A vida é um fenômeno coletivo: uma resenha de “Por uma pedagogia da cura”, de Caio Souto

Para Canguilhem, o estudo da vida vai além da anatomia, parte da compreensão do que é vida pelo vivente

Células da parte de baixo de uma folha, recoloridas pelo artista | imagem: Roger Marks

“A vida não pode ser deduzida a partir de leis físico-químicas.”
– George Canguilhem

Começa quando a sensibilidade pede um instante a sós com a pessoa. Aceito o pedido, a sensibilidade guia as mais íntimas necessidades do sujeito na interpretação das representações simbólicas que resultam das atividades sociais ao seu redor. Essas representações concebidas pelas pessoas ao redor, e também por nós mesmos, tendem a manifestar dois conjuntos de informação: nossos valores e nossos conhecimentos.

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Ai, que conversa mais cringe/démodé/vintage/chata… valor e conhecimento! Perdoe o escriba… mas o que se pode falar quando nos deparamos com um livro que trata sobre como nossos valores tendem a conduzir nossa idealização de mundo através dos encontros que temos ao longo da vida? Encontros tão valorosos que são capazes de atiçar a nossa sensibilidade, fazendo-a pedir um instante conosco? Potente, esse sensível instante é capaz de nos fazer parar, pensar e indagar: qual o conhecimento necessário para caminhar nesse novo mundo que me foi apresentado?

O livro responsável por essa externalização de alguns movimentos de ideias é intitulado Por uma pedagogia da cura: uma introdução à filosofia de George Canguilhem, publicado neste ano de 2022 pela editora Dialética, de autoria do professor Caio Souto. Contudo, para responder ao leitor as perguntas do segundo parágrafo, necessário se faz trazer à tona conceitos importantes que permeiam toda a obra.

O primeiro deles é axiologia. Não se preocupe, depois de falar alto mais de três vezes para outra pessoa esse campo de estudos da filosofia não soará estranho. A axiologia estuda como o sujeito determina o valor que ele dá as coisas. Esse valor será dado pela ética do sujeito, por exemplo: o sujeito tem para si que o bolsonarismo é mais valioso que a democracia e por isso é justificável intervenção militar; ou: o sujeito tem para si que a democracia é mais valiosa e por isso atentados contra ela são crime de lesa-pátria. O valor molda o mundo do sujeito e o guiará em suas escolhas; seja para a festa da posse do presidente eleito ou para a cadeia por atos terroristas.

O segundo conceito é epistemologia. Esse é preciso falar um pouco devagar, pode travar a língua. Como surge, como é formado o conhecimento? Esse conhecimento é produzido por poucos que vem de dentro das universidades ou vem da maioria das pessoas que moram e conversam em um bairro qualquer da cidade? Há maneiras de se encontrar verdade, ou seja, validar esse conhecimento? Todas essas questões, em conjunto e independente de uma ordem, estabelecem uma Teoria do Conhecimento, ou seja, a epistemologia. Deve-se ter em mente: não há conhecimento na ausência do sujeito. E o conhecimento produzido, independente de seu suporte (pinturas, livros, fotos, vestimentas, documentos, rituais etc.), deve ser salvaguardado, acessível e comunicado para manter viva a cultura que o produziu.

Pois bem, isto posto…

Desde o prefácio do livro Por uma pedagogia da cura: uma introdução à filosofia de George Canguilhem – que deve ser lido por quem dedica seu tempo aos estudos sobre epistemologia – o fio condutor é a sensibilidade de uma pessoa que se permitiu estudar a vida por meio de diferentes perspectivas, oriundas da troca de representações de valores pessoais. Sejam esses valores do próprio George Canguilhem (1904-1995), sejam esses valores do seus mestres ou pessoas próximas. Para Canguilhem, médico e filósofo francês, o estudo da vida vai além da anatomia do corpo humano ou do tratamento de mazelas. Para Canguilhem, estudar a vida é parte da compreensão do que é vida pelo próprio sujeito vivente.

Parte dessa compreensão se dará pelo encontro de seus mais íntimos valores com os valores e vida de outrem. No caso de Canguilhem, Émile-Auguste Chartier foi seu mestre de valores, aquele que ensinou a perspectiva da luta política e as influências que a mesma possui em várias facetas da vida pessoal e profissional. A outra parte da compreensão da vida se dará pelo encontro do nosso próprio conhecimento com o conhecimento de outrem. Gaston Bachelard foi o mestre epistemológico de Canguilhem.

Valores e conhecimentos potentes o bastante que fizeram Canguilhem basear sua filosofia em um estudo da vida que não a reduz somente a células, anatomia, genética, ou seja, assuntos que dependem de um raciocínio matemático. Vida não são apenas números, vida não são apenas um conjunto de células. Vida é o equilíbrio daquilo que é considerado normal por um coletivo de sujeitos dentro de um determinado habitat com aquilo que pode causar algum dano para um sujeito individual ou coletivo dentro desse habitat determinado. E a cura para uma patologia não advém apenas do conhecimento médico, ela também surge dos valores de quem assistirá o enfermo. O que difere o normal do patológico é justamente o instante que a sensibilidade do sujeito pergunta: o que fazer agora que você tem esse conhecimento? Como não estamos dentro da mente de outrem espera-se, por exemplo, que o sujeito tenha o conhecimento que a pandemia de covid-19 é uma verdade e que o tratamento existe e deve ser acessível a todas as pessoas. Uma atitude normal que contém valores que visam à utilização de um conhecimento para um tratamento patológico. Para Canguilhem a vida é um fenômeno coletivo.

Coletividade que produz conhecimentos científicos ou senso comum, não importa. O que vale é a disposição do sujeito em se encontrar com sua sensibilidade, pois ela é a porta de entrada para os encontros que a vida tem a oferecer. Encontros que podem mudar a nossa maneira de ver a vida. Encontros que podem mudar a nossa maneira de estudar a vida.

Ah, ainda há mais uma coisa a ser posta antes do final: sou biólogo. Ou era, acho. Estou no último ano da faculdade de biblioteconomia. E por que julgo isso importante para esta resenha? Pois bem, a minha maneira de estudar a vida mudou. Células, morfologia vegetal, anatomia humana e comparada, comportamento animal, ecologia, genética e tantas outras áreas da biologia agora compartilham o mesmo espaço que teorias da informação, discussões sobre o que é um documento, semiótica e semântica da linguagem documentária e tantos outros assuntos apresentados pela biblioteconomia.

Por uma pedagogia da cura: uma introdução à filosofia de George Canguilhem, ao menos para este que vos escreve, afetou. Graças ao livro do professor Caio Souto consigo ver, com a ajuda das palavras de Canguilhem, que “um objeto ou fato normal se caracteriza por ser tomado como ponto de referência em relação a objetos ou fatos ainda à espera de serem classificados como tal”. Ao final da nova faculdade poderei dizer com toda a normalidade: sou um biobliotecário.

Autor

  • Meu diploma diz que sou biólogo. Minha curiosidade sobre documentação me disse para procurar a graduação de Biblioteconomia. O futuro imaginado vislumbrou um biobliotecário. Enquanto o futuro não chega, você pode me encontrar na Biblioteca Central César Lattes da Unicamp (eu trabalho lá!) para conversar sobre o que você quiser, sou muito curioso (e às vezes não falo tanta bobagem).

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