O Universo Individual e Coletivo de Carolina Maria de Jesus

De que maneira a literatura produzida pela mulher negra pode ser compreendida como uma ferramenta de resistência social?

A escritora Carolina Maria de Jesus com o então presidente do Brasil João Goulart, em audiência datada de 1961 | imagem: Arquivo Nacional

Ao observar a história brasileira, verifica-se que há um discurso colonizador e hegemônico, carregado de significados que há muito vêm sendo impostos e fixados em nosso cotidiano. Nesse painel, identifica-se a mulher, sobretudo a negra, como minoria. Ao tematizar sobre as questões vividas por mulheres negras e pobres, a escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) apresenta uma produção literária característica por ser contra-hegemônica. É capaz, com seu texto narrativo, de visibilizar e inspirar mulheres negras brasileiras ainda na atualidade, após mais de 60 anos da publicação do Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, seu livro mais famoso. E o que faz a produção de Carolina assumir um valor literário e, ao mesmo tempo, continuar provocando o fortalecimento de causas, tensões e polêmicas na atualidade?

A atualidade da produção de Carolina Maria de Jesus

Temas desenvolvidos em 1960 por Carolina continuam extremamente atuais, embora haja modificações no discurso empregado pelas autoras negras hodiernamente, bem como na própria forma de manifestação e nos meios empregados para tal (considerando os adventos tecnológicos e as novas maneiras de disseminação de informação). Assim, outra indagação se mostra pertinente: considerando a sociedade brasileira, que viveu um grande ciclo da escravidão negra e foi constituída sob o modelo patriarcal, de que maneira a literatura produzida pela mulher negra pode ser compreendida como uma ferramenta de resistência social?

Veja também:
>> “O povo não sabe revoltar-se“, trecho de Quarto de Despejo
>> “Kiusam de Oliveira: ‘No Brasil, Ensina-se a Ser Racista, Aprende-se a Ser Racista’“, por Duanne Ribeiro

O resgate da voz transgressora de Carolina, incorporada à ideia de enfrentamento a fatores de opressão e hierarquização gerados por questões de gênero, raça, sexualidade e classe, alicerça o cenário atual de desejo e luta de mulheres negras para que suas vozes sejam ouvidas.

Carolina, lançando mão de acontecimentos ligados ao cotidiano vivido por ela, seus três filhos e pelos vizinhos, tece a sua própria narrativa. Apresenta-se como uma narradora capaz de intercambiar e transmitir a sua própria história.

[…] Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são lugares do lixo e dos marginais. Gente da favela é considerado marginais. Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto do lixo. Os homens desempregados substituíram os corvos” (JESUS, 1960, p. 55).

A repetição de temas também não pode ser ignorada e o relato de atividades da vida doméstica talvez seja o reflexo de uma mulher cuja rotina se concentrava, sobretudo, em torno da criação dos filhos e da luta diária – luta que consistia, basicamente, em três tarefas: levantar cedo para pegar água, catar papel e convertê-lo em alimento e escrever.

Carolina rompe o silêncio, revelando o descaso do poder público em relação aos pobres. O conteúdo de sua obra desconstrói a visão imposta por aqueles que detêm o poder, denunciando e mostrando o outro lado de uma estrutura branca e masculina, ancoradas no mito de que vivemos em uma sociedade justa e com igualdade de oportunidades.

Pode o subalterno falar?

A indagação feita por Gayatri Spivak em 1985 no texto Pode o subalterno falar? tem como resposta, dada pela própria professora indiana, que o sujeito subalternizado não pode falar, especialmente a mulher. Esta não pode ser lida ou ouvida, porque nenhum valor é atribuído ao que ela diz. Se o sujeito está posicionado na interseccionalidade, na condição de pobre, negro e mulher, como é o caso de Carolina, estará envolvido de três maneiras nesse silenciamento (SPIVAK, 2010, p. 110).

Carolina se apresentava movida por ideias e causas pelas quais lutava e princípios nos quais acreditava. A escritora não tinha medo de falar ao poder, conforme é possível visualizar no trecho que segue: “Aqui na favela quase todos lutam com dificuldades para viver. Mas quem manifesta o que sofre é só eu. E faço isso em prol dos outros” (JESUS, 1960, p. 36). Defendendo interesses próprios e interesses dos grupos aos quais estava vinculada nas disputas de poder, Carolina se declara recorrentemente em seu texto ao grupo ao qual pertence – o grupo dos subalternos. É necessário, então, refletir sobre as questões relacionadas à classe, raça e ao gênero e como esses marcadores se apresentam e se relacionam na trajetória intelectual e na subjetividade da produção literária de Carolina.

Kimberlé Crenshaw, teórica feminista e professora estadunidense, utiliza a metáfora da interseção para explicar as consequências da interação entre dois ou mais eixos de poder (raça, etnia, gênero, classe etc.). São eixos complexos e constituem avenidas por onde sistemas distintos e excludentes como o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe se sobrepõem e se entrecruzam criando interseções. Mulheres racializadas e pessoas pertencentes a outros grupos minoritários, por exemplo, estão posicionadas em interseções nas quais 2, 3 ou 4 eixos se cruzam – e, portanto, estão dentro de um contexto onde são colididas por um fluxo que vem de várias direções, resultando em colisões simultâneas (CRENSHAW, 2002).

Ressonâncias: obras de mulheres negras na atualidade

A escritora Conceição Evaristo considera a publicação de mulheres negras um ato político e de resistência. A autora explica que não só a condição de gênero vai interferir nas oportunidades de publicação e na invisibilidade dessas mulheres, mas também a condição étnica e social (EVARISTO, 2017, s/p). A partir da escrita, Carolina cria uma forma de resistência à dominação de gênero e classe, demonstrando consciência do lugar em que se encontrava na formação hierárquica nos jogos de disputas de poder.

Carolina era consciente dessa organização, ocupação de espaços e desigualdades sociais. No dia 30 de novembro de 1960, já tendo publicado Quarto de Despejo e vivendo fora da favela, fez o seguinte registro:

[…] Os cultos tem um lugar ao sol. A raça preta não deve ser indecisa. Não projetar, mas procurar realizar concretisar, só os ideaes – Declamei as Noivas de maio. – O prefeito gostou da poesia. A poesia tem erros gramaticaes. Não ha possibilidade de correção. É uma advertência social (JESUS, 2021, p. 15).

O recorte social e racial feito por Carolina nos ajuda a entender que o sucesso de textos literários não depende apenas da qualidade da narrativa. Como salienta Zilá Bernd (1988, p. 17) em sua obra Introdução à literatura negra, “não podemos ser ingênuos a ponto de ignorar os processos de manipulação que sofrem os textos literários e que seu sucesso ou seu esquecimento podem ser forjados de acordo com determinados interesses”.

Quando faleceu em 1977, Carolina estava praticamente esquecida, ignorada pela imprensa e pelas instituições acadêmicas brasileiras. Houve um apagamento de sua memória e pouco se sabia a seu respeito. Somente nos anos 1980 a volta de Carolina à cena literária começou a acontecer. Carolina, então, é redescoberta num contexto de um Brasil que vivia o fim do regime militar e o início da Nova República, quando os movimentos negros e identitários estavam mais fortalecidos e um novo feminismo passava a contemplar identidades distintas, incluindo gênero e raça nas pautas de discussão, abrindo outro espaço para a leitura da produção da escritora.

Outro fator a ser considerado para que o nome de Carolina fosse reincorporado ao campo literário é a formação das associações negras, entidades culturais e as iniciativas no meio acadêmico. Grupos que, de acordo com Cuti (2010, p. 115), contribuíram para a criação de uma vida literária e reforço de uma identidade racial. “É com vontade coletiva que se fazem as particularidades culturais dignas de serem estudadas e para servirem de aprendizado a fim de formar e fazer saber sobre o país”.

A partir de então, os diários de Carolina ganharam força para irem além da representação “exótica” e testemunho documental. A escritora foi resgatada pelos grupos citados e sua obra valorada pelo teor criativo, importância literária e positivação da representatividade negra. A recuperação de textos, personagens e narrativas de Carolina Maria de Jesus pode contribuir para aproximar leitores e preencher lacunas em histórias de experiências e conquistas de outras pessoas (sobretudo, homens e mulheres negras).

É possível afirmar que vivemos um contexto da presença crescente de escritoras negras dentro do mercado editorial. Nomes como Conceição Evaristo, Elisa Lucinda, Eliana Alves Cruz, Cidinha da Silva, Cristiane Sobral, Sonia Rosa, Kiussam de Oliveira, Lia Vieira, Jarid Arraes, entre outras, vêm aparecendo como produtoras de narrativas literárias com certo reconhecimento na academia, entre os leitores e nas premiações. Entretanto, a representação de escritoras não brancas no mercado editorial é ainda bem pequena em relação à totalidade das obras publicadas, remetendo-nos à necessidade coletiva das mulheres negras para que suas histórias sejam lidas.

Aquela que abriu caminhos

A partir dos elementos materiais e simbólicos presentes no espólio literário de Carolina, outras memórias podem ser enriquecidas. Além disso, deve-se pensar no feito literário de uma escritora cuja escrita é um marco de alguém que rompeu as barreiras contra tudo e contra todos os obstáculos impostos.

Os escritos de Carolina revelando os sonhos, as dores e a intimidade da autora estiveram sempre destinados à publicação e leitura de outros leitores, além da própria autora. Para a geração atual de pesquisadores, estudiosos e leitores fica o desafio de interpretar suas narrativas, seus valores e suas reflexões sobre a vida e a sociedade.

A autora, de alguma forma, abriu caminhos e, por isso, continua inspirando como alguém que, com sensibilidade, conseguiu transformar a própria realidade. A partir de Carolina, houve avanço na conquista de espaços. Não chegamos, porém, ao ideal desejado e, por isso, nos mantemos em movimento.

Referências bibliográficas

BERND, Z. Introdução à literatura negra. Editora Brasiliense: 1988.
CRENSHAW, K. “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”. In: Revista Estudos Feministas, v. 10, p. 171-188, 2002.
CUTI, L. S. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro,2010.
EVARISTO, C. Ponciá Vicêncio. Rio de Janeiro: Pallas, 2020.
JESUS, C. M. de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1960.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. Série Sinal Aberto. São Paulo: Ática. 2001.
SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Minas Gerais: Editora UFMG, 2010.

Autor

  • Formada em Letras Português/Literaturas, mestra em Memória e Acervos e especialista nas áreas de filosofia, literatura infantil e juvenil e literatura brasileira de autoria feminina. Professora aposentada da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro e pesquisadora de narrativas de escritoras negras brasileiras, já participou de algumas antologias, entre elas Carolinas: a Nova Geração de Escritoras Brasileiras (2021), resultado do processo formativo da Festa Literária das Periferias (Flup) 2020, evento que homenageou Carolina Maria de Jesus. Atua como docente em cursos de pós-graduação em literatura infantil e juvenil e literatura brasileira de autoria feminina.

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