Como o neoliberalismo se manifesta na arte?

A arte hoje não cria estilos novos, tornou-se só estímulo visual, mercadoria

Diamond Dust Shoes, obra de Andy Warhol

Texto baseado no artigo “Política, sociedade, estética e sofrimento psíquico na esfera do realismo capitalista

A arte expressa o pensamento de cada época. O filósofo Louis Althusser já trabalhou este pensamento em “Ideologia e aparelhos ideológicos de estado“. Não é segredo, portanto, que aquilo que Marx chamava de ideologia tem algum nível de expressão na arte.

Em A Ideologia Alemã, obra em que Marx e Engels trabalham o termo “ideologia” sob os preceitos marxistas, nos deparamos também com a afirmação que o céu – a esfera do pensamento, da imaginação, do subjetivo, das ideias – é um produto da terra – o mundo real, físico. O motor que transforma o pensamento está, na verdade, no mundo físico. São as contradições do mundo físico que transformam o pensar.

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Coloquemos de forma clara com um exemplo rápido. A forma de viver e de organizar a sociedade na Idade Média, conhecida como feudalismo, continha em seu funcionamento elementos que ocasionaram o seu “fim” e o surgimento do capitalismo. E existe um pensamento correspondente ao feudalismo, produto do feudalismo. Podemos encontrar remanescentes desse pensamento nas novelas de cavalaria, na narrativa religiosa medieval e, claro, nas artes visuais. Não é por acaso que o período da crise do feudalismo correspondeu a uma revolução no pensamento, na religião e na arte. Basta aqui lembrar do Renascimento. Na filosofia, podemos lembrar dos filósofos revolucionários, do levante contra o pensamento do direito divino etc.

Existe, contudo, outra esfera dessa expressão do mundo terreno no mundo celestial (lembre que “mundo terreno” se refere ao mundo físico e o “mundo celestial” ao mundo do pensamento). Como a sociedade se organiza gera elementos que a conduzem a sua transformação e, em algum momento, a superação dessa forma por outra, tal qual ocorreu com o feudalismo que se transformou no capitalismo, correto? Correto. Lembremos, contudo, que essa transformação não ocorre de forma linear. A própria revolução francesa passou por diversos retrocessos e períodos de derrota das forças revolucionárias. O que acontece, então, com o pensamento dominante quando a transformação da sociedade é derrotada?

O que acontece é a retomada de um pensamento de defesa dessa sociedade. Em suma, um pensamento de manutenção. Eis aqui o problema.

Se tudo o que foi dito até aqui foi compreendido, torna-se claro que esse pensamento se expressa na arte também. Cabe então esclarecermos duas questões: Que pensamento é esse; como ele se expressa na arte.

Bom, o pensamento, que nesse caso é o pensamento proveniente da classe dominante, a classe que domina a sociedade em questão – Marx chamou esta classe de burguesia, os detentores dos meios de produção. Por isso, podemos chamar esse pensamento de ideologia, uma forma de pensar que atua na manutenção da sociedade vigente.

Mark Fisher (1968-2017) capturou alguns elementos desse pensamento presentes na frase de Margaret Thatcher, uma das figuras politicas mais fortemente relacionadas à ascensão do chamado neoliberalismo, There is no alternative (não há alternativa). Bom, olhemos de volta para o mundo terreno, pois é ele que explica o mundo celestial. A ascensão do neoliberalismo ocorre mediante a percepção da proximidade da vitória do bloco ocidental – o bloco capitalista – sobre o bloco oriental – o bloco socialista que propunha a superação do capitalismo. Essa vitória, contudo, não se deu apenas no conflito exterior por fronteiras, mas também no interior dos países ainda capitalistas pela derrota da maioria das forças revolucionárias e operárias organizadas. A derrota do bloco do leste também significou o desmanche do estado de bem-estar social – o welfare state – que foi construído para se opor a proposta socialista.

Portanto, a frase de Thatcher sintetiza muito bem o pensamento reinante no pós-guerra-fria: “Não existe alternativa”; “A ordem do capital venceu”; “Aceite os desígnios do mercado”. Obviamente, cabe aqui lembrar que tal pensamento tem por objetivo defender a sociabilidade vigente e é propagado para que o faça.

E como esse pensamento se manifesta na arte? Ele se manifesta na arte mediante o que Frederick Jameson chamou de “pastiche”. Não, não é de comer! Ou pelo menos na maioria das vezes não é.

O pastiche é uma retomada de estilos, símbolos e iconografias em forma de uma releitura. Contudo, esta releitura não é como uma sátira ou paródia.

Veja bem, em uma paródia, os elementos e símbolos são retomados de forma a criticar, atribuir outro sentido, ou contribuir para uma narrativa diferente da original. Portanto, a paródia se opõem ou pelo menos opera com valores presentes nas obras de arte, por exemplo.

O pastiche não faz isso. Ele retoma elementos e estilos mas o valor desses elementos e estilos não é considerado. Por quê?

Porque não existe alternativa. Simples assim. A arte hoje não cria estilos realmente novos, ela recorta os estilos e elementos que já existem e os reorganiza de forma a não interagir com o seu valor. É por isso que o abadá, que era a roupa que os escravos muçulmanos usavam, pode ser transformado em ingresso de desfile de escolas de samba e vendido a preços exorbitantes para a elite das principais capitais do Brasil. O abadá perdeu seu valor, seja ele político, de luta contra a escravidão, de símbolo do trabalho ou ainda religioso. Hoje ele é apenas um elemento de estímulo visual.

Uma vez que o pensamento dominante não põe a ordem vigente como passível de superação, ele a põe como um fato. E contra fatos os valores não importam.

Toda a iconografia pode e é reduzida a artefatos ou elementos de puro estímulo visual. Pense na imensa quantidade de estilos musicais que, originalmente, se destinavam à contestação e que hoje podem e são ouvidos sem pudor algum inclusive em festas da alta sociedade.

O Par de Sapatos, obra de Vincent van Gogh

Frederick Jameson chega a dar um exemplo de como a arte de hoje também perdeu sua capacidade narrativa. Ele o faz utilizando a obra Um par de sapatos, de Van Gogh, produzida em 1887 (Não confundir com O par de sapatos – também de Van Gogh) e a obra de Andy Warhol chamada Diamond dust shoes. Ambas têm a mesma temática. A primeira, contudo, possui uma narrativa inteira que se pode apreender ao observar a pintura. Tenho certeza que o leitor deste texto consegue, por exemplo, imaginar a sensação do dono ou dona das botas ao retirá-las. A segunda não tem narrativa alguma, é puro estímulo estético. Não existe narrativa, pois a própria história (o conjunto de transformações pela qual a sociedade passa e passou) não faz sentido dentro do discurso dominante. Tudo isso se manifesta na arte. A arte se tornou puro estímulo visual, mercadoria.

Tendo isso em mente, fica bem claro também que muita da arte que se produz hoje parece ser de contestação à sociabilidade atual, mas não é – pense na montanha de roteiros para séries tidas como progressistas de alguns dos principais sites de veiculação desse material. Os elementos de rebeldia e contestação podem muito bem ser vendidos por grandes empresas sem problema nenhum, pois não existe – no pensamento dominante – risco algum à ordem, pois a ordem é um fato. Elementos que antes eram repudiados pelo pensamento dominante hoje são meros aparatos de decoração.

Assim, a arte que parece contestatória para alguns é absorvida sem criar maiores riscos. A ordem, hoje, não combate o pensamento contestador; ela o trata como vazio de valor e o transforma em mercadoria.

Autor

  • Graduado em Biotecnologia, mestrando em Filosofia. Dedica-se ao estudo da tradição marxista e de de temas relacionados a tecnologia, política e sociedade.

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