Alzira Rufino, presente!

Autora de uma pesquisa sobre Alzira – militante e escritora falecida em abril/23 –, Lorrayne França traz um depoimento pessoal sobre ela

imagem: autor desconhecido

Este texto reelabora e amplia o artigo “Alzira Rufino e o Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista: Nós, Mulheres Negras, Resistimos“, concluído antes da morte de Alzira

A minha história com Alzira Rufino começou em 2 de junho de 2020. No auge da pandemia, todos fomos impactados pela notícia da morte de uma criança que havia sido deixada sozinha em um elevador e caído do 9º andar de um prédio de luxo em Recife (PE). Miguel Otávio era um menino negro de 5 anos, filho da empregada doméstica Mirtes Renata, que havia deixado o filho aos cuidados da patroa para passear com o cachorro. A situação não era incomum, pois Mirtes e sua mãe trabalhavam há anos para aquelas pessoas, eram quase “da família”.

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Essa tragédia foi pessoalmente impactante para mim, pois naquele momento entendi que aquele menino poderia ser qualquer criança negra, inclusive o meu filho. Afinal, a forma racista e desumana como a sociedade enxerga pessoas negras, até mesmo as crianças, matou o Miguel, impedindo que ele recebesse cuidado e proteção. A partir daquele momento, o racismo se tornou um tema de estudo para mim. Eu precisava entender a fundo o funcionamento desse sistema tão cruel e me preparar para proteger o meu filho. Com esse objetivo, iniciei um curso de especialização em Cultura, Educação e Relações Étnico-Raciais, buscando desenvolver o meu letramento racial. Foi um período de muito aprendizado, trocas e autoconhecimento, e para o trabalho de conclusão escolhi como tema o Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista. Contudo, a história de Alzira, que foi ativista, escritora, enfermeira e fundadora do Coletivo, se sobrepôs e eu entendi que contar a sua trajetória seria uma maneira de homenageá-la ainda em vida. Meu objetivo foi cumprido, pois a minha pesquisa foi publicada em dezembro de 2022 e ela faleceu em 26 de abril de 2023.

A frase “Mulheres negras: produzam o show e assinem a direção”, apesar de não ser a mais mencionada de Alzira, ouso dizer que é a que talvez melhor defina a sua trajetória. Porque foi assim que ela conduziu a sua vida, não só abrindo caminhos, mas criando oportunidades e fazendo acontecer, já que desde cedo entendeu que nada viria facilmente para as suas mãos. Nascida em 5 de julho de 1949, na cidade de Santos (SP), ela era filha de uma dona de casa e de um doqueiro do porto da cidade. Teve uma infância comum às crianças pretas e pobres de todo o Brasil, com dificuldades financeiras, violência doméstica e racismo. Como o pai tinha problemas com álcool, em muitos momentos foi a mãe quem garantiu o sustento da família e dela Alzira se orgulhava de ter herdado a determinação.

Ao ler a sua autobiografia, intitulada Eu, Alzira Rufino, resisto (2019), um dos fatos que considero mais dolorosos em sua história aconteceu quando ela tinha apenas 9 anos. Estudante de uma escola particular, ela ouviu de uma amiga da classe que, para que continuassem a se falar, deveria ficar branca. Por gostar muito da amiga, tomou água sanitária para tentar se embranquecer e, por essa razão, foi hospitalizada em coma. Apesar das adversidades, também foi na escola que ela teve os primeiros reconhecimentos como escritora, ao ganhar prêmios por suas redações.

Na juventude saiu de Santos para a capital paulista em busca de oportunidades de trabalho. Lá iniciou sua atuação na área da Saúde e realizou diversos cursos até se formar em Enfermagem. Anos mais tarde, Alzira retornou a Santos para cuidar da mãe, que estava doente, e foi quando conheceu a então professora Telma de Souza. Ao perceber a habilidade de Alzira para liderar pessoas, Telma a convidou para participar das reuniões de articulação que resultaram na criação do diretório do Partido dos Trabalhadores (PT) em Santos.

Com cada vez mais conhecimentos sobre as questões sociais, o machismo e também o racismo, Alzira queria que essas pautas fossem abordadas pelo partido, mas não encontrou apoio. A equidade de gênero não era prioridade, pois consideravam que todos eram trabalhadores, e entendiam que as discriminações aconteciam pelas pessoas serem pobres, não pela cor da pele. Foi quando Alzira decidiu criar o Coletivo de Mulheres Negras da Baixada Santista, em 1984. Essa certamente foi a maior realização de Alzira. A frente desta organização, que mais tarde se tornou a Casa de Cultura da Mulher Negra (CCMN), Alzira colocou em prática ideias inovadoras e relevantes para a promoção e o reconhecimento da cultura negra não só na Baixada Santista, mas em todo o Brasil.

Em conversa com Alzira, ela destacou que a ação de maior destaque do Coletivo foi o processo contra a Agência Mazzini, uma intermediadora de empregos. Em 13 de abril de 1986, a empresa publicou em um jornal de grande circulação da região, A Tribuna, um anúncio no qual buscava uma secretária para a diretoria de uma empresa que deveria ter boa aparência, ser alta e branca, além de solteira e ter entre 20 e 29 anos. O racismo e o machismo contidos no anúncio não passaram despercebidos e foi registrado um boletim de ocorrência contra a empresa responsável pelo anúncio por discriminação racial e às mulheres. Alzira destacou esta iniciativa como um divisor de águas em sua atuação pelos direitos das mulheres e de pessoas negras. Afinal, eram mulheres negras questionando uma grande empresa por um anúncio racista e machista. Ela desconhecia que outro feito deste tipo tenha sido realizado anteriormente.

O Coletivo foi responsável por ações em prol do resgate da autoestima do povo preto e da divulgação de sua riqueza cultural e histórica. Em 1989, o Coletivo realizou o 1º Encontro de Mulheres Negras da Baixada Santista e neste evento foi aprovada uma proposta para que tivesse uma sede e personalidade jurídica. A partir daí, foi criada a Casa de Cultura da Mulher Negra (CCMN), que era descrita por Alzira como uma “instituição privada de utilidade pública”.

O espaço era de acolhimento e oferecia assistência jurídica e psicológica para pessoas vítimas do racismo e da violência doméstica. Contava com um Núcleo de Educação e Comunicação, que era responsável pela assessoria de imprensa da instituição, produção de boletins informativos, edição da revista Eparrei e cobertura de eventos relevantes para a comunidade negra. O primeiro boletim eletrônico foi criado em 2001 com o objetivo de divulgar os acontecimentos da 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), em Durban, na África do Sul, naquele ano.

Também fazia parte da CCMN, o Centro de Documentação Carolina Maria de Jesus, que reunia um rico acervo sobre a cultura negra e servia de referência para professores e pesquisadores. Em 1997, lançaram a campanha “Por uma educação sem discriminação” e por mais de dez anos foram realizados eventos, seminários e workshops para promover a formação de professores em prol de uma educação antirracista, antes mesmo da aprovação da Lei 10.639, de 2003, que tornou obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira em todas as escolas de ensino Fundamental e Médio.

A CCMN encerrou as atividades em 2019 e ao longo de quase 30 anos atuou na promoção da cultura negra na Baixada Santista e também participou ativamente de discussões extremamente relevantes para a população negra de todo o Brasil. Alzira presidiu a Casa por todo esse período, mas sua luta pelos direitos das mulheres e das pessoas negras não se restringiram à organização. Ela foi uma das responsáveis pela criação da Casa-Abrigo de Santos, em 2000, tendo influenciado a instalação, em diversos municípios brasileiros, de serviços voltados para as mulheres. Apoiou a elaboração de leis contra o racismo e a violência contra a mulher na Baixada Santista, entre elas, a Lei º 10.778, de 2003, que estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados.

Ao longo de sua trajetória, foi reconhecida e homenageada por diversas organizações. Entre os anos de 1995 e 1998, exerceu a função de coordenadora da Rede Feminista Latino-Americana e do Caribe contra a Violência Doméstica, Sexual e Racial, na sub-região Brasil. Além disso, em 2005, foi uma das 52 mulheres brasileiras indicadas para o Projeto 1000 Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz.

Como escritora, publicou ensaios, contos, crônicas, poesias, romance, livro infantil e sua já citada autobiografia. Foi a primeira escritora negra a ter seu depoimento gravado no Museu de Literatura Mário de Andrade, em São Paulo.

A relevância do trabalho realizado por Alzira é indiscutível. E apesar de estar localizada no litoral de São Paulo, mesmo em uma época em que as informações não se propagavam pela internet com a rapidez e o alcance dos dias atuais, ela conseguiu impactar mulheres negras de todo o país, por meio de suas ideias e da sua presença em eventos até fora do Brasil.

Senti um grande orgulho ao me aprofundar em uma história de luta e resistência. Mulheres negras sempre estiveram na linha de frente do debate intelectual e da atuação política e social pelo fim das opressões e os registros sobre esses grandes atos são insuficientes para demonstrar a importância dessas mulheres, principalmente os atos regionalizados. Com Alzira Rufino não foi diferente. E se o sistema racista no qual vivemos invisibiliza pessoas negras, é nosso dever resgatar essas histórias e torná-las referência e inspiração para as gerações futuras.

Alzira é gigante e está presente. A grandeza da sua trajetória e das suas contribuições para o Brasil são eternas.

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