Da Pesquisa Brasileira: Yasmin Utida, a tradução e as histórias de resistência

“As pesquisas se comunicam, as trocas com os pares são valiosas, enfim, a ciência é uma construção conjunta”

A professora Yasmin Utida | imagem: acervo pessoal

“Pesquiso o papel do tradutor como um mediador na divulgação científica de história”, descreve a doutoranda em Letras/Tradução (Alemão-Português) pela Universidade de São Paulo (USP) e professora de língua alemã Yasmin Utida, “seleciono, analiso e traduzo entrevistas em vídeo com filhos de membros da resistência comunista contra o nazismo”. Autora da dissertação de mestrado “Tradução e memória: a legendagem de um filme-testemunho sobre a Rosa Branca” (sendo este o nome de um grupo estudantil de resistência contra o nacional-socialismo), Yasmin produz atualmente a tese  “Nachkommen – filhos da resistência: O tradutor como mediador em entrevistas de divulgação científica em história com Hans Coppi Júnior e Anita Leocádia Prestes”, articulando estudos da tradução, história oral, história pública e memória. Para a Úrsula, ela fala sobre o desenvolvimento da sua pesquisa, compartilha procedimentos de trabalho e aponta caminhos de estudo a serem perseguidos, entre estes, a resistência, “tema a ser explorado e lembrado para que possamos transitar e agir no presente atentos a discursos e cenários que já se mostraram danosos no passado”.

Como você descreve a sua área de interesse enquanto pesquisadora? Que tipo de questões te pegam, que problemas te incomodam, o que move sua investigação?

A multidisciplinaridade me atrai desde a graduação, quando comecei a pesquisar o processo de tradução de textos com teor testemunhal relacionados à resistência ao nacional-socialismo… e não parei mais. Desde então, estão no meu horizonte de interesse a tradução como mediadora de memória e veículo de divulgação científica em história, além dos estudos do testemunho. A forma como a tradução revela padrões de interpretação e diferentes camadas discursivas na presentificação do passado move minha investigação. Sem falar na tarefa sempre relevante – principalmente com a atual ofensiva da extrema direita – de difundir materiais inéditos sobre as iniciativas de resistência ao nazismo, apoiados em uma moldura histórica consistente.

Fale sobre o seu trabalho de pesquisa atual: como surgiu e se desenvolveu? Pode comentar também as relações com o mestrado.

Pesquiso o papel do tradutor como um mediador na divulgação científica de história. A ideia é que, ao final da tese, consiga compilar vídeos que mostrem um estudo contrastivo das trajetórias de vida de duas testemunhas de segunda geração da resistência ao nacional-socialismo: Hans Coppi Júnior – alemão e filho de Hans e Hilde Coppi – e Anita Leocádia Prestes – brasileira e filha de Luís Carlos Prestes e Olga Benário Prestes. Para produzir, traduzir e legendar esse tipo de material fílmico, preciso combinar teorias e métodos dos estudos da tradução e da história oral, ou seja, proponho um diálogo teórico-metodológico interdisciplinar. O projeto mudou bastante desde que ingressei no doutorado. No final do mestrado, quando trabalhei com a relação entre legendagem e difusão de memória, já alimentava a ideia de me aprofundar na metodologia da história oral e de aproximar seus métodos dos procedimentos metodológicos do tradutor, então esse foi o ponto de partida do trabalho atual. De início, pretendia formar um panorama de testemunhos que representassem diferentes ramos da resistência alemã: de militares, de judeus, da elite intelectual, de comunistas, da juventude etc. No entanto, para realizar um trabalho mais denso sobre cada testemunha, precisei reduzir o corpus. Em conversa com um professor, descobri muitas coincidências entre as biografias de Hans Coppi Júnior, cujos pais foram condenados à morte por serem comunistas membros do grupo de resistência Orquestra Vermelha, e Anita Leocádia Prestes, cuja mãe, a comunista Olga Benário, foi entregue por Vargas à Alemanha nazista e executada no campo de concentração de Bernburg. Ambos nasceram no mesmo dia, na mesma prisão feminina, foram criados por avós e se tornaram historiadores, especialistas nas ações de resistência dos pais. Foi dessa forma que defini (estou definindo) os contornos da versão atual da pesquisa.

Qual a contribuição deste trabalho? Como você descreveria a sua importância a) para uma pessoa da sua área e b) para um leigo no tema?

1 – Pensando nos estudos da tradução, acho que a contribuição do meu projeto está na lacuna de estudo do papel mediador do tradutor na articulação de procedimentos teórico-metodológicos dos estudos da tradução e da história oral, na criação de um produto de história pública. A perspectiva transnacional Brasil-Alemanha também pode trazer provocações que convidem a mais investigações futuras tanto sobre a resistência como sobre a tradução de textos com teor testemunhal.

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2 – Seleciono, analiso e traduzo entrevistas em vídeo com filhos de membros da resistência comunista contra o nazismo. Como as entrevistas são materiais de divulgação científica em história, combino procedimentos do historiador e do tradutor para dar conta tanto do aspecto informativo quanto da oralidade e da subjetividade que contêm. Trabalho com foco no papel do tradutor como um mediador que imprime as marcas de sua interpretação no texto e procuro encontrar formas de deixar esse avesso da tradução evidente para quem assistir aos vídeos legendados. O projeto também oferece mais fontes e informações sobre o grupo de resistência Orquestra Vermelha, assim denominado pela Gestapo e composto por motivações e manifestações bastante heterogêneas. Além disso, a pesquisa passa pelo debate sobre o desenvolvimento de políticas e de culturas de memória no Brasil e na Alemanha.

Como é a sua rotina de pesquisa para produzir a tese? Como é conciliar essa atividade com outras do seu cotidiano, quais dificuldades você tem?

Tento trabalhar na produção da tese todos os dias, na leitura e fichamento de textos, na redação da tese ou na tradução/legendagem dos vídeos. Como também atuo como professora de alemão, a carga horária dedicada à pesquisa varia durante os dias da semana, assim como as atividades que realizo em cada um deles. A depender da quantidade de aulas que dou, penso em um mínimo diário viável a ser atingido na pesquisa, para que todos os pratinhos continuem girando. Tenho o privilégio de poder reservar as quintas-feiras para trabalhar exclusivamente no doutorado. É quando me dedico a aprofundar questões conceituais mais complexas, revisar e editar o que já produzi, trabalhar com o software de legendagem. Mesmo assim, tem dias que o planejamento não funciona. De vez em quando, é difícil lidar com um certo sentimento de culpa por precisar me ausentar em alguns momentos com a família, o namorado, o gato e os amigos.

Como se relacionam, no seu caso, o mundo do trabalho e o mundo da pesquisa? Há aprendizados trocados entre eles?

A primeira e mais óbvia relação é o contato e a reflexão constantes sobre a língua alemã, o que favorece muito a leitura da bibliografia e as fases de tradução e legendagem do corpus. A disciplina e a organização na preparação das aulas também são características que transporto para a escrita da tese. Às vezes, dependendo dos interesses dos alunos, é possível trabalhar algumas das temáticas da pesquisa nas aulas de língua. No entanto, para mim, a interação mais importante entre o mundo do trabalho e o mundo da pesquisa é o estar com pessoas que a atividade docente permite. As trocas com os alunos (mesmo que virtualmente) é algo que me energiza, dá contorno e leveza para os dias e representa um contraponto à solidão que algumas fases da redação acadêmica impõem.

A partir da sua experiência, que sugestões você daria a outros pesquisadores que precisam incluir a pesquisa entre as suas outras tarefas no dia a dia?

Trabalhar com pequenas tarefas relacionadas à pesquisa todos os dias pode ser uma boa estratégia. Outra dica que considero importante é não postergar o início da redação e intercalar fases de leitura e fichamentos com a escrita de parágrafos que serão utilizados no texto final. Desde agosto do ano passado, tenho adotado o método Zettelkasten [caixa de anotações] com bons resultados: logo após a leitura e fichamento de um texto, redijo uma ficha para cada conceito ou aspecto do material lido e que será utilizado na escrita da tese. Monto a ficha com parágrafos autorais, além de citações, anoto minhas impressões, já articulo autores. Cada ficha pode ser complementada após novas leituras. Organizo esse material num aplicativo chamado Obsidian. A partir de hashtags incluídas no final de cada ficha, o sistema gera um mapa de conexões entre todas as fichas com que alimentei meu acervo. É um recurso muito legal para se ter uma ideia mais panorâmica de como compor e organizar os capítulos. Uma última dica é se tornar consciente sobre seu próprio ritmo de trabalho (e respeitá-lo!), o que é algo valioso tanto para o desenvolvimento da tese como para a manutenção da saúde mental durante a pós-graduação.

Que questionamentos não respondidos você enxerga no seu campo de pesquisa? Isto é, a partir dos debates que conheceu e trouxe, que problemas você entende que devem ser abordados – por você ou por outros pesquisadores?

Seria muito bom contar com mais pesquisas contrastivas que indiquem confluências e divergências nas produções e nas tradições de história pública em diferentes países. Outro ponto é o aperfeiçoamento de abordagens para estudar o processo tradutório com ênfase no tradutor. Por fim, não tanto como uma lacuna de pesquisa, mas como uma necessidade social, cultural e pedagógica: acho que a resistência é sempre um tema a ser explorado e lembrado para que possamos transitar e agir no presente atentos a discursos e cenários que já se mostraram danosos no passado.

Conte quais podem ser os seus próximos passos como pesquisadora. O que você quer realizar ainda nessa forma de trabalho?

Ainda estou muito imersa e focada no atual problema de pesquisa para pensar a médio ou longo prazo. Por ora, estou muito feliz por ter sido contemplada com uma bolsa Capes para um semestre de doutorado-sanduíche na Universidade de Leipzig, na Alemanha. Como a notícia é muito recente, estou organizando o intercâmbio e planejando visitas a arquivos, museus e memoriais, bibliotecas, lugares de memória para aproveitar o próximo semestre ao máximo, coletando material para análise de paratextos, entrevistando pessoas e reunindo novas referências para a pesquisa.

Por fim, por que você viu na academia um espaço para desenvolver problemas que você visualizava? Em outras palavras: por que pesquisar?

Tive um hiato considerável entre o mestrado e doutorado, o qual foi um período muito centrado em organizar a minha vida material. Ainda que seja bem difícil conciliar a pesquisa, o trabalho e a vida pessoal; sempre ficava pensando nas questões que haviam ficado sem resposta ou que tinham surgido durante o mestrado, em ideias que ainda gostaria de investigar e aprofundar. Além de alimentar minha curiosidade e ser um espaço para estudar os temas que me movem, gosto de pensar como as pesquisas se comunicam, como as trocas com os pares são valiosas, enfim, como a ciência é uma construção conjunta.

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