Como nasce o ódio ao ser humano?

Sócrates responde a essa pergunta do título em um dos Diálogos de Platão, o Fédon – aquele que narra os seus últimos momentos de vida. Em meio a um debate sobre a alma, passando pelo valor dos argumentos, ele comenta:

O ódio ao ser humano nasce quando alguém, desprovido de conhecimento suficiente ou habilidade, deposita irrestrita e ampla confiança em alguém, acreditando ser essa pessoa inteiramente sincera, íntegra e confiável e, depois, descobre que é vil e falsa. Posteriormente essa experiência é vivida com uma outra pessoa. Quando tal experiência foi vivida muitas vezes por um indivíduo, principalmente envolvendo pessoas por ele consideradas seus amigos mais próximos e mais caros, ele acaba por entrar em constantes conflitos, desenvolvendo um ódio à totalidade dos seres humanos, na avaliação de que nada há de íntegro em absolutamente ninguém. Já não percebestes isso ocorrer?

Seria a decepção, portanto, a fonte da misantropia: ter confiado em alguém e se ver traído ou magoado, não apenas uma vez, mas sucessivamente, e mesmo através daqueles de quem estávamos mais seguros – o nosso próprio “até tu, Brutus!”. Isso abalaria nossa capacidade de confiança em geral e geraria reatividade e raiva.

Podemos supor que há um toque autobiográfico nesse comentário socrático: pois ele confiara na legalidade de Atenas e em seus representantes; porém essa legalidade serviu de instrumento aos seus inimigos para causar-lhe a morte. No ato de submeter-se a ela, parece desejar ainda outro argumento para, ferido, não se reduzir ao ódio.

“Gradação de pessoas são mais ou menos boas ou más” | imagem: Katie Wheeler

O argumento que ele encontra é esse, partindo da cena que acabou de descrever:

Não é essa uma situação deplorável e vergonhosa, e não se evidencia que tal indivíduo se dispõe a ter relações com os seres humanos sem ter qualquer habilidade no trato das coisas humanas? De fato, se a tivesse, ao lidar com eles saberia que os propriamente bons e maus são ambos em número muito escasso, e que os que estão entre esses dois extremos constituem um enorme contingente de pessoas.

O que Sócrates diz é que não existem, de um lado, os bons, e, de outro, os maus. Ou apenas os maus ou apenas os bons. Como os seus interlocutores não o entendessem bem, ele explica de modo mais didático essa premissa:

Quero dizer o mesmo que poderia dizer sobre o pequeno e o grande. Achas que há algo mais raro do que encontrar um ser humano muito grande ou muito pequeno, o mesmo se aplicando a um cão ou a qualquer outra coisa? Ou encontrar um que seja muito veloz ou muito lento, muito feio ou muito belo, extremamente branco ou extremamente preto? Não notaste que os extremos em todos esses casos são esporádicos e escassos, enquanto os casos entre esses extremos são frequentes e em grande número?” […]

E não pensarias […] que se houvesse um concurso de perversidade, os que se sagrariam vitoriosos nessa competição seriam pouquíssimos também nesse caso?

Abundante em relação aos extremos dos bons e maus totais, o que há é uma gradação entre esses dois pólos, onde as pessoas se distribuem, mais ou menos boas ou más. Compreender essa variedade é ter “habilidade no trato das coisas humanas”, significa não cair no desespero (todos são maus!) ou na ingenuidade (todos são bons!).

Sócrates parece sugerir uma pragmática. Concorda com essa perspectiva? Como a decepção transformou sua visão dos outros? Que habilidade poderia nos ajudar a lidar com os outros e suas falhas sem afundar no ódio?

Autor

  • Duanne Ribeiro

    Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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