A carne dourada e o filme do Pelé

Edson Arantes do Nascimento enfrenta um câncer incurável. E um rei merece reverências em vida

Retrato de Pelé feito por Andy Warhol | imagem: Lluís Ribes Mateu

A Copa do Mundo do Qatar vive seus momentos derradeiros. Diante de nós, uma final inédita irá opor Argentina e França, Kylian Mbappé e Lionel Messi. Um desfecho empolgante. São duas seleções que construíram com autoridade a caminhada até o Lusail Stadium. Medirão forças, com justiça, pelo tricampeonato.

Nós, as testemunhas que não foram ao Oriente Médio, sintonizaremos nossas telas ao meio-dia nesse domingo para ver a história acontecer. Diante de imagens em alta definição, reagiremos com a emoção de quem presencia algo grandioso. Um espetáculo. Mas sem ter a dimensão de quão privilegiados somos.

Nos títulos mundiais de 1958 e 1962, os brasileiros não puderam ver ao vivo as seleções de Garrincha e Pelé. Acompanharam pelo rádio, eufóricos com as jogadas que os narradores transmitiam com emoção. No máximo, era possível ver a gravação das partidas no dia seguinte – mas não eram tantos os que possuíam televisão.

Em 1970, por outro lado, a Copa do México foi transmitida ao vivo. E em cores! Novamente, o impedimento foi tecnológico, uma vez que raríssimas TVs a cores existiam por aqui. Mesmo assim, ver as imagens em tempo real, mesmo que em preto e branco, do esquadrão do tri embalou o momento de festa nacional.

O tempo é implacável por aquilo que ele traz a rebote. Como as mudanças tecnológicas. Lembro com clareza da euforia infantil que senti ao acompanhar o tetra em 1994, através de uma Telefunken de 20 polegadas. A TV era um trambolho e até seu controle remoto parecia um tijolo. Hoje, se busco rever os registros daquela Copa, parece que estou diante de imagens pré-históricas: cores saturadas, definição baixa e som abafado.

Quando recuamos no tempo, a frustração é ainda maior. Pelé fez mais de 1000 gols, mas nenhum deles foi em HD. Para o jovem, que ameaça sentenciar que Lionel Messi, caso vença a Copa, será o maior de todos os tempos, isso é um argumento. Nosso craque maior fazia gols nos “tempos em que se amarrava cachorro com linguiça”, como disse Luiz Felipe Scolari – que, da beira do campo, viu os alemães demonstrarem uma definição dessa expressão, mas com salsichas.

Não vamos nos importar com os jovens. Eles se emocionam demais e possuem essa necessidade de se afirmar na novidade. Ainda não tiveram tempo de acumular frustrações suficientes para construir julgamentos razoáveis.

Todavia, é algo a se lamentar: nosso melhor momento enquanto pátria de chuteiras resiste em imagens ultrapassadas. Enquanto o fracasso nos últimos mundiais, protagonizados por Neymar, Felipe Melo, David Luiz e tantos heróis “daquilo que a gente não viveu”, perduram vivos em nossas retinas e gravados na internet em alta definição.

Durante a Copa do Qatar, porém, recebemos um convite para revisitar o passado. Edson Arantes do Nascimento, o maior camisa 10 que o esporte bretão viu desfilar em seu tapete de grama, enfrenta um câncer incurável. Encontra-se sob cuidados paliativos. E um rei merece reverências em vida.

Fica o convite. Eu poderia listar os números de Pelé. Ressaltar que ele segue como o único a vencer três mundiais. Que disputou quatro Copas do Mundo e fez gols em todas elas – ainda que sofrendo com lesões em 1962 e 1966. Mas não. É melhor vê-lo em campo. Mesmo que com imagens de baixa qualidade.

No Youtube existem compilações com seus gols em Copas. Tem chapéu em marcador, bola amaciada no peito e disparada com violência antes de tocar no chão, chutaço de fora da área, gol de cabeça, de falta, arrancada superando seis marcadores…

São jogadas vistosas. Para se ver em câmera lenta. Diversas vezes. Com o perdão do clichê, ver lances de Pelé é testemunhar o tal futebol-arte.

Vale como aquecimento para a final de domingo, mas também como deleite para a vida. Para o torcedor brasileiro, então, fica o tom de nostalgia: se a opção é torcer por um time de hábeis dançarinos, que ostentam fones-de-ouvido e carne banhada a ouro, talvez a melhor opção seja mesmo assistir ao filme do Pelé.

Autor

  • Historiador de formação, escritor por teimosia, mas paga as contas trabalhando no serviço público. É autor de Contos de autoajuda para pessoas excessivamente otimistas (LiteraCidade, 2014), O voo rasante do pombo sem asas (Isadora Books, 2021) e Estilhaços, no prelo. Publica crônicas no site Digestivo Cultural desde 2015.

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