Apresentação: Páscoa

No início era a Capitu. Uma revista de cultura, meu trabalho de conclusão do curso de jornalismo na Universidade Santa Cecília (Unisanta). Como eu contei antes, perguntei ao meu professor Márcio Calafiori se dava pra fazer um trabalho assim sozinho, e ele disse, sem hesitação, “dá”. Isso em 2007. Um ano depois, nascia ela, que daria origem a esta Úrsula. Calafiori me orientou nesse processo.

Me indicou as entrevistas da Paris Review com escritores, aulas de como interrogar obras e se aprofundar em perspectivas pessoais. Me provocou com uma Capitu alternativa – não a de Machado, mas a de Dalton Trevisan… –, assim como me instigou a reler Dom Casmurro. Editou todos os textos da nascente revista e até escreveu para ela, sobre Isaac Bashevis Singer (sempre lembro dele – na “redação” da faculdade, sentado a um computador – elogiando esse autor: “Ele é de um humanismo!”). Relendo agora e-mails antigos, vejo que não foi um processo sem atritos: Calafiori foi duro e objetivo na edição e nas sugestões ao projeto, percebo que resisti às vezes de forma imatura. Recordo que, na banca do TCC, ele afirmou: “Eu não fiz nada”. Era um elogio. E uma mentira. O melhor editor potencializa e desaparece.

Capitu durou oito anos, quando menos acabou e mais se transformou (fundida à sua irmã, a Maquiavel, de política), nesta Úrsula. Ao longo desse tempo, mantive contato com Calafiori pela internet. Ele escreveu outras vezes à revista (por exemplo, esta crônica sobre como foi viver em Brasília), comentava meus textos, participou de um projeto literário meu (o conto “José Deodato”, inédito), estava sempre presente. Não lembro bem, mas me parece que em algum momento, me propôs: “Vamos fazer um livro de entrevistas?”. Não deu tempo. Em 12 de maio de 2019, Calafiori se foi, por complicações decorridas da diabetes. Esta antologia, publicada no aniversário de cinco anos da Úrsula, é uma homenagem ao orientador, ao professor e jornalista – e, descobri, contista, poeta, dramaturgo – que me ajudou a construí-la.

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Nascido em 1957 – quando morreu, tinha 61 anos –, Calafiori se formou em jornalismo pela Faculdade de Comunicação de Santos (Facos) em 1986. Em entrevista a mim, contou que sempre quis ser jornalista. Atuou em todas as funções do jornalismo: foi redator, repórter, revisor, editor, secretário de redação, chefe de reportagem, ombudsman, tendo passado pelos jornais Cidade de Santos, A Tribuna, Diário do Grande ABC e Folha de S.Paulo. De 1999 a 2012, foi professor da Unisanta. A primeira parte deste memorial toca nessa atividade: são seis críticas culturais e cinco entrevistas (mais um perfil) que abordam literatura, cinema, música, com nomes de destaque como os do músico Gilberto Mendes e do cineasta Maurice Legeard (entrevistado para De Olho na Tela, revista produzida por Calafiori quando ainda estudante) uma atenção à memória da cultura e à política. Também é marcante a presença da cidade de Santos, em São Paulo, como pano de fundo das conversas.

Depois disso apresentamos toda uma produção literária que eu desconhecia. São 26 contos, oito poemas e uma peça de teatro. A maior parte dos textos é republicada do blog Leve um Casaquinho, com que Calafiori contribuía e que nos permitiu a reprodução; outros foram coletados com outra professora minha, Márcia Okida (amiga a quem ele dedicou as poesias “Fim de Tarde“, “Dulce” e “Poema de Natal“). É um conjunto de qualidade irregular – será que se pode dizer isso em uma homenagem? Calafiori, creio, me diria, até enfaticamente, que sim (quando postei no Facebook um trecho que apaguei do meu livro As Esferas do Dragão, e de que gosto um tanto, ele disse sem firulas: “Fizestes bem em apagar isso“). Pois bem, irregular. Ofereço contudo apenas uma leitura de sobrevoo; o resto é com vocês.

Os contos têm bons momentos. Dialogam bastante com a história do cinema – por exemplo, referenciam o diretor Federico Fellini –, buscam o humor, a forma curta, a captação da rapidez, dos silêncios e de outras expressividades do diálogo. Seu lado mais fraco está em como são representados homens e mulheres e as relações entre ambos: muito suscetível ao estereótipo, por vezes machista, com pouca visão crítica sobre a imagem que cria, essa escrita retrabalha talvez influências do citado Trevisan e de Rubem Fonseca, quer fornecer um quadro cru e/ou cômico das “coisas como elas são” – no ambiente político de hoje, é uma composição que termina muito frágil. Por conta de análises nesse sentido, exclui dois contos da seleção: “Não Chore Mais” (um abuso contado de forma acrítica e humorística) e “As Aventuras da Talentosa Jennifer” (em que a abusada subjuga o abusador, em roteiro bem superficial). Um destaque é “Facebook“, que emula o ambiente textual e fragmentário dessa rede social.

A dramaturgia “Ametista” também se inspira na vida de internet, mas agora exibindo uma cena de chat on-line. É uma conversa de flerte como “As Surpresas do Amor” e  “Macaco“. Vão na direção do que já falei sobre as relações homem-mulher, ou, quem sabe, representam bem o que certa época e certa geração pode pensar sobre isso. Talvez indiquem o que o autor pensava sobre o amor e sobre o papel e a postura de cada parte nele. É interessante, por exemplo, como a preocupação com a aparência por parte do homem é ridicularizada ou pelo menos posta em cheque; e as mulheres não chegam a ser personagens esféricas, como se diz; planas, até frívolas, permanecem. É preciso destacar que há outro veio nesses contos (veja nesse sentido “A Bicicleta“), com fluxo mais encorpado e tom mais pungente.

(Calafiori com certeza me repreenderia o uso dessa palavra incomum, “pungente”.) O melhor, na minha opinião, nessa antologia são os poemas. O gosto pela forma curta, que sempre é um constrangimento deliberado da prosa (não é?), encontra na poesia seu lugar fértil e tradicional. Neles, o autor fala de maneira coloquial, com humor e delicadeza, de recordações e do cotidiano. Destaco dois. Em “Dulce“, a memória da mãe (no caso, a da professora Márcia, segundo ela me contou) é dita a Páscoa do eu-lírico. Posso sugerir uma profundidade maior nesse aparte, indicar que o símbolo dessa data católica é a ressurreição – e, assim, na rememorização teríamos algo como uma ressurreição? (Calafiori talvez me repreendesse por interpretar em excesso). Já “Uma Lembrança Remota” exibe algo trivial: um engasgamento. Com a garganta emperrada, diz, “tenho consciência de que estou vivo – e que vou morrer”. Mas o alívio vem: “Ah! Como é bom respirar”. Sim, não nos damos conta disso até que–

Esses versos, enquanto escrevo este texto, nesta condição, vêm com uma tristeza particular.

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Espero que a publicação desses textos amplie a leitura de Calafiori e traga outras opiniões sobre a sua produção. Como se nota em “Os Mortos“, aqueles que se foram também precisam de um dedo de prosa…

Além de Márcia Okida e Chico Marques, editor de Leve um Casaquinho, agradeço também a Rodrigo Lucheta, do site Machine Deleuze, pela cessão de textos. Vou terminar esse texto do jeito que meu professor terminava os e-mails que revisitei nessas últimas horas:

Grande abraço, Márcio, do Duanne.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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