Margarida La Rocque e os demônios do Ocidente: Dinah Silveira de Queiroz contra o patriarcado europeu

Nas mãos da autora, terror e fantasia são rurais, envolvem forças da natureza anteriores à humanidade

Dinah Silveira de Queiroz | imagem: Arquivo Nacional

Quando pensamos em literatura fantástica no Brasil, todo mundo cita, sem pensar, duas vezes Murilo Rubião (1916-1991). O que é algo justo, afinal, ele é um dos melhores escritores do gênero. Alguns outros mencionam José J. Veiga (1915-1999), autor que descobri num feliz acaso, em algum momento da década de 2010 (até cheguei a comparará-lo com Black Mirror, em um texto publicado na Úrsula em 2018).

Poucos, porém, falam de Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982). Eu, até recentemente, estava nesse grupo. Por que? A gente pode pensar em muitas razões. A mais provável de todas é o puro machismo da crítica literária tradicional, uma vez que a escrita Dinah se equipara, em termos de estética, aos dois autores citados acima – sem ser cópia deles, claro.

Alguém pode até argumentar sobre a desaparição dela dos catálogos. Nesse mérito eu não entro. Ela estava fora das livrarias e, praticamente, fora dos sebos. O resto é fofoca para os biógrafos. A ficcionista, entretanto, tem voltado e os louros são da editora Instante que, aos poucos, devolve Dinah pras estantes, de onde ela nunca deveria de ter saído.

Talvez, a prosadora ainda seja muita associada à obra A Muralha, de 1954. Nos 500 anos da invasões cabralinas, o livro virou série, com Alessandra Negrini, meio onçana frente dos meus impressionáveis olhos de criança de 10 anos, e Tarcísio Meira, furando os pés da Letícia Sabatella, sua esposa nessa produção, pois alguém tentava “furar os olhos” dele.

Dinah é uma baita autora de fantasia, terror e ficção científica. A pioneira no Brasil, dizem algumas fontes. E um dos títulos que comprova o talento da autora é Margarida La Rocque: A Ilha dos Demônios, de 1949, que aqui, neste texto, chamo de de MLR.

Terror folk antes da moda

MLR é de 1949, dois anos depois de o Ex-mágico, de Murilo Rubião, e uma década depois de Os Cavalinhos de Platiplanto, de José J. Veiga. Portanto, sim, de alguma forma a Dinah foi bem pioneira nesse lance. A escritora distancia-se de Murilo, mas se aproxima de José em razão de um ponto importante: nas páginas em questão, terror e fantasia são rurais, envolvem forças da natureza anteriores à humanidade.

O enredo traz a história de Margarida, mulher do século 16, que se casa por amor com um comerciante naval, mas começa a amargar uma vida de tédio e descaso. Então, quando o marido parte em outra viagem até a Nova França, ela decide encontrá-lo. Para tanto, pega uma carona no barco do navegador João Francisco de La Rocque (seu primo), acompanhada da criada Juliana. Porém, na embarcação, envolve-se com o marinheiro João Maria e, descobertos, são isolados na misteriosa Ilha dos Demônios. Lá, Margarida engravida e João Maria começa a desprezá-la, relegando os cuidados da criança à Juliana. O marinheiro morre, a criada atira-se ao mar e a protagonista, abandonada, vê-se forçada a descobrir formas de sobreviver, até ser resgada por pescadores.

Num primeiro momento, a trama parece apenas com mais um relato de viagens. Contudo, gradualmente, ela se converte em um relato no qual os “demônios” vão se fazendo presentes na vida da personagem, e sua condição vai mudando. Mais do que isso: não se tratam apenas de “demônios”, mas sim das próprias deidades da natureza, personificadas. MLR é um livro de fantasia que se aproxima daquilo que alguém, nos anos 1970, denominou de terror folk quando viu O Homem de Palha, de 1974 (um conselho: assistam a essa versão. A de 2006, com Nicolas Cage, é ruim).

Porém, o grande feito de Dinah está mesmo em não mobilizar o terror pelo terror. Claro, todo o terror (e também a fantasia) é a representação de um “algo a mais” na nossa vida. Ao pensamos no pirotécnico Zacarias ou na invasão dos ruminantes, nas obras de Murilo Rubião e José J. Veiga, respectivamente, há um discurso político e social bem marcado, carnavalizado por essas alegorias absurdas e meio grotescas. (Não vou nem entrar no terreno da psicologia analítica de Jung. Deixo essa brecha para alguma brava alma dos estudos culturais). Em MLR, acha-se esse caráter alegórico. Os demônios, vale dizer, não são demoníacos, mas figuras misteriosas que aparecem só para Margarida: um coelho branco, chamado Filho, a misteriosa criatura de nome Cabeleira (que aviva algo sexual e agressivo) e a Dama Verde (uma mulher verde, com o corpo todo feito de tecidos vegetais).

Margarida conhece criaturas assombrosas, vindas da natureza e anteriores ao próprio ser humano, criaturas que a afetam de maneira terrível: causam medo; levam, Juliana, João Maria e ela à loucura; sequestram seu filho recém-nascido; cometem violência sexual contra a protagonista. Margarida, no entanto, não sofre, na natureza intocada da ilha, nada diferente daquilo que já não sofrera no barco de seu primo, na sua vida matrimonial, na sua condição de mãe de uma criança não desejada, de mãe sempre julgada pela tradição (metonimizada em Juliana). Quem são, de fato, seus “demônios”?

A natureza selvagem do homem europeu

Os demônios de MLR também afetam a personagem no momento em que seu sofrimento humano é mais contundente: ela é expulsa do navio por se entregar a um outro homem que não o marido (a despeito de ter sido abandonada por este). São também eles, os demônios, que aparecem para auxiliá-la quando o amante perde o desejo por ela (quando engravida, logo, ascende à condição idealizada de Mãe Imaculada, imagem que os europeus adoram).

(Será que devo alertar que, aqui, vou faço interpretações pessoais, que não querem esgotar o tema? Seja como for, vamos a elas).

A Dama Verde e o Cabeleira não são nada além de seus instintos de autocuidado, desejo sexual e maternidade – surgidos, justamente, quando Margarida perde o status de donzela, quando para de receber os cuidados das personagens que a ligam às estruturas sociais patriarcais europeias (sua criada e seu herói) e começa a recuperar, em seu mais profundo íntimo, sua condição mais natural de ser vivo. O que é a Dama Verde se não o feminino ancestral que a sociedade buscava reprimir em Margarida? E o Cabeleira enquanto sua pulsão de vida destituída da moral europeia?

Acredito que o melhor exemplo de terror folk que se aproxima de MLR é Midsommar (2019), filme de Ari Aster. A Dama Verde (a “assustadora mulher selvagem” que ajuda a “mulher civilizada” a sobreviver) religa Margarida a sua mais intima vontade de estar viva, da mesma maneira que, no longa, as mulheres da comunidade de Hårga ajudam Dani em seus rituais ancestrais.

Mas Margarida não sofre ao longo da narrativa? Sim, ela sofre. Sente horror e estranhamento a tudo, igual Dani no filme. Justamente porque, como mulheres originárias do “ápice de civilidade” de seus tempos (isto é, França e EUA), ambas estavam condicionadas a não entender o que significa essa quebra de padrões. Margarida sente-se terrivelmente angustiada ao perceber que, quando ela não serve mais aos propósitos do patriarcado (representado por João Maria), torna-se um “adereço”. E a Dama Verde, sua sobrevivência, e o Cabeleira, sua libido, independentes de qualquer homem, assustam e assombram ela própria. Há, no livro e no filme, uma ruptura violenta: as crenças ilusórias são arrasadas e o mundo torna-se fragmentado em virtude de seres e processos anteriores à estrutura social conhecida. Mas, apesar de tudo, Margarida e Dani sobrevivem.

O percurso de terror e simbologia criado por Dinah Silveira de Queiroz faz de Margarida La Rocque: A Ilha dos Demônios uma peça literária sem precedentes. Termino este artigo como terminei a leitura da obra: querendo mais. Mais imagens, mais demônios, mais interpretações. Margarida La Roque é, em resumo, o primeiro livro de terror folk do Brasil. Bu!

Autor

  • Autor dos livros de poesia Nada (Patuá, 2019) e Hinário Ateu (Urutau, 2020). Já publicou em revistas como Mallarmargens, 7Faces, Zunái e publica com regularidade nas revistas Úrsula e Subversa.

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