Um depoimento sobre este pensador do marxismo nos 30 anos da sua morte e nos 60 anos de A Formação da Classe Operária Inglesa
“A classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, essa é a sua única definição.”
– E.P. Thompson, em A formação da classe operária inglesa, vol. 1, p. 12
A sessenta anos de seu lançamento, A formação da classe operária inglesa, de E. P. Thompson (1924-1993), permanece relevante. Obra que repercutiu por décadas deste lado do Atlântico e influenciou ao menos duas gerações de pesquisadores marxistas, também gerou polêmicas ao usar a dialética para se aproximar de conceitos como experiência, cultura e memória. Abrindo, assim, novas perspectivas teóricas para o estudo dos mundos do trabalho, em todas as suas formas correlatas.
Veja também:
>> “Nova edição de Minha Vida, de Leon Trotsky“, por Rafael Padial
>> “Da Pesquisa Brasileira: Yasmin Utida, a tradução e as histórias de resistência“
Na tradução para o português brasileiro, assinada por Denise Bottmann (v. I e III), Renato Busatto Neto e Cláudia Rocha de Almeida (v. II), the making transformou-se em a formação, deixando de lado a polêmica do fazer-se que tanta celeuma causou nos meios de língua inglesa. Entretanto, permanece a questão de que Thompson defende (como pode ser lido na epígrafe) que é no processo do fazer-se que a classe é definida, através das experiências dos seres humanos vivendo sua própria História, e que esta é sua única definição porque é um movimento dialético. Que qualquer outra definição tenderia a engessar e congelar apenas aspectos específicos sobre a forma e a composição da classe e não sua identidade em si ou para si.
Ao empreender a escrita dessa obra, Thompson visava devolver aos operários, que foram seus alunos nos cursos livres ministrados na Universidade de Leeds, sua própria História, registrando e analisando como a memória das lutas operárias havia constituído uma cultura peculiar que dava identidade à classe operária inglesa, e resgatando figuras históricas de panfletários, sindicalistas, cartistas e lideranças quase desconhecidas fora desse meio. Mas não apenas isso. Thompson se debruça sobre várias fontes que descortinam a vivência, a religião, a cultura e os costumes daqueles que nesse processo virão a se reconhecer como classe operária.
E, ao escrever essa obra emblemática, devolve também aos historiadores uma dialética ágil e elegante, que ele mesmo liberta do historicismo, do economicismo e de tantos outros “ismos” que permeavam os meios acadêmicos. E permite, até mesmo àqueles de nós que estávamos estudando a transição da escravidão para o trabalho livre, tanto no Brasil quanto nas Américas, desenvolver um olhar diferenciado para fontes, sujeitos históricos e processos dialéticos. Acenando para o óbvio de que a forma como a História se deu na Europa não pode ser tomada como parâmetro para o resto do planeta e que as lutas do Terceiro Mundo ainda estavam em andamento, quando a derrota já se evidenciava nas mesmas lutas no Velho Mundo:
“Não deveríamos ter como único critério de julgamento o fato de as ações de um homem se justificarem, ou não, à luz da evolução posterior. Afinal de contas, nós mesmos não estamos no final da evolução social. Podemos descobrir, em algumas das causas perdidas do povo da Revolução Industrial, percepções de males sociais que ainda estão por curar. Além disso, a maior parte do mundo ainda hoje passa por problemas de industrialização e de formação de instituições democráticas, sob muitos aspectos semelhantes à nossa própria experiência durante a Revolução Industrial. Causas que foram perdidas na Inglaterra poderiam ser ganhas na Ásia ou na África.”
– E.P. Thompson, em A formação da classe operária inglesa, vol. 1, p. 13
E me permito a citação tão longa porque este é um dos meus parágrafos favoritos de toda a historiografia. Com poucas frases elegantes, simples e apaixonantes, Thompson tornou o estudo da história algo vivo e relevante, relegando de vez à poeira do esquecimento as filigranas acadêmicas, a falsa erudição e o positivismo estéril e conformista que os revisionistas da nova onda conservadora procuram resgatar atualmente. E há parágrafos como este em Costumes em Comum e A Miséria da Teoria, obras suas igualmente relevantes para o “fazer-se” de muitos de nós.
O belíssimo ensaio “Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial”, que finalmente foi publicado no Brasil em 1998, quando reunido pelo próprio Thompson na coletânea Costumes em Comum (1991), foi um dos pontos altos da minha graduação. Lá por 1988 só dispúnhamos de uma versão em espanhol, publicada pela Editorial Grijalbo em uma coletânea extemporânea, e (por ser o espanhol a minha língua materna) essa leitura foi tão fluída que se gravou para sempre em minha memória. E a partir daí, nunca mais parei de ler Thompson e de me inspirar nele para organizar minhas próprias pesquisas e minhas causas.
Da mesma forma, o capítulo “A lógica histórica” de A Miséria da Teoria (1978) defende nosso papel como historiadores com historicidade perante os idealismos de um marxismo mais filosófico, pleiteado por Louis Althusser. Como cidadãos de nosso próprio tempo, nós historiadores temos uma responsabilidade em relação ao passado que endossamos e àquele que criticamos e isso irá refletir-se em como nossos leitores do futuro olharão para nós e para o próprio passado. E, para além da militância, Thompson nos oferece nessa obra uma releitura da dialética marxista, que nos permite um aproveitamento multidisciplinar das fontes.
Com sua prosa viva, apaixonante e extremamente didática, Thompson foi um dos integrantes do grupo de historiadores do Partido Comunista Britânico, junto a Eric J. Hobsbawm, Christopher Hill, Perry Anderson e Raymond Williams. Embora tenha lecionado em diversas universidades no Reino Unido, Canadá e Estados Unidos, passou a maior parte de sua vida dividido entre o meio acadêmico e as diversas causas que abraçou, pois também foi um homem de seus tempos, profundamente engajado nas lutas e contendas do século XX, desde o combate ao fascismo até o ativismo antinuclear. Talvez influenciado por seus pais, amigos do político indiano Jawaharlal Nehru e defensores da independência da Índia, ou por seu irmão mais velho, que pereceu durante a Segunda Guerra Mundial combatendo junto aos partizans antifascistas em território que depois viria a compor a antiga Iugoslávia.
Sendo assim, definir E. P. Thompson como um historiador militante não significa questionar ou limitar de modo algum seu rigor teórico ou sua capacidade intelectual. Significa, isso sim, reafirmar o valor de sua obra para a historiografia, tanto marxista quanto de outras filiações teóricas, e demonstrar que o próprio historiador é um ser humano dialético, refletindo em sua obra as contradições de seu tempo. A historicidade de cada um de nós é importante para a compreensão do fazer historiográfico e foi Thompson que explanou essa premissa com elegância e paixão.
Neste ano também se completam trinta anos sem a sua presença física entre nós. Sua obra, entretanto, permanece viva e cada dia mais atual, tanto nas questões metodológicas para a abordagem das fontes, quanto nas questões de filosofia da história para a compreensão de nosso papel de historiadores em uma sociedade em conflito. Realizando assim, a vocação que ele mesmo defendeu durante toda a sua vida:
“No fim, nós também estaremos mortos, e nossas vidas estarão inertes nesse processo terminado, nossas intenções assimiladas a um acontecimento passado que nunca pretendemos que ocorresse. Podemos apenas esperar que os homens e mulheres do futuro se voltem para nós, afirmem e renovem nossos significados, e tornem nossa história inteligível dentro de seu próprio presente. Somente eles terão o poder de selecionar, entre os muitos significados oferecidos pelo nosso conturbado presente, e transmutar alguma parte de nosso processo em seu progresso.”
– E.P. Thompson, em A Miséria da Teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser, p. 53
E é precisamente isso que ora faço, reafirmando e reivindicando E. P. Thompson.