Da Pesquisa Brasileira: Georgton Anderson da Silva e a escolarização das pessoas negras com deficiência

“A pesquisa representa uma jornada de descobertas contínuas, cada pergunta se torna um convite para expandir as fronteiras do saber”


Da Pesquisa Brasileira é uma série que apresenta depoimentos de pesquisadores em nível de pós-graduação sobre seus temas, suas métodos, suas perspectivas. Acesse todas as entrevistas.


O pesquisador Georgton Anderson da Silva

Havia uma covid-19 no meio do caminho. Tendo iniciado o mestrado com um projeto sobre “a importância dos movimentos sociais na formulação de políticas públicas para o segmento das pessoas com deficiência”, o hoje mestre em educação pela Universidade de São Paulo Georgton Anderson da Silva teve os planos interrompidos pela pandemia, que impediu o trabalho que vinha realizando com conselhos participativos paulistas e paulistanos. Da dificuldade, contudo, brotou outro caminho: “Em busca de outras fontes de pesquisa, observei que as lideranças nos movimentos sociais eram predominantemente brancas. Assim, surgiu o projeto para investigar as trajetórias escolares de pessoas negras com deficiência”. Defendida em 2023, a dissertação “O que os livros escondem, as palavras ditas libertam: indicadores e percepções de pessoas negras com deficiência acerca das suas trajetórias escolares” é o resultado dessa mudança de rumos. Também graduado em letras vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e especializado em docência no ensino superior pelo Centro Universitário Senac, Georgton fala da sua prática investigativa – marcada pelo convívio com o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e por uma “interconexão entre trabalho e pesquisa” – e destaca os vetores de transformação social do seu trabalho e de outros que explorem a mesma seara: “Essas análises têm o potencial de contribuir tanto para os estudos da deficiência e das relações étnico-raciais quanto para o enfrentamento das desigualdades que impactam a população com deficiência e a população negra”.

Veja também:
>> “Faces dos Disability Studies e o Modelo Social da Deficiência“, por Letícia Silva
>> “O Racismo Estrutural e a Conservação de Desigualdades“, por Rafael Bensi

Como você descreve a sua área de interesse enquanto pesquisador? Que tipo de questões te pegam, que problemas te incomodam, o que move sua investigação?

Minha área de interesse são os estudos das relações étnico-raciais no Brasil. Tenho o objetivo de compreender como o marcador social da diferença raça/cor e o racismo, que estrutura a sociedade, exercem influência na dinâmica social brasileira. Como pesquisador negro, encontrei uma motivação especial em explorar essas questões, especialmente no contexto da educação e da literatura. Meu intuito é desvelar as complexidades dessas interações e contribuir tanto para uma compreensão mais abrangente e transformadora desses elementos quanto para a discussão sobre esses temas, dois fatores que são cruciais para efetivar mudanças significativas em nossa sociedade.

Fale sobre o seu trabalho de pesquisa atual: como surgiu e se desenvolveu? Pode comentar também as relações com o mestrado.

Recentemente, finalizei e defendi a minha dissertação de mestrado, na qual me dediquei a investigar os processos de escolarização de pessoas negras com deficiência. Meu objetivo era compreender os desafios educacionais específicos enfrentados por esse grupo, os quais podem impactar na efetivação do direito à educação para essas pessoas.

Minha motivação para explorar esse tema surge da minha afinidade com os estudos das relações étnico-raciais e da proximidade estabelecida com pessoas com deficiência ao longo de cursos relacionados à educação especial e à Língua Brasileira de Sinais (Libras) realizados nos últimos anos. Esse interesse foi intensificado a partir de uma conversa com a professora Shirley Silva (in memoriam), que também foi minha orientadora em boa parte desse percurso. Depois da nossa conversa, ela me convidou para participar do curso de extensão Políticas sociais e pessoas com deficiência – princípios e práticas no cenário brasileiro, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), o qual ela ministrava. Aceitei o convite, e o curso contribuiu significativamente para a construção da proposta de pesquisa apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Feusp.

Inicialmente, ingressei no mestrado com a intenção de refletir sobre a importância dos movimentos sociais na formulação de políticas públicas para o segmento das pessoas com deficiência. Contudo, no decorrer desse processo, fomos surpreendidos pela pandemia da covid-19, que resultou na paralisação de todas as atividades presenciais, incluindo a minha pesquisa, uma vez que eu estava pesquisando os conselhos participativos das pessoas com deficiência no Estado e na cidade de São Paulo. Diante dessa situação, e em busca de outras fontes de pesquisa para dar continuidade ao meu estudo, observei que as lideranças nos movimentos sociais desses grupos eram predominantemente brancas. Assim, surgiu o projeto para investigar as trajetórias escolares de pessoas negras com deficiência, proposta que foi acolhida pela minha orientadora e culminou na dissertação.

Qual a contribuição deste trabalho? Como você descreveria a sua importância a) para uma pessoa da sua área e b) para um leigo no tema?

a) Quando a gente pensa na área em que a minha pesquisa se insere, a educação, nessa esfera, especialmente para os profissionais que atuam na educação especial, acredito que a escolha do tema se destaca como um diferencial uma vez que aborda uma temática ainda pouco explorada em pesquisas acadêmicas. A relevância reside na possibilidade de desencadear outros debates sobre os impactos que os marcadores sociais da diferença, em particular deficiência e raça/cor, podem exercer sobre o direito à educação para determinados grupos.

No âmbito das políticas públicas, a pesquisa proporcionou a coleta e organização de dados relacionados à situação das pessoas negras com deficiência no Brasil e no Estado de São Paulo, bem como as entrevistas realizadas. Embora essa não fosse a intenção inicial, a pesquisa começou a esboçar um novo indicador (raça/cor e deficiência) que pode ser fundamental para pensar na formulação e implementação de políticas públicas voltadas para a educação, objetivando possivelmente reduzir o fosso persistente de oportunidades educacionais que afetam, predominantemente, grupos que historicamente foram marginalizados.

b) Para quem é leigo no tema, eu diria que a realização de pesquisas com pessoas negras com deficiência vai além de simplesmente concentrar-se em um grupo social que foi silenciado ou oprimido. Essas são questões cruciais para ampliar o diálogo sobre raça/cor e deficiência no Brasil e proporcionar uma reflexão sobre as estruturas de desigualdade que permeiam a nossa sociedade.

Como foi a sua rotina de pesquisa para produzir a dissertação? Como foi conciliar essa atividade com outras do seu cotidiano, quais dificuldades você tem?

Eu tenho diagnóstico de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade. Recebi esse diagnóstico na fase adulta, e o recebi durante a pandemia de covid-19, período que impactou significativamente minha produção acadêmica. A rotina que mantive ao longo da maior parte da minha vida pessoal, acadêmica e profissional, e que, mesmo sem o diagnóstico, contribuía para lidar com as questões relacionadas ao transtorno, foi desorganizada pelo contexto pandêmico. Então, a minha maior dificuldade foi ter que lidar com essa questão.

Desse modo, para superar esse desafio, desenvolvi estratégias de estudos que me permitiram manter o foco, visando potencializar meu tempo de produção. Dessa forma, nesse processo, eu consegui lidar tanto com os desafios de escrever a dissertação quanto com as demais atividades do meu cotidiano de modo mais eficaz, tendo poucos prejuízos. Acredito que fazer terapia também ajudou bastante nesse processo.

Como se relacionam, no seu caso, o mundo do trabalho e o mundo da pesquisa? Há aprendizados trocados entre eles?

Acredito que a nossa movência para a pesquisa, de maneira geral, muitas vezes está ligada ao trabalho que já desenvolvemos. Nessa perspectiva, acredito que trabalho e pesquisa se entrelaçam de forma constante, proporcionando uma valiosa troca de conhecimentos, porque a pesquisa tem o potencial de aprimorar métodos de trabalho, tornando-os mais eficientes, além de oferecer soluções para desafios específicos em diversos contextos. Adicionalmente, as demandas e necessidades do ambiente de trabalho frequentemente desencadeiam novas direções na pesquisa. Esse ciclo contínuo de aprendizado é alimentado pela interconexão entre trabalho e pesquisa, e contribui significativamente para o progresso e o enriquecimento mútuo de ambas as áreas.

A partir da sua experiência, que sugestões você daria a outros pesquisadores que precisam incluir a pesquisa entre as suas outras tarefas no dia a dia?

Com base na minha experiência, afirmo que a atividade de pesquisa é constante e exige dedicação. Após ser diagnosticado com TDAH, precisei adaptar-me e estabelecer uma rotina para enfrentar esse novo desafio. Minha rotina diária segue um conjunto de práticas organizadas desenvolvidas da seguinte maneira: em primeiro lugar, recomendo silenciar ou desligar o celular e outras distrações, mantendo-os em um cômodo separado durante as horas de estudo, isso é essencial. No meu caso, devido à necessidade de lidar com a desatenção, realizo o trabalho de pesquisa/estudo com horários cronometrados, que podem variar dependendo das outras atividades que eu esteja realizando do momento. Em geral, dedico quatro horas diárias, divididas em 50 minutos de estudo (tempo em que consigo manter o foco) e 10 minutos de descanso, excluindo o uso do celular ou das redes sociais.

Estabeleci também uma meta diária de leitura e, após as leituras, organizo um fichamento/resumo com as ideias principais do texto; em seguida destaco citações que podem ser relevantes e ajudar para o meu argumento. E, como último passo, escrevo pelo menos uma lauda autoral sobre o tema em questão. Essa é uma dica valiosa, especialmente para quem está produzindo uma dissertação ou tese: evitar procrastinar a escrita do texto. Escrever diariamente permite manter um ritmo consistente, evitando sobrecarga, estresse e ansiedade ao final do processo.

Por fim, compreender o próprio ritmo e desenvolver uma rotina que não cause sobrecarga é crucial. Organizar essa rotina de trabalho, especialmente nos últimos dois anos, tem sido eficaz para manter um ritmo constante no processo de pesquisa e estudo.

Que questionamentos não respondidos você enxerga no seu campo de pesquisa? Isto é, a partir dos debates que conheceu e trouxe, que problemas você entende que devem ser abordados – por você ou por outros pesquisadores?

Diante da lacuna identificada na produção acadêmica em relação à intersecção dos marcadores sociais da diferença – deficiência e raça/cor – durante o desenvolvimento da minha pesquisa de mestrado, observo que, de forma geral, a temática carece de abordagens e aprofundamentos adicionais. Em outras palavras, as reflexões apresentadas pela minha dissertação não se esgotam diante de outras milhares de possibilidades analíticas para o fenômeno em questão, principalmente, se considerarmos as diversas situações de deficiência que se entrelaçam com outros marcadores sociais da diferença. Essas análises têm o potencial de contribuir tanto para os estudos da deficiência e das relações étnico-raciais quanto para o enfrentamento das desigualdades persistentes e que impactam a população com deficiência e a população negra.

Conte quais podem ser os seus próximos passos como pesquisador. O que você quer realizar ainda nesta forma de trabalho?

Responder a essa pergunta é um pouco difícil neste momento. Ainda estou pensando sobre o projeto de doutorado. Este é um período repleto de incertezas do ponto de vista acadêmico, pois não tenho clareza sobre os desdobramentos e caminhos que minha pesquisa tomará. No entanto, o que posso dizer é que tenho o desejo de seguir na vida acadêmica, almejando ingressar no doutorado. Acredito que essa é uma visão sólida dos rumos que minha jornada acadêmica deve seguir, e sinto que estou preparado para encarar novos horizontes como pesquisador.

Por fim, por que você viu na academia um espaço para desenvolver problemas que você visualizava? Em outras palavras: por que pesquisar?

Sempre fui bastante curioso e vejo na pesquisa uma maneira de explorar essa curiosidade, uma forma de buscar conhecimento para refletir sobre as inúmeras questões que permeiam as áreas do saber nas quais eu tenho interesse. Acredito que, para mim, a pesquisa representa uma jornada de descobertas contínuas, onde cada questionamento ou pergunta se torna um convite para expandir as fronteiras do saber. Talvez, essa busca incessante por respostas e a oportunidade de contribuir para o avanço do entendimento em um determinado campo sejam as minhas principais fontes de motivação. Enfim, em síntese, minha curiosidade e a paixão pela pesquisa têm sido elementos fundamentais na minha trajetória acadêmica, impulsionando-me a enfrentar desafios e aprofundar meu compromisso com a incessante busca pelo conhecimento.

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