Maurice Legeard: Cinema, o Bolso e a Vida

Na mesa de um bar em Santos, a melhor entrevista do cineasta? Ao final, ele diz: “Meus amigos, estou inteligentíssimo hoje, não sei por quê”

A entrevista a seguir foi publicada em outubro de 1983 numa revistinha alternativa de cinema chamada De Olho Na Tela. A ideia de fazer a revista foi do Fausto Siqueira, meu colega de turma do curso de jornalismo na Faculdade de Comunicação de Santos, a Facos. Ao discutirmos a pauta, não tivemos dúvida de quem entrevistar para o número de estreia: Maurice Legeard. Fomos procurá-lo na Cadeia Velha, onde ele instalara recentemente, numa das celas, a Cinemateca de Santos. Maurice concordou com tudo e acertou o encontro para um ou dois dias depois. Na data combinada, ao nos receber, pediu que Fausto e eu aguardássemos um instante, que em cinco minutos estaria de volta. Não voltou. No dia seguinte, retornamos à Cadeia Velha e dessa vez fomos logo ligando o gravador. Maurice se retraiu, quis saber o que íamos perguntar, titubeou, num gesto característico coçou a cabeça e disse: “Que tal fazermos essa entrevista à noite, no Chope da Terça, aqui mesmo na Praça dos Andradas? Assim a gente bebe umas e o clima fica mais descontraído. Também quero apresentar pra vocês um chapinha, um camaradinha, o Miro, um desenhista sensacional que colabora comigo.” O encontro foi marcado para as dez da noite. Quando chegamos ao Chope da Terça, Maurice já estava entornando conhaque, enquanto levava uma conversa repleta de bom humor com o Miro, o único que não bebeu durante o encontro. Claro, a ideia era falarmos de cinema, mas não preparamos nenhum roteiro, pois com Maurice a conversa fluiria, como fluiu, mas a meu ver um pouco sem rumo. Não importa. Sempre que topo com o Argemiro Antunes por aí, ele relembra: “Aquela entrevista foi a melhor que o Maurice já deu. O Dr. Jekyll foi se transformando devagar.” O Dr. Jekyll deve ser porque, sob o efeito do álcool, Maurice ia se alterando. Desde 1953, quando se integrou ao Clube de Cinema, até morrer, em 25 maio de 1997, quando então dirigia a Cinemateca, Maurice Legeard, francês de nascimento, trouxe para Santos centenas de obras-primas que fizeram a história do cinema e que jamais teriam sido exibidas aqui se não fosse por ele. A fim de transcrever essa entrevista, tive de recorrer ao Miro, que mantém em casa um valioso acervo particular de cinema. Eu mesmo não tenho mais nenhum exemplar da revista De Olho Na Tela, que durou apenas dois números. Para efeito de clareza, mexi de leve em alguns trechos da entrevista original. É preciso levar em conta também que em 1983 o contexto histórico, social e tecnológico era outro, além de não existir ainda o politicamente correto. Quando ligamos o gravador, Maurice Legeard já estava falando:

Maurice Legeard — …o problema do filme brasileiro começa pela película virgem. Como eu posso fazer um filme se eu dependo da Kodak? Se eu faço o planejamento para a produção, custa tanto. Amanhã, a Kodak não quer que eu termine o filme, vai me segurar o orçamento, diz que agora ele custa o dobro. Então eu não termino o filme. Ninguém me proíbe de fazê-lo, mas de repente acaba. Tem também um mecanismo aí, uma engrenagem: Vamos supor que um grupo financeiro americano reconheça que eu tenha capacidade pra desenvolver algo. Então [o grupo] vem me perguntar do que eu preciso. Me fornecem tudo: dinheiro, equipamentos etc. e vão chupar todo o meu know-how. Quando chuparem tudo, e eu não tiver mais nada pra apresentar, vão aproveitar o know-how pra eles, porra! Eu sobro, vou sobrar. Retiram todo o apoio. Tô na miséria outra vez. O que acontece no Brasil quando há um processo em desenvolvimento? Eles [os americanos] vêm aprender o know-how. “Ah, é assim que se faz? Bom, sacamos o negócio.” Aí então eles passam a fazer melhor. Veja que até a expressão “know-how” aqui empregada é a codificação do negócio. Eu já estou codificado. Inconscientemente, eu já fui codificado pra servir de instrumento. Já tá tudo programado, porra!
OLHO — É um processo mecânico-cultural?
Maurice Legeard — Não é cultural. É um processo mecânico-mental. Eles abrem a regra do jogo da mente. Eles determinam: “Aquele cara vai entrar na nossa.”
OLHO — …a mente, a cultura…
Maurice Legeard — Não existe cultura. Cultura é ficção.
OLHO — Por que não existe cultura?
Maurice Legeard — A cultura é uma impressão. Também não existe obra de arte. É uma impressão, é uma convenção.
OLHO — Não existe obra de arte?
Maurice Legeard — Não existe obra de arte pelo seguinte: se eu levar um Gauguin, um Cézanne ou um balé para uma grande população de condição econômica desfavorável, essa população não saberá o que é isso, o que é obra de arte. Eu vou levar a Vênus de Milo pra Cubatão? A arte é pra uma minoria, um diletantismo. Aquele painel famoso, o Guernica, do Picasso, esteve no Brasil e ninguém deu importância. Não tinha nem um guarda tomando conta daquilo. [Maurice se refere à 2ª Bienal de São Paulo. Realizada em 1953-1954, o evento ficou conhecido como a “Bienal de Guernica” por apresentar a obra mais famosa do artista espanhol, um dos marcos culturais do século 20]. Vinte anos depois, a obra foi levada para o Japão. Milhares e milhares de pessoas fizeram fila pra ver aquilo, pagando não sei quanto pelo ingresso, com trinta, quarenta guardas tomando conta do painel.
OLHO — Mas você não acredita nem em níveis de cultura?
Maurice Legeard — Não existe cultura na medida em que um povo não sabe o que é isso.
Argemiro Antunes (Miro) — Os filmes do Glauber Rocha, por exemplo, só passaram a ser reconhecidos aqui, quando foram reconhecidos na Europa pela crítica francesa. Quando o Glauber ganhou o prêmio de direção do Festival de Cannes com o Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro [em 1969], começaram a acordar aqui para os filmes dele.
OLHO — Aí entra uma questão muito discutida no cinema nacional. Alguns cineastas, tipo Ozualdo Candeias, Júlio Bressane e Ana Carolina, que se propõem a fazer filmes para uma elite…
Maurice Legeard — Não existe filme para o povo, não existe filme para a elite.
OLHO — Então qual seria a função do cinema no Brasil?
Maurice Legeard — Eu estou procurando a lógica do Brasil pra saber o tipo de filme que eu vou fazer aqui. Saber qual é a linha social, política etc. que o Brasil adota pra poder entender o brasileiro. Filme feito no Brasil é uma coisa, filme brasileiro é outra. Tem um cineasta sueco que outro dia fez um filme tremendamente brasileiro. Já o Eu Te Amo, do Arnaldo Jabor…
OLHO — …tremendamente americano…
Maurice Legeard — …ou francês, ou italiano ou qualquer outra coisa, menos brasileiro.
OLHO — É válida a iniciativa de filmes como Bye Bye Brasil [direção de Cacá Diegues, 1980] que utilizou atores da Globo e conseguiu bilheteria?
Maurice Legeard — Bye Bye Brasil não deu dinheiro. Não deu dinheiro por causa do mercado internacional competitivo. O fato do filme fazer sucesso no Brasil não quer dizer nada. O ET fez sucesso no mundo inteiro. Isso é o que se chama fazer sucesso. Não adianta um filme fazer sucesso em Cubatão, porra! Lotar cinema em Cubatão é sucesso? Ah, pelo amor de Deus!
OLHO — Então como é que ficam os filmes herméticos dos diretores brasileiros ditos de vanguarda?
Maurice Legeard — Em primeiro lugar: não existe filme hermético. Existem filmes que fogem a nossa compreensão porque não temos capacidade pra entendê-los, só isso. Em matemática, não há problema hermético e sim matemático. Ou você entende matemática ou não entende. Ou você sabe ou não sabe. Não adianta fazer um filme de arte se o público não sabe o que é um filme de arte.
Argemiro Antunes (Miro) — O público está condicionado ao cinema americano, está colonizado pelo cinema americano. Desde criança a gente vê os filmes americanos. Foi criado um condicionamento.
OLHO — Maurice, como é que se muda isso, para que os filmes de arte possam ser assistidos no Brasil por um público maior?
Maurice Legeard — Primeiro, devemos nos remontar às origens. Hoje, rotulamos o cinema de “arte”. O cinema não nasceu arte. Nasceu de uma aceitação popular. Chaplin não nasceu gênio. Ninguém nasce gênio, torna-se gênio ou tornam-no. O cara é criador. Eu pergunto: Ele tem consciência da sua genialidade? Não. Van Gogh hoje é genial. Na época, era um louco. Hoje, a obra de arte é feita para os caras que detêm o poder econômico a explorarem cada vez mais. Eu acho que Beethoven e Schubert viviam dificuldades econômicas na sua época. Hoje, os sanguessugas se aproveitam de tudo só pra ganhar dinheiro. Hoje, Van Gogh vale milhões. Na época, era um vagabundo. O artista não é valorizado.
OLHO — Por que não valorizaram o Lima Barreto [não o escritor, mas o cineasta Lima Barreto, diretor de O Cangaceiro, de 1953, seu filme mais famoso] que deu certo economicamente e tirou o cinema brasileiro do obscurantismo?
Maurice Legeard — Enquanto tiver o Spielberg na parada…
OLHO — Na época não havia o Spielberg.
Maurice Legeard — Mas havia outros. Na época do Lima Barreto havia um cara que faturava horrores chamado James Dean, que era um ator muito indigente. Havia uma atriz como a Marilyn Monroe, uma atrizinha de segunda categoria. O problema não é de ser, mas o de fazer de conta que é. É preciso vender uma imagem da ficção, da ilusão. Ela [a Marilyn] não era mais que uma Norma Bengell ou uma Jeanne Moreau, mas criam os mitos para aferir os lucros. A questão não é a qualidade. Nunca ninguém fez uma pesquisa pra saber se a Coca-Cola é boa ou ruim. Toma-se, compra-se, paga-se.
OLHO — Que perspectivas você vê para o cinema brasileiro?
Maurice Legeard — Como organizador de programas culturais, eu não me preocupo com perspectivas, e sim com retrospectivas.
OLHO — Maurice, por que essa abnegação pelo cinema? É paixão, amor?
Maurice Legeard — Não, é fome. Não há outra saída. Eu aprendi a pular corda, me pagaram pra pular corda. Até hoje eu não sei pra que serve isso.
OLHO — Queremos entender a tua paixão pelo cinema. Qual é o ponto de contato entre Maurice e o cinema?
Maurice Legeard — É o desencontro. O cinema desencontrado, eu desencontrado, nos encontramos. Nós nascemos do desencontro.
Argemiro Antunes (Miro) — Agora há pouco a gente falava da formação do público em termos de cultura etc. Nos anos 60, se formou um público voltado ao cinema. O filme O Grito, do Michelangelo Antonioni, passou em 1968 no Cine Roxy [em Santos] e tinha público. Até a decretação do AI-5 [em 13 de dezembro de 1968] estava se formando um público. Hoje eu não sei se teria público para O Grito. O pessoal está muito dispersivo, colonizado.
OLHO — Miro, você acha que em 1968 o público não estava colonizado?
Maurice Legeard [não deixando Miro responder]  Não, não estava. Não estava colonizado como está hoje. Tinha consciência da sua própria consciência. Depois do AI-5, o público não perdeu a consciência, tiraram-lhe a consciência. Não perdeu, tiraram-lhe.
OLHO — Então o nome disso é medo?
Maurice Legeard — Não. Fizeram uma lobotomia geral, com efeitos psicológicos graves. Por exemplo: basta você ser inconveniente pra ser taxado de comunista. Ser comunista é outra coisa. É fazer parte de um partido, é conhecer a teoria. Ser comunista não é andar com um negócio vermelho debaixo do braço. Isso é ridículo. Eu vivia uma situação liberal, nem de direita nem de esquerda, e era suspeito de ser comunista porque fazia cinema junto aos operários e aos estudantes. Mas não precisa ser comunista pra fazer isso. Pode até ser reacionário. Agora, eu sendo um cara de boa índole, mesmo reacionário, fazendo isso, vão me taxar de comunista? Tira esse cara daí porque é comunista. Isso é um absurdo. Tiraram o raciocínio da gente. Se raciocinar, você é comunista! Pensar é proibido. Questionar, indagar, perguntar, tudo isso é proibido. Ô atrevido, tá desafiando a autoridade, tá?
Argemiro Antunes (Miro) — Voltando ao cinema… Quando estávamos falando do Lima Barreto e de O Cangaceiro, eu acho que o filme fez sucesso porque foi feito em cima dos moldes do faroeste e de todos aqueles valores do cinema americano. Há uma diferença entre O Cangaceiro e O Pagador de Promessas [direção de Anselmo Duarte, 1962, Palma de Ouro no Festival de Cannes], que já é uma conscientização cultural brasileira voltada para as nossas raízes.
Maurice Legeard — À medida que é determinado o mercado, não se permite que ninguém mais entre nesse mercado. Então você pergunta pelo sucesso dos filmes brasileiros lá fora. Por exemplo, por que não o sucesso de filmes húngaros no Brasil? Porque você vai tirar o mercado dos outros. Então não interessa elogiar o teu filme, nem passar no meu mercado. Eu quero invadir o teu mercado e que você não tome o meu.
OLHO — Ultimamente, a crítica estrangeira anda elogiando filmes brasileiros…
Maurice Legeard — Esse negócio de crítica estrangeira é muito relativo. O cara bem intencionado em cinema não tem fronteiras. Ele tanto considera o filme russo, japonês, tcheco, hindu… Pra ele, tudo é cinema. Ele não é como nós, brasileiros, que temos preconceito, por exemplo, contra filme português e argentino. Ah, é português, é argentino, é mexicano? Isso aí pega mal, não é cinema. Por quê? Argentino não tem dignidade? Agora se o filme for americano, pode ser a maior porcaria que ninguém tem prevenção. Daí eu digo que isso aqui é uma colônia cultural. Tem gente no Brasil paga pela Motion Pictures pra elogiar filme americano na TV, no rádio, na revista, no jornal, pro cara escrever a favor do cinema americano. Não sou contra o cinema americano. Muito pelo contrário, acho um grande cinema, um cinema maravilhoso. Agora, é inadmissível, por exemplo, que um crítico japonês critique o cinema japonês e só elogie o americano. É japonês, é brasileiro, é hindu, é francês? Aí tem defeito. Isso acontece no Japão e acontece no Brasil. Tem gente no Brasil recebendo dinheiro das grandes companhias americanas só pra falar de Hollywood. É a isso que chamam de crítico. Isso não é crítico, é um cara promocional.
OLHO — Você acha que a formação de uma indústria de cinema genuinamente brasileira só seria possível se os [filmes] americanos fossem banidos daqui?
Maurice Legeard — De certa forma sim. Não vou dizer banidos. Não vou empregar essa palavra. Mas aí entra um problema de ordem econômica, extracinematografica. O preço do café brasileiro é cotado nos Estados Unidos e o preço do café é conveniente ao Brasil à medida que há liberdade do cinema americano em agir aqui, o que não acontece, por exemplo, na França, outro país capitalista. O americano não quer deixar o capitalismo francês ou o japonês entrar aqui. A Gaumont do Brasil, uma multinacional francesa terrível, está tendo dificuldades para se instalar aqui.
OLHO — O Júlio Bressane disse certa vez que nós estávamos fazendo os melhores filmes do mundo e que ninguém estava entendendo nada. O que você acha disso?
Maurice Legeard — É capaz, é capaz. Porque nós não temos discernimento nenhum. Veja bem, eu acompanho cinema há alguns anos. Quando O Cangaceiro passou aqui, a aceitação do público foi medíocre. O filme passou na Europa, fez sucesso, e quando voltou, voltou com outra marca. Voltou com a marca da Europa, não do Brasil. Com O Pagador de Promessas foi a mesma coisa. Agora o filme é orgulho nacional, pois foi premiado lá fora.
OLHO — Então você concorda com o Bruno Barreto quando ele diz que Gabriela, Cravo e Canela não fez sucesso internacional porque foi lançado primeiro aqui?
Maurice Legeard — Não concordo. Eu falo em cinema e ele em comércio. A objetividade é outra. Por exemplo, amigo meu pessoal, excelente criatura, o cara é argentino: Hector Babenco. Chegou ao Brasil já grande cineasta. Fez O Rei da Noite, seríssimo, fez Pixote, seríssimo, e quem fala do Hector Babenco aqui? Só se fala no momento. Entenda, gente, nós precisamos criar vedetes. Todo mundo vai ver o filme de um Fellini. Porra, nós temos um Babenco! Isso é importante. Mas só falam no momento. É preciso criar estrelas. Caras como o Babenco estão no mesmo nível de um Fellini, de um Bergman, não ficam devendo nada pra eles, não.
OLHO — O que você acha dos filmes politicamente engajados?
Maurice Legeard — Não tem filme engajado, não tem filme político. São filmes de denúncia social, são filmes que perguntam onde está a razão, se desse lado, daquele… Existe esse problema da censura achar que o filme é subversivo. Numa sociedade que procura a verdade, o equilíbrio social, não há filmes subversivos.
OLHO — Por exemplo, um cineasta como o Costa-Gavras, que faz filmes de denúncia política de regimes ditatoriais em países da América Latina, na Grécia, que é um cara que tem o cinema dele absorvido pelo capitalismo, concorre a Oscar…
Maurice Legeard — Primeiro, ele não faz denúncia nenhuma, ele constata um fato, uma realidade existente. Ele não faz denúncia. Nós tivemos no Brasil Pra Frente, Brasil [direção de Roberto Farias, 1982] que é uma constatação de fatos reais. Agora se esses fatos reais foram inconvenientes para o poder, isso é outra coisa, mas o fato é o fato. Me recuso a fazer cinema principalmente por causa disso. Eu tenho uma interpretação sobre o Vladimir Herzog [jornalista assassinado pela ditadura militar em outubro de 1975]. Como é que eu posso filmar isso no Brasil? Muito difícil. Pra fazer um filme como Pra Frente, Brasil, eu tenho que ir para a Espanha, Portugal etc. O grande erro do Roberto Farias é fazer um filme como ele fez no Brasil. Isso é inadmissível, falta liberdade.
OLHO — O final do filme tem uma concessão. Aquela vingança contra os torturadores. Isso não existiu. Aquilo é pra dar uma satisfação ao público, fazer média com ele.
Maurice Legeard — Eu sou o Costa-Gavras e vou fazer um filme bacana, bem bolado, chamado A Bomba do Riocentro [Promovido por setores do exército, o alvo do atentado seria o Pavilhão Riocentro, no Rio, durante um show em comemoração ao Dia do Trabalho, em 30 de abril de 1981. A bomba explodiu antes da hora, matando um sargento e ferindo com gravidade um capitão]. Vou fazer esse filme no Brasil, posso?
OLHO — Outro dia perguntaram pro Hugo Carvana se era possível fazer cinema no Brasil com a Embrafilme. Ele respondeu que não era possível. O que você acha disso?
Maurice Legeard — Se você tiver dinheiro pra fazer o filme, não precisa da Embrafilme. Como a nossa condição econômica está muito desfavorável, a turma procura a Embrafilme. A Embrafilme não é nada mais que um banco, um banco de cinema, um banco comum…
OLHO — É um órgão capitalista que vive de lucro.
Maurice Legeard — É óbvio. Eu sou um banqueiro. Eu quero o meu dinheiro. Se esse dinheiro vem de filme, não interessa. O que importa é que ele venha.
OLHO — Como você explica o sucesso de filmes pornográficos financiados pela Embrafilme?
Maurice Legeard — O problema do filme pornográfico é a repressão.
OLHO — O pessoal ter sido reprimido pelo regime durante esses anos todos?
Maurice Legeard — Reprimido em termos gerais. O cara quer ter uma porta aberta, seja essa ou aquela. Então sai um filme de sexo, entre outras razões. O troço é todo mecanizado, é bem feito. O cara tá de saco cheio, não vai perder tempo com filmes sérios, sociais. O cara quer ver mulher boa.
Argemiro Antunes (Miro) — Existe todo um programa que visa a alienação da juventude. Você hoje pega qualquer jovem, até mesmo universitário, que nem sabe o que aconteceu nos anos 60. A turma vai muito a fliperama, não sabe nada de repressão, nem do Cinema Novo, nem do governo do Juscelino…
Maurice Legeard — Tem o 1984, do George Orwell, onde tudo é controlado. E aqui, a partir de 1964, não foi tudo controlado? Você não precisa pensar, o Estado dá tudo pra você. Há robotização da coisa, a codificação. Você não precisa pensar, o governo pensa por você. Isso é o maior crime lesa-pátria que um governo pode fazer. Proibiram-nos de pensar.
OLHO — Miro, Inocência [1983] tinha que ser feito pelo Humberto Mauro, pelo Lima Barreto ou pelo Walter Lima Júnior, que o acabou fazendo?
Argemiro Antunes (Miro) — Pelo Lima Júnior.
OLHO — Por quê?
Argemiro Antunes (Miro) — Porque Lima Júnior foi um cineasta que apareceu no Cinema Novo, uma escola de cinema com uma linguagem nova etc. O filme tá muito bem feito, os atores bem dirigidos.
Maurice Legeard — O filme é uma obra-prima global, é uma orquestra onde ninguém desafinou.
OLHO — Maurice, você não acha que às vezes o cinema brasileiro sofre crises de criatividade?
Maurice Legeard — Absolutamente. Sofre bloqueios econômicos.
OLHO — Você acha que a televisão teve alguma influência em relação ao cinema brasileiro?
Maurice Legeard — Teve, teve. A televisão é a implantação de um sistema de domínio de ordem econômica. A partir do momento em que os americanos perceberam que o cinema brasileiro tinha condições de se desenvolver economicamente, eles estimularam a televisão para o público assistir novela. Ou seja, reter o público num aspecto para ganhar outro. E tem mais uma coisa: através dos canais de televisão, nós vamos induzir os indivíduos a assistirem os filmes que a gente quer.
Argemiro Antunes (Miro) — Inocência é o exemplo típico do que o Maurice está falando. Muitas pessoas na sala de espera, aguardando o filme, principalmente o pessoal mais idoso, que seguramente assiste televisão, foi ao cinema ver a Fernanda Torres. Percebi esse pessoal muito entusiasmado não com o filme, mas com os atores da tevê.
Maurice Legeard — Meus amigos, estou inteligentíssimo hoje, não sei por quê. Peço desculpas, mas tenho o raciocínio brilhante.

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