Ícone da cultura pop e da literatura, Alan Moore critica Bolsonaro e apoia Lula

Em carta, o autor analisa a política internacional e as condições ambientais, indicando os efeitos de uma reeleição de Bolsonaro nelas, contrapostos a uma vitória de Lula

O quadrinista Alan Moore

O quadrinista e escritor Alan Moore, um dos mais importantes nomes da cultura pop – autor de Watchmen e V de Vingança, entre outros – redigiu, a pedido da página Alan Moore BR, uma carta sobre as eleições brasileiras. O texto, cuja tradução foi publicada hoje pela página (o original em inglês está para ser postado), descreve uma reeleição de Jair Bolsonaro como catastrófica, na medida em que o atual presidente tanto não é adequado ao momento pelo qual o planeta e a humanidade passam quanto integra tendências políticas internacionais destrutivas.

“Eu não conheço ninguém com um pingo de consciência e compaixão que não se choque com o que Bolsonaro fez”, escreve Moore. Já sobre Lula, declara que, apesar das suas posições anarquistas o prevenirem contra o endosso a qualquer político, ele “parece ser um indivíduo bem raro. Suas políticas parecem ser justas, humanas e concretizáveis”. À Úrsula, o administrador da Alan Moore BR contou que a página já mantinha contato com Moore e que ele o conheceu pessoalmente. A autenticidade da carta foi confirmada pela filha do autor, Leah Moore.

Leia abaixo a íntegra do documento. O conteúdo foi ligeiramente revisado pela revista.

Caríssimo Brasil,

Estamos exaurindo rapidamente nossas chances derradeiras de salvar o planeta e seus povos. Nosso mundo está mudando mais rápido que nunca e forçando-nos a adaptar mais rapidamente se quisermos sobreviver. De uma sociedade caçadora-coletora à agricultura, da agricultura à indústria, da indústria ao que quer esteja tomando forma agora – um novo estado para o qual sequer há nome ainda – a humanidade já se deparou com esse tipo de mudança de grandes proporções antes, embora não seja frequente. Tais transições não são causadas por forças políticas, mas pelos irrefreáveis movimentos da maré da história e da tecnologia, uma maré em que podemos guiar nossas embarcações para nosso proveito ou sermos varridos por ela. A Terra está mudando, mudando pela necessidade de se tornar um lugar novo, e apenas nos resta mudar com ela ou então abrir mão para sempre da biosfera que nos mantém. Acredito que a maioria das pessoas sabe disso bem dentro de seus corações e sente isso em seus estômagos.

Ainda assim, aproximadamente ao longo dos últimos cinco anos nós vimos por todo o planeta o ressurgimento voraz exatamente das ideias político-econômicas que nos colocaram nessa situação obviamente desastrosa desde o princípio. A escancarada agressividade desse avanço da extrema-direita me parece tão violenta, e ainda assim desconectada de qualquer realidade, que ela somente pode ser originária do desespero; o medo histérico sentido por aqueles que estão mais bem-posicionados nas estruturas de poder do mundo, que sabem que o novo mundo pode, em última instância, não ter mais lugar para eles. Temerosos por suas próprias existências e pela existência da visão de mundo do qual se beneficiam, ao longo deste último quinquênio eles encheram o palco mundial com personagens de pantomima cada vez mais barulhentos, exagerados e fanfarrões, para os quais nenhum ato é corrompido ou desumano em excesso e nenhuma linha de argumentação é descaradamente absurda.

Desavergonhadamente monstruosos, eles têm perseguido minorias raciais e religiosas, ou seus povos nativos, ou os pobres, ou as mulheres, ou pessoas de outras sexualidades, ou todos estes juntos. Enquanto a pandemia ainda se desenvolvia, eles colocaram seus posicionamentos políticos e suas doutrinas financeiras acima da segurança de suas populações, capitaneando centenas de milhares de mortes potencialmente desnecessárias; centenas de milhares de famílias devastadas e de comunidades devastadas. Com suas nações em chamas, ou inundadas, ou desidratadas pela seca, eles insistiram que as mudanças climáticas eram uma falsidade da esquerda para incomodar a indústria e rotularam como terroristas os ativistas ambientais e sociais. Adotando o estilo circense-fascista do italiano Silvio Berlusconi, nós tivemos o perigoso teatro de insurreição de Donald Trump na América e as desgraças destrutivas de Boris Johnson e (atualmente) seus substitutos no Reino Unido. E, é claro, o Brasil vem tendo Jair Bolsonaro.

Apesar de nós do Hemisfério Norte obviamente contribuirmos com muito além da nossa cota de figuras políticas horrendas para a situação do mundo, eu não conheço ninguém com um pingo de consciência e compaixão que não se choque com o que Bolsonaro, ao assumir o cargo na marola de Trump, fez com seu grande e lindo país, junto com o que continua a fazer com o nosso relativamente pequeno e ainda belo planeta. Nós testemunhamos com desespero enquanto, rezando pela mesma cartilha de sua inspiração americana, Bolsonaro atacou povos indígenas do Brasil, homossexuais e os direitos de suas mulheres de interromper de forma segura a gravidez, alimentando um incontrolável incêndio de ódio como cortina de fumaça para suas agendas sociais e econômicas, ao passo que inundava sua cultura com armas. Vimos ele tentar se gabar de seu jeito de lidar com a pandemia jorrando sua idiotice anti-vacinal, e também observamos a expansão territorial dos cemitérios feitos às pressas; covas lado a lado no solo cinza com flores mortas dispersas e lápides improvisadas trazendo cor.

Presenciamos como ele respondeu à proposta de novas leis ambientais internacionais pela simples intensificação de sua devastação suicida das florestas tropicais, asfixiando nossa atmosfera com a queima de florestas, desalojando ou executando pessoas que viveram nestas regiões por gerações, supostamente em conluio ou fazendo vistas grossas para o assassinato de jornalistas que investigavam a brutalidade dessa limpeza étnica. Uma respeitada revista científica britânica da qual sou assinante, New Scientist, recentemente descreveu as próximas eleições como possivelmente o ponto crítico sem retorno na batalha de vida ou morte de nossa espécie contra a catástrofe climática que nós mesmos causamos. Em poucas palavras, ou Jair Bolsonaro continuará, lucrativamente, satisfazendo os interesses corporativos que o apoiam, ou nossos netos terão o que comer e respirar. É uma coisa ou outra.

Na qualidade de anarquista, existem pouquíssimos líderes políticos que eu seria completamente capaz de tolerar, e menos ainda os que eu poderia endossar, mas por tudo que soube e li a respeito, Luiz da Silva, o Lula, parece ser um indivíduo bem raro. Suas políticas parecem ser justas, humanas e concretizáveis e, da forma como entendo, ele se comprometeu a reverter muitas das decisões tão desastrosas de Bolsonaro. Reparar o estrago destes últimos cinco anos certamente não será fácil e nem será barato, e [Luiz Inácio Lula] da Silva herdará um cenário político terrivelmente desfigurado. Mas pelo menos já dá pra ver que ele parece ser um candidato que reconhece que a humanidade está atravessando uma das mais incomuns transformações sísmicas e percebe que precisamos mudar a forma como vivemos se efetivamente quisermos sobreviver. Ele parece ser um político comprometido com o futuro, com seu trabalho honesto e com suas possibilidades justas e maravilhosas, e é melhor que a flagelante e devastadora agonia fatal de um passado sem sustentabilidade.

A próxima eleição no Brasil se encontra equilibrada sobre o fio de uma faca. E, por tudo que eu disse acima, o mundo inteiro depende dela. Se você alguma vez apreciou alguma das minhas obras ou sentiu alguma empatia pelas inclinações humanitárias delas, então, por favor, saia e vote por um futuro apropriado para seres humanos, por um mundo que seja mais que as latrinas de ouro de suas corporações e de suas marionetes.

Vamos colocar as injustiças dos últimos cinco anos, ou talvez dos últimos 500 anos, no passado.

Com amor e com confiança,

De seu amigo,

Alan Moore

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