamente tenho visto uma disseminação de propostas para revisar a ideia de eugenia, pretendendo reabilitá-la enquanto algo benéfico para a população como um todo. Isso não é exatamente recente, mas tem me parecido que essa discussão ganhou mais força. Penso que isso precisa ser criticado, porém não apenas rejeitado prontamente como ideologia de ódio racial, porque isso não seria efetivo – seus proponentes já falam de algo que sabem ser amplamente reprovado, não vai ser mais reprovação que os irá impedir; e eles justamente reclamam de preconceito e julgamentos precipitados, se colocam como injustiçados. Para ser ouvida, uma crítica precisa adentrar com caridade interpretativa na visão deles, e mostrar que ela, mesmo em sua melhor versão, é algo que precisa ser criticado e negado.

Os defensores dessa ideia explicam que, embora historicamente as políticas de eugenia tenham sido associadas a grupos racistas que perpetraram com base nisso ações sociais terríveis, ainda assim esse ideal não necessariamente segue esse caminho. O foco seria o melhoramento genético da humanidade, porém dentro de uma visão não-racista, que não implique seleção racial. A proposta deles, a qual tentam colocar de modo muito mais atrativo, é de, por exemplo, eliminar doenças que possuem causas genéticas. Não é só isso que defendem, mas “curar” doenças é a bandeira mais simpática que eles têm pra mostrar, e muitas pessoas ficarão tentadas a concordar que por ser algo bom diminuir a quantidade de enfermidades  e que, então, eugenia pode ter por isso uma versão positiva.

“Vejam como somos bons, queremos que não haja mais doenças, o resultado seria um mundo melhor para as pessoas do futuro”, diria um entusiasta. Tem apelo. “A gente poderia acabar com o câncer” soa muito bom.

E muitos de fato acreditam nisso, vamos encontrar gente equivocada, não apenas os mal-intencionados. Só que mesmo quando munidos das melhores intenções, fora dessa bandeira da saúde há outros pontos que não pegariam tão bem. Muitas vezes a ideia de melhoramento genético vai defender que se passe para frente genes associados à inteligência ou a outras qualidades. Isso chega perigosamente perto da eugenia “do mal” de querer que só pessoas com certas características se reproduzam, mas se limita a uma defesa de modificação e seleção genética em embriões com genitores voluntários. O mote é que, dada a tecnologia genética avançada, seria perfeitamente razoável os pais escolherem por si mesmos, com sua própria liberdade, modificar geneticamente seus filhos para que tenham características mais vantajosas. Seria pela felicidade dos pais e mesmo de seu futuro filho. Dentre os genes disponíveis do pai e da mãe poderiam utilizar os mais propícios. Mesmo sem técnicas de edição genética como o CRISPR (tecnologia que permite modificar diretamente um gene específico), uma clínica de reprodução poderia preparar dezenas ou centenas de embriões, e selecionar aquele com a melhor genética para iniciar uma gestação. Tudo de acordo com as liberdades individuais e acesso a conhecimento e tecnologia. Mas e se os critérios desses pais não forem muito louváveis?

Ética e tecnologia

É razoável pensar na importância de defender a liberdade de pais nesse sentido. De modo geral, uma ação que não traz malefícios para outras pessoas não deve ser reprimida. Não apenas escolhas sobre os filhos pensando em sua felicidade, mas em muitos casos a seleção genética se dá por meio do aborto, que, socialmente muito rejeitado, é também entendido em meios progressistas como uma liberdade essencial da mulher. No caso, algumas condições ou doenças podem ser identificadas antes do parto, o que faz com que seja possível interromper a gravidez para evitar sofrimento, selecionando com isso a gestação que se queira levar a termo. E um dos principais argumentos de um defensor da nova eugenia vai ser mesmo sobre a liberdade dos pais. 

Agora, supondo que um uso indiscriminado dessas tecnologias possa dar um amplo poder de escolha aos pais (ou ao menos àqueles com dinheiro para pagar, já que algumas dessas técnicas citadas serão um mercado lucrativo), não deve demorar muito para alguns ricos com a mentalidade preconceituosa – bem conhecida por existir em vários meios de elite – decidirem que é importante que seus filhos herdem e expressem a genética dos olhos azuis. Já não soa tão bonzinho quanto curar o câncer. 

Quando abordamos as questões éticas envolvidas no uso de alguma aplicação tecnológica, muitas vezes se pensa superficialmente na ciência e tecnologia como sendo um agente totalmente isento nessa questão. Já que a pesquisa científica se baseia em um método científico e em dados empíricos, então a ciência seria – juntamente com suas aplicações – um instrumento neutro, que não se deveria questionar. Alguns vão mais longe e pensam que toda tecnologia é boa e deveria ser empregada. Isso não é o caso. É preciso se aprofundar no tema para entender as implicações éticas e sociais desse conhecimento. Quando uma pesquisa é feita, ela já parte de uma estrutura social, como universidades e laboratórios particulares, que a realiza e que possui valores, e ela é motivada por esses valores. Não podemos pensar que uma tecnologia genética seja neutra em todos os sentidos porque quem a desenvolve o faz por seus valores, quem a financia também sustenta os seus etc. Mas seria a ciência apenas uma atividade movida por interesses escusos e impregnada de valores em cada passo?

O filósofo Hugh Lacey estuda o assunto e entende que não. Ele explica que a forma como a ciência se relaciona com valores é diferente nas várias etapas do seu processo. E, por isso, só pensá-la como sendo ou não neutra em sua totalidade distorce a questão. Lacey aponta três ideais principais que norteiam a ciência na sua relação com valores em diferentes momentos. A atividade científica pode ter ou não autonomia em relação a valores e interesses externos já quando o tema da pesquisa é escolhido e na forma como ela é executada. E ela deve ter imparcialidade na sua metodologia, ao recolher dados empíricos, de modo que na etapa de avaliação da validade de uma teoria valores sociais não interfiram (somente critérios cognitivos). E geralmente não tem neutralidade em sua aplicação. A forma como aplicamos os resultados da ciência não é neutra, e os valores que regem essa aplicação estão relacionados com as motivações que levam a pesquisa a ser feita. Ou seja, o final desejado afeta o começo do processo, e deve ser debatido e questionado se for nocivo. Mas é importante notar que o entendimento dessas etapas como separadas preserva ainda a ciência como imparcial (epistemologicamente), mesmo que não seja neutra em sua aplicação. A ciência lida com a natureza de forma objetiva e ainda assim uma pesquisa ou aplicação tecnológica pode ser indesejada.

Quando pensamos em tecnologias de seleção genética temos que entender como se relacionam com seu meio social. Não são pesquisas neutras, mas motivadas por diversos valores, como: interesse financeiro das empresas do setor; crenças e desejos sobre o que é um humano “melhor”, que deveríamos preferir para reprodução; motivações genuínas em saúde, não se pode negar; e mesmo a valorização do desenvolvimento do conhecimento humano como um todo. O ponto mais relevante aqui é o valor sobre o que seria um ser humano “melhor”. Nesse ponto se elenca – de acordo com os valores específicos do grupo que detém o poder daquela tecnologia – diversas qualidades desejadas, como mais inteligência, mais capacidade física (resistência, força etc.), maior desempenho social, entre outras medidas do que seria “melhor”. Esse tipo de categorização já cria por si só uma hierarquia que diferencia traços genéticos como superiores ou desejados e consequentemente também as pessoas que carregam esses genes. E para haver um superior tem que haver um inferior.

E isso sugere que deveríamos selecionar os humanos, por exemplo, entre mais ou menos inteligentes, sendo os últimos indesejados, e suprimidos (em sua genética) pelas novas tecnologias. Será que os pequenos grupos que detém essa tecnologia deveriam poder julgar desse modo os menos inteligentes? Nós teríamos coragem de declarar essa hierarquia face a face com essas pessoas? E não vamos esquecer da escolha dos olhos azuis. Com a tecnologia disponível é fato que isso irá ocorrer. Os pais possuindo o poder e no gozo de suas liberdades de escolha vão selecionar entre várias características ligadas a saúde e habilidades também esses traços de aparência, que serão selecionados do modo “inocente” entre muitos outros na genética disponível. E isso, ainda que indireto e restrito àquela família, constitui em sua preferência discriminatória uma forma de racismo inaceitável.  

As doenças em disputa

Atentemos agora ao lado mais positivo: os defensores da nova eugenia pregam o melhoramento pela extinção de doenças. Mas o que eles consideram doenças? Vários tipos de deficiência poderiam ser controlados geneticamente. Mas doença e deficiência são o mesmo? Devem ser igualmente suprimidas? De fato, é comum que se defenda abertamente que temos que erradicar a síndrome de Down, pois seria uma condição que traria muito sofrimento para os pais e para a criança. Com as tecnologias atuais de diagnóstico e controle genético/reprodutivo talvez já estaríamos no limiar de um mundo sem pessoas com deficiência de nascença. Num cenário em que nossa sociedade se preocupa cada vez mais com inclusão e acessibilidade essa ideia choca. Ou pelo menos choca a maioria (e deveria chocar a todos). É mais fácil, ao que parece, simplesmente impedir a existência do que incluir.

Veja também:
>> “A vida é um fenômeno coletivo: um resenha de Por uma pedagogia da cura“, por Antônio Neto

Doenças e deficiências não são a mesma coisa. Curar uma doença é algo sem muita polêmica no geral. Por exemplo, eliminar uma infecção e trazer um bem-estar. Ainda que num aprofundamento teórico da questão não seja tão simples definir uma doença e isso envolva questões sociais, no caso da deficiência a problemática é muito mais clara. Uma deficiência não é curada, é uma condição, geralmente permanente, que acompanha a pessoa, e que exige apoio social para garantir acessibilidade, reduzir as dificuldades que se apresentam. Atualmente existem organizações de pessoas com deficiência e um debate avançado sobre como essas condições têm aspectos não apenas fisiológicos. Prefere-se uma concepção social da deficiência, tendo em vista que o que limita as habilidades da pessoa com aquela alteração fisiológica é determinado pelo meio social em que ela vive. Numa sociedade com plena acessibilidade, àquele indivíduo não é algo que se precise “curar”, pois ele pode viver sem entraves.

No entanto, a luta por acessibilidade, ainda que tenha avançado muito, é uma pauta difícil e ainda muito precarizada. Há muita resistência e falta de empenho em fazer a inclusão, e mesmo sem adentrar em debates de renovação de eugenia, muitas pessoas parecem querer soluções fáceis. É comum hoje em países da Europa que, tendo o diagnóstico precoce e com o acesso livre ao aborto, pais escolham abortar filhos com síndrome de Down. De fato, a Islândia praticamente erradicou os nascimentos de bebês com esta condição. Aqui o caso é mais complexo e pode inclusive fazer bem mais sentido para muitos progressistas. É importante por exemplo pensar na liberdade da mulher com seus direitos reprodutivos garantidos pela lei local, e na escolha pelo bem-estar desses pais. Afinal, a mãe é livre para fazer o aborto, certo? Essas questões podem se tornar muito complexas, porém ainda assim há uma discriminação em curso. De fato, embora pensando pela ótica da liberdade feminina tenhamos muito mais em jogo, ainda assim se trata de selecionar nascimentos que tenham características mais desejáveis. Claro, não é mera questão de vaidade ou ideologia de melhoramento, já que um filho com deficiência é algo que afeta absolutamente a vida de uma mãe, existindo toda uma questão social de uma rotina sobrecarregada para a mulher e falta de apoio de sua comunidade. Além de que é apontado que a pessoa com Down possui comorbidades relacionadas (especialmente problemas cardíacos) e uma expectativa de sobrevida baixa. Ainda assim, existem organizações representando as pessoas com essa condição, e mesmo pessoas com Down estão se manifestando e se opondo: querem sobreviver enquanto grupo.

O caso do autismo  

Eu tenho uma ligação bem pessoal com esse debate. Tenho um diagnóstico tardio de autismo de nível 1. Esse tipo de autismo acarreta uma condição menos perceptível (e que muitas vezes fica sem diagnóstico por boa parte da vida), trazendo limitações menores, mas ainda muito marcantes, e que, sem o acompanhamento adequado e sem medidas de acessibilidade, podem causar muito sofrimento. Acontece que dentro da nova proposta eugenista o autismo também seria um dos casos de “doenças” (na verdade, é um transtorno do desenvolvimento, e legalmente enquadrado como deficiência no Brasil) a serem extirpadas. E autistas, assim como diversos outros grupos com deficiência, não entendem sua condição dessa maneira. Entendem que possuem características únicas e modos de viver e de perceber o mundo que devem ser valorizados, não sendo piores que os modos de vida convencionais. Eles não querem desaparecer, e não querem que seu modo de existir no mundo desapareça. Concluir que é preciso cautela antes de pensar em fazer grupos inteiros deixarem de existir deveria ser óbvio. Deveria ser óbvio que a questão não é simples ou banal. Mas os entusiastas da nova eugenia, dentro de uma perspectiva ética particular que os leva àquelas crenças, entendem que seu ponto é que é óbvio, afinal, eles querem um futuro melhor para todos.

Negligenciando todos os problemas éticos, tem se tornado muito comum ver esse discurso vindo de pesquisadores, divulgadores de ideologia, e mesmo alguns autistas frustrados com sua condição: o discurso de que temos que eliminar o autismo. A ideia é que seria um transtorno que causa muito sofrimento para o próprio autista e dificuldades para os pais (muito semelhante ao Down). Um ponto a se colocar já de saída é que, dentro da perspectiva da ética normativa, a eugenia só funciona tão facilmente como proposta se partirmos de uma visão utilitarista (uma das teorias éticas; desenvolvo melhor abaixo), ignorando outras posições teóricas na ética e outros valores. Se pensarmos na perspectiva da dignidade de grupos de minoria, ou da importância da diversidade, já encontramos maiores problemas éticos. 

Um ponto relevante a se discutir é quem decide o que é doença ou indesejável e quais genes devem ser valorizados. Isso é definido segundo determinados modelos de sociedade ou de cultura; o que é problema em um pode não ser em outro. A nova eugenia defende propagar indivíduos que se adequem ao seu modelo e eliminar os que não. Na visão do autista, por exemplo, é comum que muitos que tenham o transtorno no nível 1 ou 2 não o vejam como algo negativo ou o considerem apenas parcialmente negativo. Existe toda uma luta pela pauta da neurodiversidade, pela aceitação daqueles que possuem estruturas cerebrais diferentes e que afetam o seu comportamento e leva a exclusão social. O autista percebe o mundo de modo diferente, pois seus sentidos variam em intensidade, sendo alguns mais intensos que da população comum (isso depende de indivíduo para indivíduo, alguns possuindo hipersensibilidade na audição, outros no tato, etc) e outros menos intensos. Além de seu pensamento ser mais concreto que o de um não-autista, levando a entender coisas de forma mais objetiva (e por vezes com uma forte literalidade). A mente do autista é única, e eu como autista nível 1 considero que seria uma perda terrível para o mundo a extinção do autismo.

Note que antes de ser uma questão simples ou reclamação vazia partindo de uma visão subjetiva, temos base empírica e histórica para reconsiderar uma exclusão do autismo. Um estudo recente mostrou que durante a nossa evolução o autismo não foi excluído pela seleção natural, pelo contrário, ele foi positivamente selecionado! Isso ocorre porque (o estudo aponta) os mesmos genes que em certas manifestações levam ao autismo estão também relacionados com maior inteligência. Embora nem todos os autistas tenham inteligência acima da média (ou mesmo superdotação/altas habilidades), há uma incidência maior desse aspecto entre autistas. De fato, se você buscar na história do pensamento, você vai ver que muitos filósofos e cientistas eram vistos como “estranhos” e tinham uma série de características que são hoje entendidos como evidências de autismo ou até de outro tipo de neurodiversidade. Ainda que não se possa ter certeza de diagnósticos em casos históricos, há indícios de que pessoas com essa condição ou pelo menos com traços próximos contribuíram muito com conhecimento para a humanidade. Não é exagero dizer que sem o autismo nós teríamos perdido a maior parte de nosso avanço.

Critérios éticos

Fazendo aqui um adendo, é preciso explicar um pouco a base que temos para tomar decisões em assuntos difíceis. Ao avaliar uma situação e decidir pela ação certa ou errada nos baseamos numa área de pesquisa da filosofia chamada de ética. A pesquisa em ética tem muitos ramos diferentes, e o ramo que tenta entender os critérios para se julgar comportamentos é a ética normativa.

Veja também:
>> “The Last of Us e a ética“, por Rafael Teixeira

A ética normativa é uma área em disputa com algumas teorias concorrentes. Uma já citada acima e bastante popular é o utilitarismo, que é uma das formas do consequencialismo, esse último mais geral e que entende que devemos avaliar as ações por suas consequências. Além dessa, temos a ética baseada em princípios, a deontologia, que avalia as ações segundo regras preestabelecidas. E tem crescido também em popularidade a ética de virtudes, que era forte nos clássicos da história da filosofia e para a qual as pessoas têm capacidades ou tendências que devem ser cultivadas e que vão influenciar em ações corretas ou erradas.

De modo geral, a proposta da nova eugenia foca seus argumentos em consequências positivas, e encaixa bem com o utilitarismo. Embora seja preciso acentuar que a aceitação do utilitarismo/consequencialismo não leva à aceitação da eugenia: pelo contrário, uma minoria nesse grupo endossa tais ideias. E mesmo nessa perspectiva normativa se pode criticar a proposta eugênica, pois sabemos historicamente que ela pode levar a consequências terríveis e discriminatórias.

Pensando através das outras propostas éticas, fica mais difícil defender aquele ideal. Uma ética baseada em princípios definidos pela sociedade em acordos bem-estabelecidos que levem em conta os direitos e a dignidade de todos os grupos humanos iria olhar com desconfiança um raciocínio que ignora uma série desses valores e se preocupa apenas com um cálculo de consequências frio, que toma o assombro que suas propostas causam como algo a ser ignorado. Já uma ética baseada em virtudes poderia notar que, por exemplo, pessoas com tendências terrivelmente não-virtuosas no passado se associaram com essas ideias, e que ainda se associam em casos que podem ser apontados – e que essas tendências e aquelas ideias podem estar se reforçando mutuamente.

Decisões delicadas

Com essa base ética, e retomando o tema do autismo, precisamos considerar que a questão tem nuances. Muitos apontam que o autismo de nível 3 já é algo com poucos benefícios e com um sofrimento muito maior para os pais e para o autista. Seria o caso de controlar essa condição com eugenia? Provavelmente seria ainda imprudente, pelos motivos éticos, além de que não se distinguiria só pela genética de qual tipo de suporte a criança teria necessidade depois de nascer. O autismo é um transtorno do desenvolvimento cerebral, e leva de modo geral a atrasos, porém estes são muito influenciados por fatores ambientais também, e intervenções adequadas (quanto mais cedo melhor) podem melhorar muito as condições do indivíduo. Se for possível usar técnicas que ajudem os bebês a se desenvolver e diminuam o sofrimento, isso sim pode ser muito bem-vindo como uma solução mais humana para os casos de maior impacto, e sem negar as características próprias desses indivíduos e a diversidade desse grupo.

No caso do Down, por exemplo, hoje nós já temos tecnologias que conseguem lidar muito melhor com as comorbidades e a saúde desses indivíduos. Resta apenas desenvolver possibilidades de acessibilidade e a aceitação social das diferenças.  

De todo modo, a exclusão de qualquer traço genético que tenha sobrevivido tanto tempo tem que ser vista com muita cautela. Claro que curar doenças físicas claras, como câncer, anemia falciforme, doenças autoimunes, entre outras, seria algo menos polêmico e benéfico. Ainda assim, não sabemos ainda com o que mais aqueles genes podem ter relação. As consequências não são tão óbvias. Um mesmo conjunto de genes pode atuar em pontos bem diferentes do nosso corpo e comportamento, e ainda é obscura a forma como eles se relacionam com o todo. Nós poderíamos estar cortando de nós qualidades e capacidades que ainda nem descobrimos que temos.

Alguns entendem que seria algo inevitável, independente da polêmica. Existindo a tecnologia, e tendo ricos que paguem por ela, isso será feito. É possível, porém, uma proibição estatal desse tipo de seleção. A sociedade tem vários meios pelos quais se pode contornar e controlar essa atuação. Mesmo em casos que utilizam apenas a interrupção da gravidez, e trazendo uma dificuldade moral para quem defende aborto em todos os casos (e que veria com maus olhos a proibição de aborto relacionado à seleção de características), seria possível como solução a legislação proibir a detecção dessas características em exames. Essa medida traria ainda seus próprios problemas, pois é importante para os pais a previsibilidade de saber como será seu filho para poder lidar com ele, se preparar. O debate é complexo e questões delicadas precisam ser encaradas, sem ignorar os valores que podemos estar ferindo, e mantendo em mente a importância de proteger a diversidade dos modos de vida, para não usarmos a tecnologia como forma de nos deixar uniformes.

Eliminar condições diversas que trazem limitações para as pessoas não elimina apenas um aspecto biológico. Deficiências estão associadas a culturas complexas. Se pudermos corrigir, por exemplo, a surdez, isso facilitaria para a sociedade não precisar se adaptar a pessoas que não podem ouvir, porém eliminaria todo um mundo que os grupos reivindicam, com sua língua, seu modo de vida, sua comunidade rica. Isso se pode imaginar para os mais diversos tipos de deficiência e condições que alteram a vida das pessoas.

Com a nossa capacidade de organizar sociedades e alterar o mundo à nossa volta, o que nós vamos considerar como impedimento e limitação, e o que será diversidade, depende apenas do nosso empenho em aceitar o diferente e ter compaixão com os que não se enquadram no esperado.

Autor

  • Bacharel em filosofia, largou um mestrado em filosofia da ciência. Teve formação bem tradicional, mas fugiu para a filosofia analítica. Possui interesse em diversas áreas filosóficas, questões políticas, sociais. Entusiasta da ciência no geral, da economia, e do bom diálogo aberto e democrático com o diferente. Atualmente, está mudando de área de atuação, estudando programação e tentando escrever romances no tempo livre.

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